sábado, 28 de fevereiro de 2009

Visita dos Primos

Um banho nos Biscoitos, sabe sempre bem


Um copo de angelica dos Biscoitos sabe ainda melhor...


Um descanso na Porta de Armas


Os três manos no Castelinho

A família nas Lagoinhas


Nós no Castelo São João Batista


Outra vez no Monte Brasil, na vigia das baleias


Toda a família

Missa do Galo

Missa do Galo realizada na gruta da Lagoa do Negro, a 25 de Dezembro de 2007





Real Associação da Ilha Terceira

Conferência da Real Associação da ilha Terceira, na Comemoração do Centenário do Regicídio





Concurso de Pesca Submarina

1º Concurso de Pesca Submarina das São Joaninas 2008 realizado na Baía de Villa Maria

























quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Os Fala Quem Sabe e a Casa Assombrada

Programa Transmitido Pela RTP Açores no dia 10/03/2007


Histórias há muitas… fantasmas, quem sabe alguns. Esta é mais uma das histórias, que os nossos amigos, os Fala Quem Sabe resolveram criar, inventar e desenvolver. Como sempre no meio de aventuras e peripécias que só eles poderiam inventar, surgiram na Villa Maria para criar mais um dos seus programas.

A história bastante bem engendrada, roda há volta de umas crianças (no filme seus filhos), que ao brincar durante a tarde, viram cair a noite sem voltar a casa dos pais. Ora bem, os Fala Quem Sabe, pais extremosos como são, não poderiam deixar os seus filhos perdidos na noite, assim, partiram em busca das desaparecidas crianças.Sabendo que elas andavam a brincar nas imediações da Villa Maria, partiram para lá na tentativa de as encontrar.

Foi uma epopeia! Casa antiga, grande e assustadora, sem que eles o soubessem, assombrada, começou logo no princípio por os receber como é seu dever: Com o carinho e o espanto dos estranhos lugares. Um uivo grande e tenebroso abriu-lhes o grande e pesado portão de ferro de forma lenta mas constante, abrindo-o de par em par. Faz-se silêncio. Eles penetram, já na noite escura, só com a luz das suas lanternas, pelo portão aberto entranhando-se na noite e num ambiente envolto em penumbra. Chegando ao saguão, é-lhe do mesmo modo oferecido um abrir de porta de sem que eles nisso tenham intervenção…. Estranham, mas entram. O ambiente é desconhecido. De outros tempos. Um ambiente medieval salta há vista. Nas paredes espadas e machados esperam por eles. Mascaras de esquecidas e perdidas tribos africanas espreitam nas paredes como que a espreita-los… a vigia-los.

As escadarias são-lhe oferecidas. Depara-se-lhe o desconhecido sendo-lhe oferecido um tapete vermelho. Eles não se mostram rogados. Falando entre si, dos seus medos e das histórias que já tinham ouvido contar, começam a subir a escadaria que se lhe abre perdendo-se no escuro. Escusado será dizer que os fantasmas os apanham e com eles brincam para os amedrontar e espantar dos seus domínios.

O resto da História, quem a quiser ver terá de ver o filme.


Ramiro, com um ar pensativo...

As misteriosas gémeas

O Silveira e o Batista



A chegada ao portão principal

O grupo de fantasmas convidados...

Se quiser ver o filme clique abaixo

domingo, 22 de fevereiro de 2009

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Contos e Lendas da Villa Maria



Dada a sua antiguidade e aparência a Villa Maria tem feito surgir à sua volta algumas história curiosas que muitas vezes se ouvem; claro está que no meio de tudo isto a verdade só está no coração de quem quer acreditar nelas ou nos factos de acontecimentos as vezes rocambolescos e quase sempre mal explicados e que depois fazem surgir os ditos populares.
O CANHÃO NO TORREÃO PARA DEFESA DA COSTA


Desde que vivo na Villa Maria sempre ouvi contar que esta casa tinha nos seus princípios um canhão para sua defesa e da zona da costa que fazia parte dos seus "domínios", isto provavelmente há muito mais de 250 ou 300 anos, pois as ameias que actualmente existem já existiam com outra forma na primitiva construção de 1501. Existiam na forma de muros altos e muito grossos, autenticas muralhas de defesa como atesta o antigo desenho existente num quadro cá na casa. E como ainda se pode confirmar pelos enormes paredões actualmente existentes.

Estas ameias segundo me contaram pretendiam proteger os atiradores de defesa de algum ataque pirata vindo do mar, visto a costa da Baía de Villa Maria ser exactamente uma bela baía de fácil acesso.
Esta peça de artilharia estaria colocada num torreão, espécie de torre alta que fica do lado poente da casa e onde existe uma grande pedra de colocação com um buraco de fixação da dita arma.
Este aspecto de defesa eram tão mais importante quando se sabe que os mares dos Açores eram frequentemente visitados por piratas e que eram frequentes os assaltos destes as localidades em terra.

Outro aspecto que pode ter contribuindo para a necessidade de protecção foi a utilização que sempre foi dada a esta baía para embarque e desembarque como foi o caso da sua utilização para desembarque de madeiras exóticas utilizadas na construção da casa, tanto Açoreanas (entre as quais o cedro) e muitas vindas do Brasil (como o pau Brasil) foram trazidas de caravela, embarcação essa que acostava na dita Baía de Villa Maria para descarregar. Como prova disso temos ainda agarrada ás pedras algumas mãos de ferro onde os barcos eram amarrados. Muitos anos mais tarde também esta baía foi bastante utilizada pelos seus proprietários que tendo propriedades na ilha de São Jorge onde produziam vinhos, nomeadamente na fajã de São João e na Urzelina, a utilizavam como porto de desembarque dessas pipas de vinho que era engarrafado na adega da Villa Maria.

Esta baía fica numa reentrância protegida da costa tendo dois acesso por terra, um a nascente na forma de escadas e outro a poente onde se chegava até a água com qualquer carroça ou outro meio de transporte antigo. Sendo isso ainda hoje possível.
A HISTÓRIA DO VAMPIRO

Há muito tempo atrás a Villa Maria esteve desabitada pelos seus proprietários que durante alguns anos viveram noutras ilhas dos Açores como foi o caso de São Miguel ou de São Jorge, onde eram proprietários de terras e vinhas. Aproveitando esse facto a casa foi alugada a um grupo de Militares dos Estados Unidos que prestavam serviço aqui na ilha Terceira.
Esse grupo era bastante heterogéneo contendo no seu interior pelo menos um homem que para espanto de todos tinha por hábito dizer que era vampiro indo ao ponto de à noite dormir afastado dos outros vestido com a roupagem que "normalmente" se atribui a estas personagens míticas, nomeadamente um fato preto brilhante e uma enorme capa preta de um lado e vermelha do outro. Esta estranha personagem para exibir o seu exotismo ao extremo dormia no enorme sótão da casa dentro de um caixão de Defuntos!
Este facto já de si é estranho, se estivesse chegado aos ouvidos das pessoas só por alguém contar podia ter dado que falar; no entanto acabou por chegar de uma forma mais brutal e aterradora que foi na forma de um assalto nocturno. Na localidade próxima, a freguesia de São Mateus um grupo de rapazes que sabiam que a casa estava desabitada, e não sabendo que tinham sido alugada, resolveram uma bela noite que iam assaltar a Villa Maria. Se melhor o pensaram, melhor o fizeram. Levando consigo umas cordas estes indivíduos lá conseguiram chegar até ao telhado da casa onde levantaram as telhas e o forro e de lá entrou um para "explorar" e a seguir descerem os outros.
Para grande infelicidade deles o rapaz que entrou fê-lo justamente na área onde dormia o "nosso" vampiro que com todo o barulho que eles fizeram acordou e se levantou do seu caixão em frente ao intruso que não é de espantar que com a visão aterradora a sua frente se pôs aos gritos e acabou por desmaiar deixando os seus amigos aterrados e em fuga. Mais tarde a história foi esclarecida no entanto pelo que aconteceu e pela enorme estranheza do acontecimento este foi contado de boca em boca entrando no mito popular. Ainda hoje muita gente diz que a Villa Maria é assombrada e que lá vivem vampiros e fantasmas. Pode ser, mas até hoje nunca vi nenhum.
A HISTÓRIA DO PADRE
Durante muitos anos sempre foi dito por pessoas amigas e mesmo familiares que visitavam quem cá vivia que durante a noite ou ai cair da tarde viam uma personagem vestida de branco que se passeava por um determinado quarto da casa.

Segundo as descrições feitas dessa visão ela era sempre basicamente o mesmo variando apenas em alguma da sua endomentária. Para alguns tratava-se de um fantasma, para outros de um médico pois uma das vezes foi "visto" com uma seringa na mão. Enquanto para outros tratava-se da roupa de um padre e por isso devia ser o antigo dono da casa sobre a qual a Villa Maria foi construída. Claro está que nunca será possível confirmar estes acontecimentos, pois pela sua estranheza eles são por si mesmo difíceis de acreditar.

No entanto esta "visão" não é recente, desde os mais antigos proprietários que há a historia do "avistamento" desta estranha figura, chegando ao ponto de uma das vezes ter sido pedido a uma padre da Igreja Católica que benzesse a casa. A casa foi benzida, mas segundo consta a personagem continua a aparecer. Umas vezes num quarto outras noutro, mas tanto quanto sei sempre nos quartos do andar de cima ou nas dependências do lado esquerdo da casa, virado ao nascente.

Nunca se manifestou de outro modo que não fosse deixar-se ver, nunca falou ou deixou pegadas, nunca mexeu nos objectos, ou fez correntes de ar. Deixa-se ver sempre à tarde, já na penumbra do inicio da noite ou então madrugada cedo quando a luz ainda fraca se escoa pelas portadas deixando os quartos mergulhados numa penumbra pouco esclarecedora.
UM DIA QUANDO FORAM PEDIR AÇÚCAR

Outra historia muito curiosa, e esta verdadeira pois passou-se com uma irmã minha foi o seguinte:

Estando um dia minha mãe a fazer um bolo e apercebendo-se que lhe tinha faltado o açúcar pediu a minha irmã que fosse pedir uma chávena de açúcar à avó. Ela assim fez. Quando chegou à porta do andar de cima esta estava fechado, o que não era habitual. No entanto bateu à porta para que lhe viessem abrir. Depois de várias tentativas e como ninguém lhe vinham abrir a dita porta pensou que a avó não estava em casa e começou a descer as escadas para o andar de baixo. Vinha mais ou menos a meio das escadas quando ouviu barulho de passos e olhando para a porta de vidro que fica ao cima das escadas viu um vulto, uma sombra que passava.

Perante isto pensou que era a avó que afinal estava em casa, voltou a subir a escadas e foi até a porta esperando que a avó lhe viesse abrir. Como isso não aconteceu voltou a bater. Não obtendo resposta e já sentindo-se ofendida pois avó estava em casa e não lhe querer abrir a porta veio-se embora.Estava a chegar ao fim das escadas quando para espanto dos espantos a avó chegou de carro mais o avô parando em frente da casa. Conclusão que lhe fez arrepiar os cabelos: a avó não estava em casa e o que ela tinha visto devia ter sido um fantasma. Ainda hoje continua a jurar que viu todo o que disse ter visto e acredita piamente que a Villa Maria tem fantasmas.
UMA MÃO NA MAÇANETA DA PORTA
É costume durante determinadas épocas do ano, como o Natal ou nas Passagens do Ano, fazerem-se festas com a presença de alguns familiares. Foi durante mais uma passagem de anos como tantas outras que se tinham passado na Villa Maria que se nasceu estas história que a sua interveniente continua ainda hoje a afirmar que tudo é verdade.

Depois do jantar que terminou já noite profunda, todos ficaram na sala de jantar a conversar e a por os acontecimentos em dia, falava-se de mim e uma coisas, de todas as coisas que fazem a vida dos seus problemas e das suas soluções.

Aos poucos e poucos cada um foi dando o assunto por terminado e assim, uma tia que actualmente já vai a caminho dos 80 anos resolveu que queria ir ver televisão, e levantando-se da mesa dirigiu-se para a sala de estar que fica no extremo oposto da casa ao que está a sala de jantar. As luzes não estavam todas acesas, e a Villa Maria como muito grande que é depois de se fazer uma curva do corredor neste caso afastando-se da sala de jantar onde estavam as luzes acesas, vai-se tornando escuro, ela como conhecia a casa não sentiu necessidade de acender as luzes e assim já no escuro chegou à porta do quarto de televisão.
Ao pôr a mão na maçaneta da porta para a abrir e ao fazê-lo sentiu por debaixo da sua, uma outra mão que também estava na maçaneta. Assustou-se, mas ao mesmo tempo pensou que se tratava do cunhado que lhe estava pregando uma partida, e dizendo: - Carlos se pensas que me metes medo estas muito enganado. Abriu a porta do quarto e ao acender a luz é que viu que não era o cunhado, pois estava totalmente sozinha.

Escusado será dizer que desatou aos gritos e desatou a fugir voltando a sala de jantar onde foi encontrar o cunhado no lugar onde ele ficara quando ela havia saído da sala.

Esta é outras história que ainda hoje continua sem explicação e que certamente nunca a terá.

AS NOITES DE TEMPORAL
Dizem também as histórias populares que nas noites de vendaval em que o vento sopra com força e a chuva caí impiedosa que quando se passa no acesso da entrada à casa desde o caminho até ao portão da frente se ouvem gemidos baixos e sossorros entre as árvores e as palmeiras que ladeiam a entrada, dizem também que se se olhar com atenção se vê um fumo branco esverdeado, fogos-fátuos de um outro mundo que nos tentam assustar.

A chuva bate com força na vegetação e nas árvores altas fazendo com que o escuro ainda se torne mais escuro e tenebroso, o ruído do bater insistente dos pingos da chuva nas ramagens confunde-se com o bramir do mar e os uivos do vento. Todo isto faz com que o local adquira um aspecto de respeito e de fora do comum. No entanto ir disto, que eu considero os estranhos aspectos da vida real até ao mundo do desconhecido é um salto muito grande e que costa a dar.

Para mim isto não passa do crer de cada um de nós pois desde há muitos anos, tanto de noite como de dia passo por estes caminhos e nunca vi ou ouvi qualquer barulho ou vi qualquer luz que não soubesse explicar. No entanto acredito que para as pessoas que crêem no sobrenatural isto seja possível e se torne real. A imaginação é algo muito poderoso e quando queremos acreditar em algo, esse algo pode tornar-se real ao ponto de nos fazer ver coisas que não existem.

É portanto esta mais uma historia que faz parte do historial de lendas que se criaram à volta da Villa Maria e que contribuem para a sua mitologia.
REINO DA ATLÂNTIDA

Nas grandes civilizações da antiguidade dizia-se que para além das colunas de Hércules, hoje Estreito de Gibraltar e onde agora se estende o atlântico, dominava o poderoso império dos Atlantes.

Este império era constituído por dez reinos, sob a protecção de Poséidon, pelos que os Atlantes eram exemplares, no seu comportamento, não se deixando corromper pelo vício e pelo luxo.

Toda a Atlântida era sonho e delicia. A terra produzia madeiras preciosas; havia minas de metais nobres; o clima excepcional favorecia uma agricultura florescente; as casas e palácios evidenciavam conforto e riqueza; havia estradas e pontes óptimas. O desafogo económico proporcionava o aparecimento de sábios e de artistas.
Todos se compraziam apenas em gozar e explorar as riquezas do seu reino, mas não deixavam de se ensaiar na arte da guerra.
Assim não foi difícil aos Atlantes defenderem o seu território dos ataques daqueles que, levados pela inveja, ansiavam conquistar a tão prodigiosa Atlântida. De tal modo se portaram na defesa da terra que o orgulho desabrochou e deu-se pela primeira vez a ambição de alargar os domínios do reino.

O poderoso exercito Atlante alastrou por todo o mundo conhecido de então e dominou os povos. Inebriados pelo triunfou, deixaram-se dominar pelo orgulho e pela vaidade, caindo no luxo e na corrupção, desrespeitando os deuses.
Zeus convocou um concilio para que se aplica-se um castigo aos Atlantes, agora tão depravados. Em consequência, a terra tremeu violentamente, o céu escureceu como se fosse de noite, o fogo lambeu as florestas, o mar galgou a terra e engoliu aldeias e cidades.

A Atlântida e toda a sua prosperidade desapareceram para sempre na imensidão do mar, mas nove dos montes mais altos dessa linda terra ficaram a descoberto. Muitos anos mais tarde essas pequenas ilhas, restos do grande continente, foram povoadas e são hoje as ilhas dos Açores que, pelo clima bonançoso e bom, pela beleza das suas paisagens, lembram a própria Atlântida.
LENDA DA LAGOA DO GINGAL

No século XV, vivia na freguesia dos Altares, na ilha Terceira, Pérola Rego, descendente dos Regos e dos Baldaias pela linha masculina e dos Pamplonas pela feminina. Era uma bela jovem de cabelos louros escuros, brilhantes e fartos, olhos castanhos de cetim, pele rosada e fina. Estes predicados assim como a doçura e bondade de coração granjeavam-lhe um grande numero de apaixonados, desejosos de a roubarem a tranquilidade do solar paterno.

Uma bela manhã, Pérola, levada por uma fascinação estranha, desceu o eirado e foi espelhar-se na água da cisterna. Uma fada, que queria defender Pérola de pretendentes fascinados, mas que não a amavam verdadeiramente, estava aí escondida á sua espera. Produziu o encantamento, apossando-se da vaporosa imagem reflectida na água. Começou então a magicar a forma de surpreender Pérola Baldaia durante o sono, para a arrebatar dos Altares e conduzir ao seu palácio encantado, situado no interior da ilha, junto ao pico do Vime.
O palácio imaginado pela fada para a bela jovem tinha jardins viçosos e bosques com árvores indígenas, tais como o azevinho, o Sanguinho, o cedro e o pau branco. Havia ainda campos onde louros trigais se enfeitavam do vermelho das papoilas. No centro ficava o castelo, deslumbrante, todo em mármore, marfim, prata e oiro.

À meia noite da véspera do dia de S. João, quando as estrelas brilhavam suavemente e a lua era rainha, Pérola foi levada pela fada nas suas asas brancas.
A notícia do rapto espalhou-se e os jovens enamorados recorreram a uma feiticeira que lhes revelou o palácio encantado onde estava a pretendida. Uns queriam ir em som de guerra sitiar o castelo, Outros mais cuidadosos, consultaram uma velha benzedeira dos Biscoitos que sentenciou saíram com alaúdes, à maneira de trovadores, cantando versos feiticeiros e executando marchas de magia, até avistarem o palácio encantado.
Alertou-os para o facto de que encontrariam uma inscrição sobre um rochedo e que, se fosse gravado a prata, indicaria o modo de atrair Pérola, mas, se fosse gravado a fogo, o seu feitiço não tinha força para vencer e nenhum deles merecia o amor da jovem.
Partiram de madrugada e iam cantando os versos ensinados pela benzedeira. De repente, um grito de alegria ecoou, enquanto ao longe aparecia o palácio brilhando ao sol nascente.

Desceram a encosta, percorreram um vale, subiram uma colina e, mágicamente, no sitio onde momentos antes tinham visto o palácio, agora só aparecia uma lagoa. Encontraram logo uma inscrição gravada a fogo que dizia o seguinte: "Aqui. neste espaçoso lago, escondeu-se o palácio da lenda Pérola, donzela de cabelos loiros".

Voltaram desiludidos e desistiram da ideia de conquistar Pérola, mas a mãe da jovem, cristã piedosa, na própria manhã do rapto fora-se ajoelhar diante da imagem de S. Roque e pedir a sua intervenção. No fim da prece ouviu uma voz que lhe segredou : - Vai tranquila, a tua filha está ao anjo da guarda. Os pretendentes foram vencidos e, no dia de S. Pedro, à hora do pôr do sol, Pérola surgira no Terraço do solar, acompanhada por um Arcanjo, num batelo de marfim puxado por um cisne.

Assim sucedeu. Pérola voltou a casa e alguns anos mais tarde um bravo e digno cavaleiro que vestia a armadura refulgente do Santo Gral apaixonou-se e desposou a bela jovem.
O lago que escondeu o palácio encantado lá ficou, embelezando a paisagem campestre, e passou a chamar-se Lagoa do Gingal por ali existir uma ribanceira coberta por um belo ginjal.
A LAGOA DO NEGRO

Alguns séculos atrás, na ilha Terceira, havia uma família nobre que tinha, como era hábito na altura, os seus criados negros.

A morgada fizera um casamento imposto pelo pai e os interesses da família onde não havia amor, mas em que a mulher, por educação e honestidade, se submetia ao marido. Porém ninguém manda nos sentimentos, nem mesmo a mulher mais digna.
Os criados negros de então não eram vistos como seres humanos com sentimentos. Ninguém sequer imaginassem que tivessem atrevimento de se apaixonarem pela sua senhora. Contrariando todas estas leis, criadas pelos interesses dos homens, o escravo negro e a morgada enamoraram-se, denunciando apenas no olhar tímido, mas expressivo, o sentimento que os unia.
A vida monótona da morgada era então iluminada pela alegria do amor que nunca tinha sentido. Em certas tardes, quando do jardim do seu solar olhava o mar e o horizonte, cantava uma suada balada de amor. Outras vezes, a amargura arrochava-lhe o coração porque sabia que estava presa até à morte a um homem que não amava. Então, quando se sentava a bordar, lágrimas abundantes desciam-lhe pelas faces.

O escravo negro via tudo isto sem que nada pudesse fazer. Convenceu-se de que a sua presença naquela casa só causava mais sofrimento á morgada que também o queria.
Numa noite, depois de ter pensado muito, fugiu e caminhou por montes e difíceis veredas. A certa altura parou e decidiu ficar ali, longe dos homens, chorando a sua desdita. Chorou tanto que as suas lágrimas ao caírem no chão se juntaram e fizeram um grande lago.

Esta lagoa ainda lá está a embelezar a ilha Terceira e, para que nunca seja esquecida o sofrimento do negro e o seu amor pela morgada, chamou-se-lhe Lagoa do Negro.
URZELINA
Na crista da enorme cordilheira, que atravessa a ilha de S. Jorge de ponta a ponta, erguia-se, há muitos, muitos anos atrás, um majestoso castelo do príncipe Romualdo. A sua corte faustosa entregava-se a orgias, banquetes e outras diversões, que causavam espanto na população trabalhadora. Uma madrugada, a trombeta real ecoou através das montanhas, anunciando a grande caçada que iria começar ao toque das Avé Marias.

Em frente ao palácio foram estacionando as seges, os cavalos, muitos criados de libré, carregados com os apetrechos destinados á caça.
Os pobres e maltratados trabalhadores do campo já tinham começado um dia de trabalho duro, quando o segundo toque de trombeta soou e a comitiva do príncipe partiu a grande velocidade, rindo de alegria ao galgar os montes.

Os trocazes voavam espavoridos pela gritaria e Lina, a amada do príncipe, serpenteando com o cavalo por entre as urzes e rochedos em perseguição de alguns pombos que lhe fugiam, acabou por se afastar da comitiva.
Quando deram pela sua falta, esqueceram a caça e procuraram Lina por todo o lado, mas não a encontraram. Voltaram ao palácio, a alegria deu lugar ao desanimo e à tristeza.

O príncipe mandou encerrar todas as portas a festas e diversões e, durante as noites e dias seguintes, a sua voz soluçante gritava: " Lina! Lina! " enquanto corria como louco esfarrapado e desgrenhado por precipícios e ravinas á procura da sua amada.
Uma noite, quando voltava ao castelo, Romualdo estacou com um quadro terrível. No fundo de uma ravina, um cavalo morto esmagava com todo o seu peso a querida Lina. O príncipe, correndo, desceu o precipício mas o cadáver já a apodrecer e entre lágrimas cortou uma trança dos seus lindos cabelos louros. Apanhou um ramo de urze e aí enrolou a trança.

Voltou ao castelo, desalentado, como morto. Nunca mais quis saber de festejos e os cortesãos começaram a chamar aquela planta Urze de Lina. Passado pouco tempo, o príncipe morreu de desgosto e, com o decorrer dos anos o esquecimento da hepocrita corte que o adulava, a sepultura ficou completamente coberta de Urze de Lina.
Em homenagem à dor do príncipe que Deus duramente tinha castigado, chamou-se Urze de Lina e mais tarde por aglutinação Urzelina à povoação à beira mar, onde faziam eco as atrocidades praticadas no castelo e onde vivia o povo que sofria a tirania dos cortesãos.

A corte aduladora e hipócrita, sem respeito pela morte do príncipe redobrou as festas e a tirania ao povo, mas foi castigado. Deus, que vela pelos pobres, fez rebentar um vulcão nos alicerces do palácio, a lava soterrou toda a corte maldosa e destruiu todo a volta, correndo até ao mar.
LENDA DA FAJÃ DE SÃO JOÃO

Decorria o ano de 1757 e na fajã de S. João, em S. Jorge, vivia uma pobre mulher, já de idade que ás vezes era zombada pelos vizinhos. Nesse tempo, o pão de milho era a base de alimentação e era cozido em todas as casas, quase sempre ao sábado. Depois limpava-se, enfeitava-se com flores nascidas nos pequenos jardins e tudo ficava pronto para o domingo, dia de descanso.
Estava a dita velhinha nestes afazeres de por o lume ao forno e amassar o pão, quando bateram á porta. Como tinha as mãos sujas, falou de dentro, mandando abrir.

A porta rodou sobre os cachimbos e apareceu ema formosa senhora a quem a velhinha disse com agrado: - Entrai, vinde para junto do meu lar, que gosto de dar a todos do pouco que deus me deu.
Mas a senhora, com voz de encantar, Respondeu-lhe: - Ide dizer a toda a gente que fuga deste lugar e vá para a serra antes de chagar a noite. Um caso estranho vai dar-se em breve.

A senhora fechou a porta e logo a velhinha deixou o que estava a fazer. O lume apagou-se no forno e o pão ficou por acabar de amassar, mas foi de porta em porta, chamando e dizendo a todos que fugissem de casa e da fajã, porque ia dar-se um acontecimento terrível.
Mais uma vez as pessoas zombaram da pobre velha e ninguém acreditou em tão triste profecia. Mas ela não hesitou e, acreditando no que lhe tinha dito a senhora, pôs-se a caminho da serra, só com a filha, única pessoa da família e da vizinhança que acreditou. Durante a caminhada, não deixava de cismar no triste caso que se iria dar e nas pessoas que, por serem incrédulas, tinham ficado em perigo na fajã de S. João.

Pela meia noite a terra começou a baloiçar e o mar uivava ao longe com um som sinistro, deu-se um grande terramoto. Muitas encostas desabaram, rochas enormes rolaram pela fajã, indo parar ao mar, derrubando casas e destruindo cultivações na sua passagem veloz. Os gritos das pessoas, o barulho da terra e das rochas vibraram no mar.
Quando a manhã despertou e o sol começou a subir, a fajã de S. João estava totalmente destruída e muita gente, que zombara da velhinha, dormia na paz do senhor.

O povo passou a dizer que a velhinha que fizera a profecia tinha falado com a Virgem Santa Maria e que, por ter tido fé, se tinha salvo e á filha.
LENDA DA CALDEIRA DE SANTO CRISTO

Há muitos anos, como agora ainda acontece, por vezes, as pessoas das várias freguesias de S. Jorge iam ás fajãs passar partes do ano com os seus gados ou apenas durante um bocado do dia para pescar, apanhar lapas. Numa das fajãs havia uma linda e mansa lagoa de água salgada.

Ali apanhavam amêijoas que se desenvolviam abundantemente nas águas límpidas e mansas. Outras vezes apanhavam lapas, polvos, moreias, por entre as pedras da costa, nas poças que ficavam nas redondezas da lagoa.
Certo dia, um homem de cima veio cá abaixo à caldeira. Andou muito tempo por um atalho custoso e apertado e, quando chegou junto à caldeira, sentou-se para descansar um pouco antes de ir pescar. As pernas até tremiam do esforço da descida mas, com a vista que dali se desfrutava, depressa se sentiu descansado.

Quando vagueava com o olhar pela lagoa, deparou-se com um objecto que lhe parecia ser uma imagem do Senhor Santo Cristo. Levantou-se logo e pegou na imagem que, apesar de estar metida na água, não estava nada apodrecida. Ficou todo contente com aquele achado. E não era para menos porque, naqueles tempos, achar uma garrafa na costa ou um pranchão era já uma sorte, quanto mais um santinho tão bonito.
Quando voltou para casa ia tão satisfeito que a difícil subida nem lhe custou nada. Puseram o Santo Cristo no melhor quarto da casa.

Mas no outro dia pela manhã, para desgosto e espanto de toda a família, o santo já tinha desaparecido. Procuraram-no e vieram encontra-lo no areal, nas margens da caldeira. E o episódio repetiu-se. Por fim alguém disse:
- Santo Cristo quer estar lá em baixo á beira da caldeira.
O povo juntou-se e decidiu fazer uma igreja. Pensaram levantá-la na outra banda da lagoa, mas, quando tentaram levar para lá a pedra, não conseguiram. O lugar era ali perto de onde Santo Cristo tinha desaparecido.
Depois de muito sacrifício e trabalho, a igreja ficou concluída e lá puseram a imagem.

Assim, aquela linda fajã passou a chamar-se Caldeira do Santo Cristo.
E o povo, que gosta muito de se divertir para esquecer trabalhos e sofrimentos, em pouco tempo começou a fazer uma festa muito grande e bonita, onde os festejos religiosos se completavam com diversões profanas. Bailava-se alegremente e era frequente ouvir, durante a dança os homens entoarem esta cantiga:

O Senhor Santo Cristo
Onde foi fazer morada?
Para a rocha da Caldeira,
perto da água salgada.

A certa altura o senhor padre, por qualquer razão, não queria o Santo Cristo na igreja e decidiu leva-lo para casa. Pegou na imagem, mas não se conseguiu mexer, os pés ficavam aferrados ao chão. Disse então ao sacristão:

- Ajuda-me aqui que eu não posso andar.
O sacristão bem tentou, mas por fim confessou:
-Ó senhor padre, eu também não consigo dar passada!
- Então deixa-se o santinho aqui - disse o padre.

E assim foi. Logo os pés e as pernas ficaram ágeis e o padre e todas as pessoas se convenceram que era ali que santo Cristo tinha de ficar.
A PONTA FURADA

Há muitos anos atrás, S. José vivia lá para norte de S. Jorge. Um belo dia meteu-se nortes a baixo no seu barquinho, trazendo consigo Nossa Senhora e o menino Jesus ainda pequenino. O mar estava manso e o santo vinha sempre a navegar junto à costa para apanhar a abrigada de terra.

Tudo correu muito bem até que a Sagrada Família chegou próximo da Ponta do Garajau. Aí deparou-se com uma ponta de terra muito alta que entrava pelo mar dentro. S. José esteva ansioso por chegar ao Toledo e já se sentia cansado de remar. Ter agora que contornar a ponta de terra era-lhe muito difícil.
Pensou no que havia de fazer. Sem muitas demoras e confiante no poder de Deus, levantou o dedo indicador e com ele tocou mais ou menos no meio da ponta. Como se fosse um bocado de massa de milho, logo a terra cedeu e fez-se um buraco enorme por onde passou facilmente a Sagrada Família no seu barquinho.

S. José, feliz, avançou e em pouco tempo estava no Toledo, onde fixou residência para sempre. Tornou-se muito querido do povo ao ponto de ser feito padroeiro do curato.
Esta ponta que esta situada entre S. António e o Toledo ficou com um buraco arredondado no meio como se fosse um olho de peixe, mas tão grande que o seu diâmetro tem a altura da torre da igreja. A parte da ponta que S. José empurrou com o dedo ficou um pouco á frente, formando um pequeno ilhéu que imerge ligeiramente das águas.

A ponta, pouco a pouco, pelo seu formato, fruto de um acontecimento tão estranho, passou a chamar-se Ponta Furada.
S. José ainda hoje é um santo de muita devoção no lugar do Toledo e por isso assim canta o povo:

Este povo tem fé
no bondoso S. José
que é o seu padroeiro.
S. José é meu padrinho
que eu adiro com carinho
e no seu é primeiro.
NOITE DOS DIABRETES NA FAJÃ DE VASCO MARTINS

Em tempos idos, acreditava-se que em certa noite do ano, mais precisamente na noite de dois de Fevereiro, os diabretes desapareciam, fazendo as mais diversas e inesperadas diabruras e assustando as pessoas, que se costumavam fechar em casa e fugiam nessa noite da costa, como o diabo foge da cruz.
Ora, no lugar do Toledo, havia um grupo de homens que se julgavam mais corajosos que os outros resolveram enfrentar os diabretes.

Combinaram o que iam fazer e escolheram o lugar. Chegado o dia, dirigiram-se para a fajã de Vasco Martins, armados de paus, e foram pescando, pela noite adentro, sempre à espera que os diabretes fizessem das suas. O tempo foi passando, até que chegou a meia noite sem nada acontecer. Regressaram a uma casa lá na fajã, sentaram-se a conversar e a rir, sempre armados, cada um com um pau e um foicinho.

De repente começaram a ouvir uma grande barulheira: Parecia que as telhas estavam-se a partir-se, outras a serem arrastadas; ouvia-se pancadas fortes nas portas e janelas. O barulho era tão grande que parecia o fim do mundo e os homens, que se achavam muito destemidos, começaram a tremer de medo e não se arriscaram a ir sequer há porta para ver o que se estava a passar.
Ali ficaram o resto da noite, aconchegados a um canto, disfarçando como podiam o seu medo, e só quando o barulho parou e a manhã clareou é que tiveram coragem de sair para ver o que tinha acontecido.
Qual não foi o seu espanto quando olharam para o telhado e viram que nem uma telha não estava partida nem uma fora da sua carreira e nas portas não havia sinal das pancadas.
A novidade espalhou-se e daí em diante as pessoas do Toledo nunca mais gostaram de brincar ou gozar com os diabretes.
Portão em arcada de acesso à Baía de Villa Maria e antiga casa dos barcos


Vista geral, em primeiro plano a Baía do Raulino

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

A Arte da Capoeira

Portugal, África e Brasil:A aventura transoceânica.



I - O caminho da Capoeira

Prefácio

Herança africana legada à cultura brasileira, o jogo da Capoeira significa valioso contributo à formação da nossa identidade cultural.
Neste livro estabelecemos os caracteres delineadores da Capoeira, propiciando uma oportunidade de iniciação à arte. Na leitura desse tema ampliam-se as possibilidade de compreensão da nossa história, onde se insere a Capoeira e que preservou a lembrança das lutas sociais que forjaram a cidadania brasileira.
Esta obra é um passo para se promover o resgate das tradições da Capoeira divulgando essa bela expressão nacional.




“Em nome do Deus de todos os nomes
Javé, Obatalá, Olorum, Oió.
Em nome de Deus, que a todos os Homens
nos faz da ternura e do pó.
Em nome do Povo que espera
na graça da fé, à voz do Xangô
o Quilombo Páscoa que o libertará.
Em nome do Povo sempre deportado
pelas brancas velas no exílio dos mares
marginalizados no cais, nas favelas e até nos altares.
Em nome do povo que fez seu Palmares,
que ainda fará Palmares de novo
Palmares, Palmares, Palmares do Povo.”



Missa dos Quilombos

O que é a Capoeira?



'Os negros usavam a Capoeira
para defender sua liberdade.
'


Mestre Pastinha

Capoeira é luta, jogo e dança. Brincadeira de movimentos perigosos executados com graça, malícia e muitos rituais. Dança negra em que prevalece a agilidade da esquiva e a esperteza da fuga. Os pés que deslizam sobre o chão podem desferir golpes fatais: de repente, ante os olhos surpresos do adversário, o gesto rápido. O ataque fulminante. Então, prostrado, o inimigo se dá conta de que foi vítima da mandinga. Isto, se ainda tiver vida... Essa dança - enquanto forma de expressão corporal - possui uma linguagem onde cada gesto significa e representa idéias e sentimentos, emoções. Sensações.


“No tempo em que o negro chegava/fechado em gaiola/Nasceu no Brasil/Quilombo e quilombola/E todo dia/Negro fugia/ juntando a curriola/De estalo de açoite, de ponta de faca/ e zunido de bala/Negro voltava p’ra argola/ no meio da senzala/E ao som do tambor primitivo/ berimbau, maraca e viola/Negro gritava: abre ala! Vai ter jogo de Angola”


Mauro Duarte & Paulo Cesar Pinheiro,
Jogo de Angola

O jogo da Capoeira é a síntese da dança. A sua essência, disfarçada em brinquedo: vadiação; distração de quem busca extravasar cada função interior nos gestos exteriores. Nessa dança se manifesta a tradição milenar da cultura negra de reverenciar as origens, cada vez que se repetem gestos ancestrais,. renovados: o jogo da Capoeira é um vínculo com antepassados que praticaram os mesmos atos. A habilidade, agilidade e destreza do capoeira estão expressos com astúcia no balanço dos braços, no arremesso oportuno dos pés, no meneio desconcertante do tronco, na harmonia de todo o corpo em gestos circulares que não perdem a continuidade - como se fora um ininterrupto perambular pelo círculo, em estreita ligação com o solo.
A Capoeira consiste numa dança onde o emprego dos movimentos arriscados - dado à circunstância de camuflar possível contenda - envolve os participantes e contagia quem assiste. A natureza dúplice de luta disfarçada em brincadeira dá forma a um jogo de movimentos combinando objetividade e precisão no ataque com defesas velozes, originais, em que o corpo é utilizado no limite dos recursos de elasticidade e flexibilidade muscular, compondo assim uma bela plástica humana em gestos despojados, naturais, numa estranha dança do perigo. É ainda mais a dança da Capoeira: o contato com o chão, intenso como o vínculo dos filhos com a mãe terra,. que envolve e protege, gera e alimenta a vida, acolhendo a dança que é também em seu louvor.
A postura respeitosa dos capoeiras uns com os outros, para com o jogo, o "chão", o berimbau e o atabaque, se explica no propósito maior da dança: unir. Ligar estreitamente, como as mãos que se apertam ao final de cada jogo, na saudação dos camarás.
O jogo da Capoeira é o corpo e a essência de 500 anos de luta de resistência negra, constituindo-se na primeira e original manifestação libertária da cultura brasileira; é o corpo e a força dos ritos que preservam os mitos e os arquétipos da nossa gente. Participando ativamente da resistência comum às variadas formas de dominação física e cultural, desde o seu aparecimento nas terras brasileiras a Capoeira insurge-se em defesa da construção de uma nova identidade coletiva: esse jogo não foi somente um fermento revolucionário; é realmente um instrumento de transformações firmado nas mais antigas raízes culturais do povo brasileiro; instrumento e voz de um povo na luta por um diálogo igualitário, respeitoso e fraterno entre todas as pessoas.


“Dança guerreira/Corpo do negro é de mola
Na Capoeira/ Negro embola e desembola/E a dança que era uma festa pro povo da terra/Virou a principal defesa do negro na guerra/Pelo que se chamou libertação/E por toda força, coragem e rebeldia/Louvado será todo dia/Que esse povo cantar e lembrar o jogo de Angola/Da escravidão no Brasil”


Nas rodas do jogo a luta da Capoeira é um brinquedo guerreiro, uma diversão entre camaradas unidos na mesma luta, irmãos no combate da cidadania. Quando o jogo degenera em luta explícita, já não ocorre a Capoeira. O objetivo da luta é tornar o capoeira senhor de si mesmo e integrado ao grupo: é no recesso da comunidade que ocorre o aprendizado e a prática do jogo, de forma coletiva e fraterna. E, se às vezes isto não acontece, não se pode falar em Capoeira na plenitude; quando muito em adestramento nos movimentos básicos, de forma desvinculada dos objetivos e fundamentos da arte.


O ponto alto da luta sempre foi resistir: contra o preconceito, a discriminação disfarçada; contra oportunistas e aproveitadores astuciosos que se apropriam dos valores da nossa cultura e tentam adulterá-la, fazendo isto de tal forma que ao negro é mesmo vedado o acesso à manifestação que deram origem. O jogo da Capoeira é a luta de resistência de um povo que sempre reagiu à dominação das elites que detêm o poder: a luta da Capoeira é insubordinação, é subversão, é reação, mais que nunca reafirmando os principal valor do homem: liberdade.

“Capoeira vai lutar/já cantou e já dançou/não pode mais esperar.../Não há mais o que falar/cada um dá o que tem/Capoeira vai lutar.../Vem de longe, não tem pressa/mas tem hora p’ra chegar/ já deixou de lado sonhos/dança, canto e berimbau/abram alas, batam palmas poeira vai levantar/ quem sabe da vida espera dia certo p’ra chegar/ Capoeira não tem pressa/mas na hora vai lutar...”

Geraldo Vandré, Hora de Lutar

Luta negra. Presente no cotidiano dos morros, terreiros, favelas, praças e ruas. Companheira do trabalho e diversão das feiras e festas, acompanhando o negro em qualquer ambiente social.

Itinerários

“Fomos ao rio de Meca/ Pelejamos e roubamos/E muito risco passamos/ e vela./E árvore seca./(...) A renda que apanhais/O melhor que vós podeis,/Nas igrejas não gastais/Aos pobres pouco dais/E não sei o que lhe fazeis.”

Gil Vicente,
Exortação da Guerra

Portugal, África e Brasil: a aventura transoceânica

O período histórico onde se situa o descobrimento do Brasil e a conseqüente formação da nossa cultura teve o valioso testemunho dos relatos e narrativas deixadas por escritores portugueses da época.
A literatura lusa - constituída ainda no período medieval - alcançou o apogeu com Gil Vicente, Camões e Fernão Mendes Pinto, justamente na fase em que é completada a expansão do povo português no mundo. O Brasil, portanto, é contemporâneo dessa expansão, nela se inserindo tanto o fato primordial da sua descoberta e colonização, quanto o dos belos trabalhos produzidos pela talentosa literatura portuguesa terem por motivo inspirador os fatos decorrentes da sua descoberta - além da conquista na África.

A língua portuguesa, instrumento dessa literatura e que com ela se aprimorou, deriva do latim popular, que teria chegado à Península Ibérica no século III antes de Cristo.
Na história literária - assim como na história geral - encontramos divisões em épocas ou períodos, compreendendo fases de tempo em evolução cronológica e englobando conjuntos de obras literárias com características comuns. Nesse trabalho, os historiadores da literatura consideram se as obras obedecem aproximadamente à mesma ordem de valores estáticos, ao reuni-las com vistas à exposição histórica.
Segundo o Prof. Fidelino Figueiredo, dividindo a literatura portuguesa em eras, temos as seguintes: medieval (do século XII até 1502), clássica (1502 a 1825) e romântica (de 1825 aos dias atuais).

O período medieval da literatura portuguesa se caracteriza pela poesia, reunida em repositórios coletivos (os Cancioneiros), que são os seguintes: o Cancioneiro Português da Biblioteca Vaticana, o Cancioneiro Português Colocci-Brancuti e o Cancioneiro Português da Ajuda.
Esta fase medieval é geralmente considerada como finda no começo do século XVI - quando é representada a primeira obra teatral de Gil Vicente, o Monólogo do Vaqueiro, em 1502. Começa então o período clássico (já contemporâneo do Brasil), onde a literatura produz obras importantes para a compreensão da gente que realizaria a colonização, evidenciando o seu caráter e a perspectiva em que encaravam a nossa terra.

Na fase clássica encontramos os trabalhos literários que mais diretamente se relacionam à nossa história, abordando as conquistas na África, os costumes de Portugal, as viagens de descobrimento na América e análises e observações importantes acerca da sociedade da época.
Salientamos a importância da consulta às obras de Gil Vicente (1460-1536), fundador do teatro português, autor das farsas Juiz da Beira, Clérigo da Beira, Inês Pereira e Quem tem Farelos; dos autos da Barca da Glória, da Barca do Inferno e da Barca do Purgatório. Gil Vicente distinguiu-se ainda como poeta e cronista de costumes ao retratar a vida portuguesa do seu tempo.

Outro vulto de destaque para a compreensão do que era a gente portuguesa é Luis de Camões (1524-1580), não somente o grande poeta lírico do período clássico mas o mais importante poeta da língua portuguesa, como épico em Os Lusíadas, ou lírico, com as Rimas. Dramaturgo, distinguiu-se com as comédias El-Rei Seleuco, Anfitriões e Filodemo.
Muitos foram os poetas e romancistas deste período, cujo talento não se ofusca ante o infausto brilho das conquistas na África e no Brasil. Destacam-se: Bernardim Ribeiro (1475-1553), poeta e romancista, autor famoso de Menina e Moça; Francisco de Sá Miranda (1495-1558), poeta e teatrólogo: Antonio Ferreira (1528-1559), também poeta e teatrólogo; João de Barros (1496-1570), autor das Décadas da Ásia, prosador e historiador; Damião de Góis (1502-1574), autor da Crônica do Príncipe D. João; Fernão Mendes Pinto (1509-1580) viajante e prosador, autor do relato Peregrinação, de suas viagens ao Oriente; e Diogo do Couto (1542-1616), continuador das Décadas da Ásia, companheiro de Camões em Moçambique, autor do Soldado Prático.

À época, destacaram-se como historiadores mais especificamente do descobrimento e início da colonização do Brasil: Pero de Magalhães Gandavo ( ? - 1576), autor da História da Província de Santa Cruz e do Tratado da Terra do Brasil; Gabriel Soares de Sousa (1540-1592), autor do Tratado Descritivo do Brasil; e Frei Luis de Sousa (1555-1632), autor da Vida de D. Frei Bartolomeu dos Mártires.
Dentre os escritores brasileiros, um dos primeiros historiadores foi o Frei Vicente do Salvador (1564-1639), nascido na Bahia, o primeiro a fazer uso da prosa literária em sua História do Brasil, que somente seria publicada em 1889. Segundo o crítico José Veríssimo, ao fazermos a lista dos nossos clássicos, com certeza Frei Vicente do Salvador seria o primeiro.

Estes são alguns dos principais autores e trabalhos que nos permitem uma introdução à história do Brasil e seus problemas, com vistas a formarmos a nossa própria crítica do processo de surgimento da civilização brasileira.
Aos amantes da leitura, fica a sugestão para pesquisa e estudo

As origens da Capoeira

São dois pra bater no negro/de pau, chicote e facão/p’ra se safar tem o negro/só dois pés e duas mãos/é a mão pelo pé/ é o pé pela mão
bate na cara/derruba no chão

Sérgio Ricardo, Brincadeira de Angola

As origens do jogo da Capoeira se encontram no princípio da nação brasileira, e seu desenvolvimento acompanhou o relacionamento de negros, brancos e índios no continente americano. A terra descoberta aos olhos do colonizador seria o berço de uma nova cultura - fruto das peculiaridades do ambiente e da forma em que se processavam as relações entre os conquistadores europeus; os ameríndios - primeiros senhores do continente; e os africanos - trazidos à força para realizar todo o trabalho.
No entender do descobridor o novo mundo deveria ser explorado em todos os aspectos, como fonte supridora da necessidade de riquezas fáceis sentida na Europa. E nada mais natural que o emprego do trabalho escravo. De nativos e africanos. Afinal, a nobreza que governava o mundo ocidental gozava do privilégio de ser ociosa. Para as agruras de todos os serviços, somente seres inferiores, aí incluídos todos que não tivessem a pele branca.

A presença dos portugueses na África tem registro desde meados de 1430. Lá, o europeu incentivava astuciosamente as diferenças tribais, fomentando rivalidades entre grupos. Depois, adquiria os prisioneiros feitos por ocasião dos conflitos, negociando com exploradores de toda espécie a aquisição de seres humanos para o trabalho forçado.
A chegada dos colonizadores significava destruição completa para os nativos da África - o provável berço da humanidade, segundo recentes estudos. Os africanos apresados eram obrigados a trabalhar nas plantações canavieiras das ilhas do Atlântico. À época da descoberta do Brasil, Portugal já vivia da exploração de colônias na África, Ásia e no Atlântico. Seu caráter já amolecera na aventura da escravidão. Luis de Camões, que via muito bem com seu único olho, se lamentava de ver sua pátria mergulhada “no gosto da cobiça e na rudeza/de uma austera, apagada e vil tristeza”.

Em 1441, Antão Gonçalves levou a D. Henrique dez negros que trocara por dez mouros colhidos na costa da África. Segundo Azorara, que além de chefe de expedições portuguesas que praticaram massacres nas terras africanas revelou pendores literários, manifestos em crônicas aduladoras, D. Henrique mostrou-se “ledo” ao ver os africanos. Não pelo número, acentuou o cronista, “mas pella sperança dos outros que podya aver”. No ano de 1444 fundou-se a Companhia de Lagos, cuja finalidade era intensificar o tráfico de escravos. No fim do século, Portugal recebia em média 12.000 escravos por ano, provenientes a princípio de Guiné, São Tomé, Príncipe e mais tarde, de Angola, Moçambique e demais regiões africanas. A escravidão tornara-se a mais próspera indústria do país.

O empreendimento desumano cresceu de tal forma que cerca de um século após iniciado, o flamengo Nicolaus Cleynaerts, humanista que se encontrava na corte portuguesa como preceptor dos filhos de D. João III, fez as seguintes observações a respeito do reino ibérico: “Tudo ali pulula de escravos, todos os trabalhos são executados por negros e cativos, dos quais Portugal está tão cheio que, segundo creio, existem em Lisboa mais escravos e escravas dessa espécie do que portugueses livres.”

Foi aí que entramos na história. Os interesses econômicos e ideológicos dos portugueses - “a dilatação da Fé e do Império” - segundo Camões -, não estavam voltados exclusivamente para o Oriente fértil das ricas especiarias, sedas, objetos de valor como tapetes, perfumes, produtos medicinais. Vasco da Gama retornara da Índia com um carregamento de pimenta que permitiu lucros de até 6.000%, quando vendido na Europa. Mas no seu Diário de Viagem ele contava ter percebido sinais seguros da existência de terras a oeste de sua rota. A Espanha já tinha descoberto novos mundos na sua tentativa de chegar ao oriente navegando sempre para ocidente. E Portugal já tinha assegurado para si uma parte desse território, com a Capitulação da Partição do Mar Oceano, mais conhecida como Tratado de Tordesilhas, assinado entre as duas potências de então, em 1494.

Não é absurdo supor que Cabral recebera orientação no sentido de afastar-se ao máximo da costa africana, podendo confirmar a existência dessas terras e delas tomar posse. Essa seria outra tarefa de sua expedição. O descobrimento do Brasil é apenas um episódio da expansão marítima européia, no momento da transição do feudalismo para o capitalismo. As práticas mercantilistas e a predominância dos interesses econômicos sobre os aspectos religiosos e ideológicos se refletem até no nome definitivo que a terra ganha, provocando protestos do cronista João de Barros: “Por artes diabólicas se mudava o nome de Santa Cruz, tão pio e devoto, para o de um pau de tingir panos”.

O início da colonização das terras brasileiras se deu sob o reinado de D. João III, conhecido como O Colonizador em razão das expedições que organizou. Em 1530 uma nova esquadra veio para o Brasil sob o comando de Martim Afonso de Sousa, com instruções similares àquelas emitidas aos navegadores que o antecederam: as suas cinco embarcações explorariam o litoral compreendido entre o Maranhão e o Rio da Prata, capturando os contrabandistas encontrados ao longo da Costa do Pau-Brasil. Entretanto, eram mais amplos os objetivos específicos do Capitão: fundamentar a efetiva invasão da terra, implantando núcleos de povoamento dos portugueses. Pero Lopes de Sousa, irmão de Martim Afonso, relata como isso aconteceu, em seu Diário: “A todos nos pareceu tão bem esta terra que o capitão determinou de a povoar, e deu a todos os homens terras para fazerem fazendas: e fez uma vila na ilha de São Vicente e outra nove léguas a dentro pelo sertão, à borda de um rio que se chama Piratininga; e repartiu a gente nestas duas vilas e fez nelas oficinas, e fez tudo em boa obra de justiça.”

Em meados de 1532 foi introduzido no Brasil o cultivo da cana-de-açúcar e no seu desenvolvimento os colonos fixaram-se à terra, adquirindo glebas e se instalando com plantações e engenhos. Surgiram as duas primeiras vilas brasileiras no mesmo ano: São Vicente e Piratininga. Desobedecendo às ordens reais as povoações não se localizavam na chamada Costa do Pau-Brasil: revelava-se a prioridade dos portugueses - que era a busca dos metais preciosos. A escolha do local para a fundação das vilas facilitava a procura das minas do Peru e do Paraguai, à época em conquista - a ferro e fogo! - pelos espanhóis chefiados por Francisco Pizarro, que destruiriam o Império Inca.

A sede da riqueza dos metais levou os lusitanos a explorarem o estuário platino, organizando entradas com destino ao interior, saindo de Cananéia e Guanabara. A entrada que partiu de Cananéia foi dizimada pelas populações indígenas da região do atual Paraná, mostrando que a dominação das novas terras não seria uma tarefa fácil.
Quem era a gente portuguesa que se propunha a empreender uma tarefa que não se apresentava como das mais fáceis? Àquela altura, segundo Fernando Palha, Portugal importava tudo, desde o pão que comia até a lã que fiava. Nenhum português queria fazer nada: “A prática bissecular da pilhagem no seu próprio país (os impostos escorchantes), a aventura oceânica e o tráfico negreiro, tudo isso minou a resistência moral do povo, dando-lhe até repugnância pelo trabalho.”

Como o Brasil só era habitado por silvícolas, ninguém queria vir para cá - além dos que seriam proprietários das terras. Francisco de Sá Miranda, grande poeta português, mas inegavelmente dominado pela ambição, refere-se ao fascínio das especiarias da Ásia e da África - que o Brasil não tinha - com estas palavras: “ao cheiro desta canela/o reino nos despovoa". Antonio Ferreira, poeta renascentista, retrata bem o espírito da época em Portugal, a ambição do reino pelos metais preciosos: “tudo obedece a este só Tirano/Esta é a idade que chamaram de ouro/Tanto valho, Senhor, quanto entesouro”. Ainda sobre o caráter da nobreza e do povo português ao tempo da descoberta e exploração, fala melhor o holandês Cleynaerts. Diz ele que “se há povo algum dado à preguiça, sem ser o português, então não sei eu onde ele exista (...)”. Esse tal Cleynaerts foi ainda mais direto em suas considerações: “em Portugal somos todos nobres, e tem-se como uma grande desonra exercer uma profissão qualquer”. Outro que também se queixou do caráter dos compatriotas foi Diogo do Couto: “(é) muito antiga esta miséria portuguesa de não saber dar lugar às virtudes nem engrandecer honrosos pensamentos”. Quanto à moral da nobreza - a começar pela família real, que tinha origem bastarda - era a pior possível. Frei Luis de Sousa disse que nela “o vício era posto a cavalo”.

evela Fernão Lopes que D. Pedro I (de Portugal) confessara um dia a Nuno Freire que alguém lhe dissera ter ele um filho de nome João que subiria muito alto, mas ele próprio não sabia qual fosse, pois tinha vários filhos com o mesmo nome, inclusive um deles com a bela Inês de Castro...
Apesar da ausência de ouro e prata, São Vicente adquire contornos definitivos: a primeira unidade produtora de açúcar - o Engenho do Senhor Governador - foi instalada em 1533. Passado um ano chegam as primeiras cabeças de gado provenientes de Cabo Verde. Logo ficou evidente a insuficiência dos núcleos isolados de povoamento para assegurar o domínio português. A maior extensão do litoral brasileiro continuava à mercê de incursões estrangeiras. É hora de D. João III mais uma vez justificar o cognome de Colonizador: seguindo conselhos de um descendente de colonos das ilhas do Atlântico, Cristóvão Jacques, do reitor da Universidade de Bordéus e de outros destaques da corte, resolve implementar a colonização. A tantos bons conselhos se acrescentou a cobiça, objetivamente: manter o monopólio oriental era muito dispendioso e a notícia da descoberta de ouro e prata na América Espanhola valorizou ainda mais o novo mundo.

A ocupação e colonização do Brasil era um imenso desafio para um reino de dois milhões de habitantes. A saída, como no caso do extrativismo vegetal do Pau-Brasil, foi transferir a particulares os encargos desse empreendimento. Baseando-se nas informações emitidas por Martim Afonso, foi estabelecida a divisão do litoral brasileiro em 14 faixas lineares - as Capitanias Hereditárias. Era a repetição da experiência realizada nas ilhas de Açores, Cabo Verde, Madeira, Porto Santo, São Tomé e Príncipe e no Território de Angola, no continente africano. As capitanias foram entregues a 12 membros da pequena nobreza - os donatários - dependentes do aparelho burocrático do Estado. Alguns nem vieram ao Brasil. O pequeno interesse e a ausência de significação econômica destes aventureiros evidencia que a iniciativa privada não acreditava nas possibilidades da terra.

D. João III procurou incentivar os donatários concedendo-lhes amplos poderes, utilizando a ideologia feudal de prestígio e poder associados a extensos domínios territoriais: cada capitão era um rei.
O embasamento jurídico da ocupação da terra era garantido pela Carta de Doação e pelo Foral. A Carta cedia ao donatário uma propriedade de 10 léguas de terra ao longo da costa, em quatro ou cinco lotes, não sujeita a tributos, com exceção do dízimo. Sobre o território total da capitania, apenas a posse. Havia ainda os privilégios da montagem de engenhos, venda de 24 índios por ano em Portugal, redízima das rendas pertencentes à coroa, vintena do Pau-Brasil e dízima do quinto real sobre metais. O Foral era uma espécie de código tributário, destinando os rendimentos dos produtos da terra ao donatário e os da produção do subsolo, mata e mar, cabendo à Coroa. Era ainda pelo Foral que o donatário concedia sesmarias, que não podia retomar - direito privativo do rei. Estabelecia ainda a liberdade de circulação de mantimentos e munições na capitania, definindo a responsabilidade de defesa da terra ao donatário e colonos.

Algumas das características desse processo de colonização são medievais: extensas faixas territoriais entregues a senhores que dispõem de poder absoluto sobre coisas e pessoas. Mas do feudalismo só tivemos alguns traços na estrutura política e jurídica do sistema das Hereditárias. A base econômica era a produção escravista e exportadora, concentrada no mercado externo. O trabalho nunca foi essencialmente servil nem a produção dominial, fechada. E a estrutura de clãs não era propriamente feudal, parental: limitava-se à existência dos laços familiares nobiliárquicos e do enorme poder militar e político dos senhores de terras e escravos.

Genericamente, por intermédio do sistema de capitanias foram consolidados os objetivos de colonização e posse da terra. É comum a avaliação do pouco progresso da colônia neste período responsabilizando os índios e seus ataques. Ora, a resistência à dominação portuguesa era a simples defesa da terra pelos seus legítimos proprietários. Isso além de disporem os invasores de superioridade militar. O problema maior foi a falta de investimentos e a total ausência de interesse em estabelecer relações fraternas com os índios.

Para coordenar as iniciativas de povoamento - então muito isoladas - D. João III criou o Governo Geral. Era sua função combater tribos rebeldes (de preferência aliando-se a outras), promover entradas à procura de riquezas, fomentar a construção naval (que garantiria a defesa contra ataques externos), incentivar a catequese e organizar os colonos na defesa do território, entre outros. Uma das promoções do primeiro governador-geral, Tomé de Sousa, foi a vinda de jovens órfãs que iriam constituir famílias católicas com os colonos.
O verdadeiro poder político da época estava nas unidades produtoras em mãos da classe proprietária. E a máquina governamental atendia a seus interesses.

A classe dominante colonial estava voltada para suas fazendas. Seu poder (e prestígio) estava evidente nas câmaras, milícias, no clero. A civilização do mundo da cruz se impunha pelo arcabuz. Autênticos caudilhos, os senhores de escravos e terras, os homens bons é que conferiam vida às câmaras do período colonial, o que perduraria durante a época imperial. O povo não participava da administração nem dispunha de representação.

Foi nascendo um Brasil bem diferente daquele que sequer tinha esse nome. Nascia também uma nova sociedade, de poucos senhores e muitos trabalhadores, a maioria escravos. Surgiram pequenas vilas, grandes plantações, casas grandes das fazendas e fortificações. Os primeiros donos da terra se refugiaram no interior enquanto o litoral era transformado em canaviais.

Isso tudo não acontecia por acaso. A explicação do expansionismo europeu está no mercantilismo e suas práticas: com o desenvolvimento das muitas formas de acumulação de capital, foi acelerada a transição do feudalismo para o capitalismo. A burguesia mercantil portuguesa (com apoio do Estado absolutista) se estabeleceu na Ásia e África, montando feitorias para a guarda do marfim, metais preciosos, especiarias, tecidos de luxo e homens escravizados. O negócio era excelente - para os mercadores, claro. A venda de tudo isso na Europa ou na colônia do novo mundo dava lucros fabulosos... E não precisava produzir nada: apenas fazer circular as mercadorias.

A simples existência de feitorias não se mostrou satisfatória na América. Para que as novas terras se tornassem um negócio ainda mais lucrativo, aumentando a acumulação capitalista, era imperioso produzir. E para isto, intensificar a colonização. A agricultura comercial foi uma das soluções, baseada na produção de gêneros tropicais, conforme as necessidades do mercado externo; o comércio determinando o empreendimento produtivo. A economia central (metropolitana) era complementada pela colônia.

Houve variações nas formas dos esforços colonizadores nas Américas. Nas colônias tropicais de zona temperada se desenvolveram as denominadas colônias de povoamento, recebendo o excedente demográfico da Europa, como algumas colônias inglesas da América do Norte; nos trópicos surgiram as colônias chamadas de exploração, com uma composição social completamente original, como as colônias portuguesas e espanholas na América do Sul. O traço mais original é que a sociedade se baseava no latifúndio, na extensa propriedade agro-exportadora, denominadas plantation ou hacienda. Nesta sociedade há um terrível contraste entre a riqueza dos colonos branco-europeus, mozambos (filhos de portugueses) ou criollos (filhos de espanhóis) se contrapondo à extrema miséria das populações a eles submetidas, nativas ou africanas. Enfim, a peculiaridade de uma sociedade constituída essencialmente para benefício da metrópole.

Para exercitar a dominação política e econômica, o monopólio é fundamental aos interesses da classe proprietária. Segundo o Bispo Azeredo Coutinho, um dos teóricos do colonialismo português do século XVIII, temos o seguinte enunciado para estabelecer as atividades na colônia: ”(...) É necessário que as colônias, de sua parte, sofram: 1) que só possam comerciar diretamente com a metrópole, excluída toda e qualquer outra nação, ainda que lhes faça um comércio mais vantajoso; 2) que não possam ter fábricas, principalmente de algodão, linho e seda, e que sejam obrigados a vestir-se das manufaturas e das indústrias da metrópole. Desta sorte, os justos interesses e as relativas dependências mutuamente serão ligadas.”


A exclusividade da metrópole e o total domínio das atividades pelos reinóis, comerciantes portugueses, foi garantida com a criação das Companhias Privilegiadas de Comércio. Limitações foram impostas à imprensa e à circulação de livros. Como em todas as épocas, este tipo de censura visava impedir que idéias novas sugerissem à população que essa exploração não era justa e nem resultava da vontade de Deus... São acrescidos impostos, taxas e proibições, definindo que a função econômica da colônia é suprir o que a metrópole não tem condições de produzir - e não concorrer com ela. O lucro deve ser máximo: outro indicativo de que o modelo escravista é a solução. Contra o trabalho livre, o interesse dos proprietários em impedir que os assalariados, com o tempo, se apropriassem de glebas e desenvolvessem atividades de subsistência - já que havia abundância de terras. Ficava assim impedida (por meio da escravidão) a incômoda presença de trabalhadores livres.


Para as elites dominantes a escravidão no Brasil era duplamente lucrativa: incrementava a circulação da mercadoria humana - possibilitando à burguesia traficante a acumulação de lucros -, e garantia elevados índices de produtividade com mão-de-obra escrava de custo mínimo. Enquanto mercadoria o africano trazia altíssimos lucros para os comerciantes da metrópole - o que não era o caso da escravidão dos indígenas, apenas um "negócio local". Quanto aos lucros na produção, a exploração da força do escravo garantia os recursos para a renovação dos meios de trabalho, assalariamento dos poucos trabalhadores especializados e a continuidade do tráfico. Aliás, a manutenção do tráfico era fundamental, visto que o crescimento vegetativo da população negra era insuficiente para atender à demanda. Essas razões terminaram dominando os religiosos que vieram para o Brasil e não apenas deram cobertura ideológica à escravidão, como a praticaram em larga e proveitosa escala. O padre Vieira, a quem se deve tanta indignação contra a exploração dos índios, colocado certa vez diante do dilema de ficar ao lado dos escravistas do Maranhão ou do lado dos silvícolas, não fugiu à conclusão de que era “fácil conciliar a consciência com o interesse”. Foi assim que tivemos desde o século XVI o Poder Temporal e o Poder Espiritual conciliando a consciência com o interesse, a cruz com o arcabuz, a castidade com o estupro, a fraternidade com a escravidão, o direito com a força.

Navegar é preciso...

A expansão marítima teve como significado a escravização dos africanos. Desde meados do século XV os negros foram submetidos ao trabalho nas plantações do sul de Portugal (Algarve), nas minas da Espanha e serviços domésticos em geral na França e Inglaterra.
No decorrer do tempo e como resultado da valorização do tráfico negreiro - uma atividade comercial altamente lucrativa - as formas de exploração sobre o continente negro foram se sofisticando. Chefes de grupos tribais eram corrompidos por mercadores europeus em troca de tecidos, jóias, metais preciosos (como ouro e cobre), armas, tabaco, algodão, cachaça e mesmo búzios - considerados objetos sagrados, e até funcionando como moeda.


As incursões com o objetivo de apresar nativos foram se tornando raras, já que os sobas, chefes locais, se encarregavam da apreensão da mercadoria, inclusive organizando ataques a outras tribos. O comércio começava a ser feito harmonicamente...
Ao serem embarcados nos portos da África os negros eram batizados pelos padres encarregados de convertê-los ao cristianismo e marcados com ferro quente. A marca servia também para distinguir os batizados daqueles que ainda não haviam recebido os sacramentos... Viajando nos porões dos navios negreiros, chamados tumbeiros, amontoados como coisas, na mais completa promiscuidade, inúmeros africanos morriam em razão dos maus tratos e doenças, dos ferimentos diversos e ainda sucumbindo ante a condição desumana a que eram submetidos. A dor imensa causada pela perda da liberdade, o afastamento de tudo que lhes era caro, provocava o banzo - sentimento de revolta, dor, pesar e nostalgia. Depois, vinha a morte. Rugendas fez o registro: “Tenha-se a imagem cruel do negro em face da separação de tudo quanto lhe era caro e sejam recordados os efeitos do mais profundo abatimento ou mais terrível desespero de espírito, unido às privações do corpo e às provações da viagem. Então não se estranhará a baixa mortal de tantos, no alto-mar.”

Na chegada às terras brasileiras os negros eram leiloados. E as melhores peças de imediato adquiridas por capatazes ou pelos próprios senhores, que não raro se dedicavam à escolha cuidadosa dos cativos.
A vida rural predominava com características de exploração que perduram até os dias atuais. Aliás, têm um forte sabor de atualidade as observações feitas por frei Vicente do Salvador a respeito dos hábitos extrativistas cultivados pelos colonizadores europeus: “Não só os que de lá vieram, mas também os que nasceram cá, não usam da terra como senhores, mas como usufrutuários, só para a desfrutarem e a deixarem destruída.”


Os africanos trabalhavam nas lavouras e tarefas domésticas nas casas dos senhores. Viviam nas senzalas, quase sempre formadas de muitas construções apertadas umas às outras. Na senzala e na casa grande, onde moravam os donos dos engenhos, o proprietário era senhor absoluto. Os negros eram submetidos aos trabalhos forçados e cabia aos feitores estabelecer a disciplina e garantir a produtividade dos escravos.
Nos séculos XVI e XVII o Rio de Janeiro, Salvador e Recife foram os mais importantes centros receptores de negros sudaneses - como os iorubás, geges, haussas e minas; de bantos - como os angolas e os cabindas; e de malês, de idioma árabe e islamizados.


Um alto preço foi pago em razão da cruel valorização mercantilista do homem negro, absurda fonte da riqueza dos que traficavam e dos que o utilizavam, como afirma Herbert Aptheker: “Em quatro séculos, do XV ao XIX, a África perdeu, entre escravizados e mortos, 65 a 75 milhões de pessoas e estas constituem uma parte selecionada da população, uma vez que ninguém, intencionalmente, escraviza os velhos, os aleijados, os doentes”.


Afonso Taunay estima que teriam entrado no Brasil, nos séculos XVI, XVII e XVIII, respectivamente 100.000, 600.000 e 1.300.000 negros escravizados. Arrancados à força da sua terra, uma vida de sacrifícios os aguardava: trabalho árduo de sol a sol nas grandes fazendas-engenhos de açúcar, por exemplo. Tão grande era o esforço que um africano sobrevivia em média de sete a dez anos. Chegar ao Brasil já era uma demonstração de incrível resistência: cerca de 40% dos negros malungos, denominação para os aprisionados e transportados, pereciam durante a viajem.


Charles Ribeyrolles discorreu longamente acerca dos trabalhos desenvolvidos pelos negros no Brasil: “Quem cavou a terra, quem abriu as galerias, desviou as correntes, lavou as areias, achou o ouro e os diamantes? Os negros. As tribos dos índios foram escorraçadas pelos colonos proprietários, de floresta em floresta ou de morro em morro. Mas quem arroteou os terrenos e cultivou o solo, ou quem semeou, plantou e colheu? Os negros. Quem aprontou os trabalhos do campo, tão rudes e penosos, em plena zona tórrida, e quem se encontrava a mourejar nas usinas, moinhos, estaleiros e estradas? Os negros.”


Já foi dito que os escravos faziam de tudo. Eram as mãos e pés do senhor de engenho. As riquezas produzidas no Brasil dependiam desses trabalhadores. André João Antonil, jesuíta que analisou nossa vida econômica e social em seu Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas, escrito no início do século XVIII, noticia a necessidade da importação de trabalhadores escravizados por serem indispensáveis. Afirmou Antonil: “(...) É necessário comprar cada ano algumas peças e reparti-las pelos partidos, roças, serrarias e barcas.”


As tarefas mais especializadas (de caldeireiro, carpinteiro, tacheiro e marinheiro) eram realizadas pelos negros que se adaptavam mais rapidamente à nova situação. Serviços brutais eram realizados por homens e mulheres que também pegavam na foice e na enxada, nos canaviais, nas oficinas ou na casa grande; e um número pequeno de trabalhadores livres, assalariados, desempenhando funções de vigilância ou que exigiam conhecimento técnico - como no caso do preparo do açúcar - aumentavam a enorme multidão de explorados.


Formadas de roças e pomares, as grandes fazendas alcançavam praticamente a auto-suficiência. Era comum os escravos terem um dia na semana para plantarem para si; o básico em sua alimentação era a mandioca. Havia ainda nos engenhos outros homens livres e expropriados, que não foram integrados à produção mercantil. Como trabalhavam nas roças de subsistência eram chamados roceiros. Como pagamento do seu trabalho os escravos recebiam castigos: "pau, pano e pão". E reagiam. Em troca dos tormentos, assassinavam feitores, suicidavam-se, evitavam a reprodução, eliminavam capitães-do-mato e mesmo proprietários. A resistência se manifestava nos seus cultos, onde a dominação era simbolicamente contestada. O candomblé foi - e ainda é - um ritual de liberdade, protesto, reação à crueldade e opressão do Deus dos brancos. Dançar, batucar, rezar e cantar eram modos encontrados para alívio da asfixia da escravidão. A dominação era contestada também ao nível do real - na fuga das fazendas e na formação de quilombos, aldeias de negros foragidos, onde tentavam reconstituir em matas brasileiras o modo de vida que levavam na África.

Em seu esforço para estabelecer a verdade quanto ao autêntico trabalho de construção do Brasil, informa Ribeyrolles: “Nas chácaras, nas fazendas, nas moradas urbanas, nas ruas e nas praças das grandes cidades, sobre quem recaíam os trabalhos servis e domésticos? Nas fábricas e nas oficinas, quem girava as molas, acendia os fornos, esfregava, suava, carregava e se incumbia, numa só palavra, dos mais baixos misteres? Os negros, os negros, quase unicamente os negros. O trabalho africano, em todas as coisas e todas as tarefas, foi o instrumento, a mão, a roda e a ferramenta, intervindo em tudo como agente de produção, dos transportes e das mudanças, vivendo para todos os serviços e todos os encargos.”

Os castigos corporais eram uma constante. Punições inimagináveis aplicadas sem compaixão. O trabalho diário constituía jornada estafante e muitos senhores estabeleciam que os negros deviam prover o próprio sustento, através do cultivo, fora das horas de trabalho - no que seria o período de descanso - das lavouras para a subsistência. Com isto, não havia repouso suficiente para a reposição de forças. Tudo acontecia sob os olhos atentos dos prepostos dos senhores, vigilantes a qualquer sinal de rebeldia.


A grande maioria dos negros se situava entre a oposição aberta à escravidão e a submissão conformada.
Pouco a pouco, os africanos passavam a ter conhecidas as características de seu comportamento frente à escravidão. Os escravistas puderam formar conceitos quanto à natureza de cada tipo; muitos jamais aceitaram a dominação.
Quando esgotavam as possibilidades de barganhas e concessões partia-se para a ruptura ¾ o confronto direto.
As fugas eram rotineiras e havia aqueles que se prestavam ao papel de tentar recapturá-los, de preferência com vida, para retornarem ao cativeiro; se fosse preciso, mortos - para servirem como exemplo e desencorajar novas tentativas. O aprisionamento dos fugitivos competia aos capitães-do-mato, que contavam com auxiliares e a colaboração oficial da Justiça colonial.


O ambiente das senzalas era o que restava aos negros para tentar a preservação das suas dimensões humanas, até que surgisse a oportunidade propícia à fuga. Sob o disfarce de cantigas e danças sobreviviam suas crenças e ritos, como a mais inocente forma de diversão.
Gravuras e desenhos feitos pelos primeiros estudiosos que visitaram as terras americanas, registraram cenas da vida na sociedade colonial, onde se encontra impressa a força das manifestações da cultura africana.


Ao som dos atabaques permanecia vivo o culto aos orixás e outras danças das quais se perdeu a memória, mas de onde nasceria o jogo da Capoeira: os movimentos de corpo dos africanos - gestos ancestrais preservados em suas danças - serviram com base para a elaboração de uma luta coletiva; afinal, os meneios de corpo, o jeito solto e ágil, servem perfeitamente tanto ao fascínio da dança quanto à magia da luta.
Sabe-se que os negros eram insuperáveis na luta corpo a corpo, também numa conseqüência direta do vigor físico comprovado no estafante trabalho muscular que exigia alta carga de força. Habituados aos rigores da vida na África, as tarefas que antes se constituíam em atividade necessária na terra natal eram instituídas como trabalho forçado no Brasil. A aparente submissão era o modo dos cativos de costumes e culturas diferentes ganharem o tempo necessário para criar - ou simplesmente aproveitar - a oportunidade de fuga, dificultada pelo fato de sequer possuírem uma língua comum.


A expressão corporal nos ensina há milênios uma linguagem que permite a comunicação sem palavras, estabelecendo a fraternidade nos gestos comuns: a dança revela os sentimentos e evidencia idéias, na plástica e harmonia dos movimentos. Pois disto se serviram os negros: protestando e se insurgindo, individual ou coletivamente, expressando a linguagem do corpo na revolta, na insubordinação às regras do jogo do sistema colonial: formando quilombos, promovendo fugas, e assassinando senhores; mas sua luta passou especialmente pela afirmação de sua cultura.


As fugas dos escravos se tornaram cada vez mais organizadas. É fácil imaginar o negro desarmado, porém exímio no manejo do corpo, a desfechar o golpe certeiro, no momento oportuno - para em seguida ganhar a liberdade. Livre, o terreno de pouco mato era adequado à manutenção da liberdade, permitindo o enfrentamento dos perseguidores. A vegetação rasteira, denominada em língua tupy caá-puera iria dar nome aos guerreiros e à sua luta: Capoeira.
A Capoeira é um bom exemplo de como os negros agiam com malícia dissimulando sua verdadeira intenção ao enfrentar os senhores e seus agentes. Para disfarçá-la, a ginga ¾ que fazia dela ao mesmo tempo uma luta e uma dança!


Cada negro recapturado trazia em si a certeza da liberdade. Tudo apenas uma questão de tentar sempre. Na próxima tentativa... E as fugas se sucediam.
Nas matas, os negros que conquistavam a liberdade formavam quilombos, onde viviam segundo regras próprias. Estas comunidades foram numerosas desde meados do século XVI, havendo-as em todas as capitanias e principalmente na região de Pernambuco e Alagoas. Aí houve uma verdadeira nação, conhecida como Palmares, que enfrentou bravamente os escravocratas.


A destruição de Palmares aconteceu depois de cerca de sessenta anos de luta, por forças comandadas pelo paulista Domingos Jorge Velho e o pernambucano Bernardo Vieira de Melo. Mas este fato não significou derrota total. Cresceu daí a consciência da própria força no povo negro e a certeza de que poderia encontrar a liberdade, nas terras para onde veio trazido como escravo.
Palmares ficou como ponto de referência de uma gente espalhada por todas as partes deste país, simbolizando uma luta secular de libertação de um povo que se identifica não somente pela pigmentação da pele, mas pela mesma herança cultural. A luta do povo de Palmares está viva como ponto de partida para chegarmos a uma sociedade livre.


Desde a época da campanha dos escravistas contra o Quilombo de Palmares ficou o registro da luta heróica em defesa da autonomia cultural.
A existência da Capoeira resulta da longa luta por reconhecimento cultural travada ao longo dos quatro séculos de cativeiro. E o termo capoeira, nome dos guerreiros das capoeiras e de sua estranha forma de luta, que tornava homens desarmados capazes de enfrentar e vencer vários adversários, corporifica ainda hoje nos jovens praticantes do século XXI. Assim é que a luta dos africanos e seus descendentes afro-brasileiros subsiste no jogo da Capoeira.


A respeito das origens remotas da Capoeira é interessante transcrever Albano de Neves e Souza, que escreveu de Luanda, Angola, a Luis da Câmara Cascudo, afirmando: “Entre os Mucope do sul de Angola, há uma dança da zebra N’Golo, que ocorre durante a Efundula, festa da puberdade das raparigas, quando essas deixam de ser muficuemas, meninas, e passam à condição de mulheres, aptas ao casamento e à procriação. O rapaz vencedor do N’Golo tem o direito de escolher esposa entre as novas iniciadas e sem pagar o dote esponsalício. O N’Golo é a Capoeira.”

Em seguida, Albano de Neves e Souza passa a expor sua teoria a respeito da evolução do N’Golo no Brasil: “Os escravos das tribos do sul que foram através do entreposto de Benguela levaram a tradição de luta de pés. Com o tempo, o que era em princípio uma tradição tribal foi-se transformando numa arma de ataque e defesa que os ajudou a subsistir e a impor-se num meio hostil”. Neves de Souza acrescenta algumas informações e conclui pela origem africana da Capoeira: “Os piores bandidos de Benguela em geral são muxilengues, que na cidade usam os passos do N’Golo como arma. (...) Outra das razões que me levam a atribuir a origem da Capoeira ao N’Golo é que no Brasil é costume os malandros tocarem um instrumento aí chamado de Berimbau e que nós chamamos hungu ou m’bolumbumba, conforme os lugares, e que é tipicamente pastoril, instrumento esse que segue os povos pastoris até a Swazilândia, na costa oriental da África.”

Estes relatos ilustram hipóteses quanto às origens da Capoeira. Note-se que essas danças são conhecidas no Brasil apenas através da literatura sobre o assunto. A história da Capoeira aguarda pesquisa minuciosa em terras africanas com o objetivo de constatar nessas danças os possíveis elementos formadores da Capoeira. Danças com características de luta já foram identificadas em Cuba, Martinica, na Venezuela e em outras localidades das Américas, mas discute-se se teriam origens comuns à Capoeira. Concretamente, temos a luta dos negros, elaborada a partir de gestos e movimentos próprios dos africanos, cuja fonte primária é a terra de onde vieram os guerreiros : a África. De lá veio o elemento matriz no processo que culminou no jogo da Capoeira - o negro! - e os movimentos corporais da capoeira atual são fragmentos atualizados da memória negra afro-brasileira. Recriando a cultura africana nessa terra, os negros não ficaram passivos diante de sua nova condição. Desterrados e escravizados, combateram o poder escravista com uma rica produção cultural, conquistando espaços e recriando sua autonomia e identidade étnica em solo brasileiro. E acabou brasileira esse jogo-luta, como testemunhou Charles Ribeyrolles, um francês que aproveitou o tempo vivido em nossa terra - exilado por Napoleão III - para retratar os costumes da nação que se formava: “No sábado à noite, finda a última tarefa da semana, e nos dias santificados, que trazem folga e descanso, concedem-se aos escravos uma ou duas horas para a dança. Reúnem-se no terreiro, chamam-se, agrupam-se, incitam-se e a festa principia. Aqui é a capoeira, espécie de dança pírrica, de evoluções atrevidas e combativas, ao som do tambor do congo.”

A origem do termo Capoeira

É de aceitação geral a hipótese do jogo de agilidade corporal ter sido o instrumento utilizado pelos escravos fugitivos na defesa contra seus perseguidores, representados pela figura do capitão-do-mato. E era no mato que se travava a luta decisiva. Pois foi desse tipo de mato - a capoeira - onde os negros buscavam refúgio e ofereciam resistência aos perseguidores, que surgiu também a polêmica que por longo tempo consumiu em debates intermináveis inúmeros intelectuais.

Uma das teorias quanto à origem da expressão capoeira estabelece a língua tupy como aquela de onde procederia a vernaculização: caá-puêra (caá = mato; puêra = que já foi) resultaria nos brasileirismos capuíra, capoêra e capoeira. Outros estudiosos afirmam que a acepção capoeira designa um tipo especial de cesto, usado no transporte de galinhas, que eram conduzidas por escravos aos mercados. A esses escravos teria se estendido o emprego da denominação primeiramente aplicada às gaiolas. Segundo os defensores dessa hipótese, enquanto aguardavam a chegada dos comerciantes, os escravos se divertiam na prática do brinquedo que também seria abrangido pelo nome capoeira. Fora da discussão da origem do termo - assunto para filólogos, como Plínio Ayrosa e Antenor Nascentes - temos concretamente o 'jogo da capoeira' com definição única e universal. Resta ainda a palavra capoeiragem, empregada para nomear a prática desse jogo e utilizada no Código Penal de 1890 pelos juristas da época, que puniam a prática do jogo, classificando-o como atividade criminosa.

Zumbi: o mestre da resistência

“Zumbi, comandante-guerreiro/Ogum-iê, ferreiro mor, capitão/Da capitania da minha cabeça/Mandai alforria pro meu coração”

Gilberto Gil & Walid Salomão,
Zumbi, a felicidade guerreira

Na língua dos negros, 'quilombo' significava povoação, capital, união; no Brasil, teve por significado local de refúgio. Os quilombos eram divididos em aldeias de nome mocambo. Seus integrantes eram chamados quilombolas, calhambolas, mocambeiros.
Zumbi nasceu no quilombo de Palmares por volta de 1655. Décadas antes do seu nascimento este quilombo havia sido fundado por um grupo de escravos fugidos de um engenho no sul de Pernambuco. Localizado bem no alto de uma serra, onde estão hoje situadas partes dos Estados de Alagoas e Pernambuco, de lá era possível a visão privilegiada das imediações.

Herói do povo afro-brasileiro, coube a Zumbi liderar a gente do quilombo num momento decisivo da luta contra os escravistas, empenhados em sufocar a semente da liberdade que teimava por crescer no solo brasileiro.
A história daquele que seria o Zumbi começa quando um grupo de expedicionários liderados por um comandante chamado Brás da Rocha ataca Palmares, no ano de 1655, levando um recém-nascido, entre os adultos capturados. A criança foi entregue ao chefe da coluna atacante, que por sua vez resolveu fazer um presente ao padre Melo, cura de Porto Calvo. O religioso decidiu chamá-lo Francisco. O garoto aprendeu a língua latina, o português e dando mostras da inteligência.

A grande batalha do chefe guerreiro Zumbi, zelando dia e noite pela segurança do seu povo e lutando para que não fosse extinto o ideal de se formarem comunidades onde conviviam negros, índios e brancos, começou ao completar quinze anos, em 1670. Nesse ano Francisco fugiu do padre Melo e voltou para Palmares. Livre desde que nasceu, deixou para trás uma vida muito diferente daquela que iria levar.
Quando Francisco voltou a Palmares, o quilombo havia se transformado numa fortaleza. Segundo estudos recentes, dez mil pessoas, aproximadamente, viviam no local Eram negros fugidos, mulheres capturadas, além de índios e brancos que se escondiam da justiça colonial portuguesa. Plantava-se de tudo para o sustento da população quilombola: feijão, milho, mandioca, cana-de-açúcar, batata. E muitos desses artigos eram comercializados clandestinamente com as cidades vizinhas, pobres em gêneros alimentícios porque se dedicavam a uma única cultura: o plantio da cana-de-açúcar, base da economia de exportação predominante nessa época.

O quilombo de Palmares era uma pequena África onde os negros procuravam resgatar suas raízes, inclusive abandonando os nomes recebidos dos escravistas e trocando por outros de origem africana. À frente desse povoado estava Ganga Zumba e nas pequenas aldeias lideravam chefes locais.
Ao retornar a Palmares, Francisco, com seus quinze anos, passou a ser Zumbi. Vale lembrar que o Deus principal de Camarões e do Congo é chamado Nzambi; em Angola denominavam Zambi o que morreu; e no Caribe, Zumbis são mortos-vivos, criaturas que mesmo no além jamais descansam.

Em Palmares foi livremente constituída sua família - pai, irmãos, tias e tios. O principal dentre seus parentes: Ganga Zumba. Pouco depois de retornar ao quilombo, Zumbi já era chefe de um desses mocambos e defendia a região com imensa habilidade.
Palmares sofreu diversas investidas durante quase cem anos. Quando os holandeses invadiram o Brasil, por volta de 1624, esses ataques diminuíram muito: os colonos lusitanos estavam mais preocupados em defender o território das ameaças externas. Foi nessa época que o Quilombo mais se desenvolveu. Entretanto, após a expulsão holandesa em 1654, uma verdadeira campanha contra Palmares se fez surgir. Dezessete expedições organizadas por vilas próximas, bem como pelo próprio governo de Pernambuco, embrenharam-se pela mata para derrubar os palmarinos.

Em 1677, um tal Fernão Carrilho, exímio caçador de negros entrou em ação. Marchando contra Palmares com seus combatentes, Carrilho conseguiu derrubar alguns chefes de mocambos e matar vários quilombolas. Neste ataque, Ganga Zumba foi ferido, mas ainda assim conseguiu fugir. Em decorrência disso, foi levado a aceitar um tratado de paz proposto pelo governador de Pernambuco em que se prometia liberdade apenas aos nascidos no Quilombo.

Aos 23 anos, Zumbi rejeitou a paz dos escravistas, paz que garantia sua liberdade - pois nascera em Palmares. Desmoralizado por aceitar a proposta, Ganga Zumba viu-se diante de uma operação dos quilombolas organizados para depô-lo, sob a liderança de Zumbi, que nesse contexto tornou-se o líder maior do quilombo. Ganga Zumba desistiu de tudo, partiu para Cacaú, ao sul de Pernambuco, onde viria a morrer envenenado pouco tempo depois. Acredita-se que tenha sido morto por enviados de Zumbi.

Zumbi assumiu o posto de chefe maior e reorganizou toda a estrutura de Palmares. Preparou seus homens para os combates que estavam por vir. Durante esse período, o governador de Pernambuco e a própria Coroa procuraram negociar, garantindo vida ao líder e a seus familiares, caso aceitasse a rendição. Zumbi preferiu lutar a entregar seu povo: sua dignidade não tinha preço.
Os senhores de engenho não aceitavam as perdas de escravos, mercadorias muito valiosas; o governo colonial não suportava mais tanta derrota. Foi quando surgiu a idéia de contratar os bandeirantes paulistas, conhecidos por serem grandes desbravadores e verdadeiros assassinos.

Na guerra contra Zumbi e o povo de Palmares o sistema escravista pretendia varrer da memória coletiva até a lembrança da existência de possibilidades reais das populações oprimidas construírem uma alternativa à estrutura social baseada na exploração do trabalho forçado. O combatente que representava os civilizados escravagistas: Domingos Jorge Velho.
Sobre este paulista, encarregado de destruir Palmares, escreveu em 1697 um seu contemporâneo, o Bispo de Pernambuco: “Este homem é um dos maiores selvagens com que tenho topado... tendo sido sua vida, desde que teve razão - se é que teve, de sorte a perdeu tanto que entendo não a achará com facilidade - até o presente, andar pelos matos à caça dos índios, e de índias, estas para o exercício das suas torpezas e aqueles para o granjeio de seus interesses.”
Após uma primeira derrota, Domingos Jorge Velho iria travar a batalha definitiva no ano de 1694. Antes de completar 25 anos de vida, Zumbi se recusou a desistir de lutar pela liberdade sem adjetivos, concessões ou condições: combateria até o fim.

Apesar de toda a violência e da selvageria dos prepostos do sistema colonial, não foi possível derrotar o símbolo do heroísmo do povo brasileiro. Após muitos anos de luta os escravistas não conseguiram submeter a alma dos resistentes. Cada guerreiro morto em defesa do direito à liberdade é um exemplo de que só existimos na plenitude quando somos livres. E morrer nessa luta significa dar a vida pela própria vida.
Símbolo da resistência à dominação, Zumbi dos Palmares é referência legada tanto às gerações africanas trazidas ao Brasil quanto aos seus descendentes afro-brasileiros. Mestre na luta pela liberdade, seu vulto se confunde com o caminho para a consciência do povo brasileiro.



“Minha espada espalha o sol da guerra
Rompe mato, varre céus e terra
a felicidade do negro é uma felicidade guerreira
Do maracatu, do maculelê e do moleque bamba
Minha espada espalha o sol da guerra
Meu quilombo incandescendo a serra
Taliqual o leque, o sapateado do mestre-escola de samba
Tombo da ladeira, rabo de arraia, fogo de liamba...”




Acompanhado de um grupo considerável de combatentes fortemente armados, Domingos Jorge Velho se lançou em direção à Cerca Real do Macaco, onde se encontravam Zumbi e todo o seu exército. Grande foi sua surpresa ao encontrar o esquema de defesa montado pelos quilombolas. Muros gigantescos de pedra e madeira formavam três fileiras, seguidas logo após por buracos camuflados com estacas pontiagudas em seu interior. Em seguida, uma outra muralha mais comprida, contava com guaritas que abrigavam atiradores.

Amedrontado, Jorge Velho mandou buscar canhões de Recife e construiu, paralelamente à muralha de Zumbi, uma outra muralha. O ataque foi fatal. O grande chefe dos quilombolas foi apanhado de surpresa pelo descuido de um sentinela. Muitos morreram combatendo ou se suicidaram; outros tentaram fugir pelo lado esquerdo da Cerca Real, onde havia enorme precipício. Zumbi foi um dos que conseguiu sobreviver à matança, mas Palmares foi inteiramente destruída.

Zumbi comandou seus guerreiros e venceu inúmeras batalhas empregando com talento as técnicas da guerra de guerrilhas. No combate em posição fixa encontrou o fracasso. Perdeu o domínio da Serra da Barriga, onde se estabeleceram - entre disputas e conflitos pessoais - os vencedores: bandeirantes, militares e "homens de bem" de Pernambuco e Alagoas. Só restava uma alternativa: retornar à estratégia da guerra do mato. Eram cerca de mil homens. Os guerreiros foram divididos em dois bandos e foi confiada a chefia de um dos grupos a um companheiro chamado Antônio Soares, que sofreu uma emboscada. Soares foi preso e enviado sob forte escolta para Recife.

Nesse trajeto a escolta se encontrou com uma bandeira, chefiada por André Furtado. Soares foi seqüestrado e por longo tempo sofreu violentas torturas aplicadas por seus captores: queriam que revelasse onde era o esconderijo de Zumbi. Como não obtinha êxito, Furtado mudou de tática: garantia sua vida e liberdade se cooperasse. Deu certo. Soares era da confiança de Zumbi. Foram em sua procura, e quando Zumbi se preparava para abraçar o companheiro, foi surpreendido: Soares cravou-lhe uma faca na barriga.

Nos olhos de Zumbi deve ter surgido então um outro brilho: de tristeza e desencanto. Dos seis guerreiros que o acompanhavam, a fuzilaria que saía do mato ao redor derrubou cinco, de imediato. Ferido e sozinho, lutou até o último momento: matou um dos atacantes e feriu outros. Amanhecia o dia 20 de novembro de 1695.
Zumbi foi esfaqueado, baleado e mutilado, tendo seu pênis decepado e enfiado em sua boca. Era um homem magro, pequeno e coxo; muito diferente da imagem construída a seu respeito. Seu corpo foi reconhecido pelo padre Antônio Melo, o mesmo que batizara o pequenino Francisco. Segundo o padre, algumas vezes Zumbi desceu a Porto Calvo para visitar seu antigo tutor e numa dessas visitas o guerreiro já estava com a perna afetada por um ferimento sofrido em combate.

A violência contra Zumbi não parou aí: sua cabeça foi cortada, mergulhada em sal e mandada para Recife, com a finalidade de ser vista pelo povo que o considerava imortal. Mas isso de nada disso foi suficiente para impedir que renascesse num mito: sua coragem, sua força se tornaram eternas para os que continuaram resistindo contra a escravidão. Assim é que nos muitos quilombos que se formaram pelo Brasil nos séculos seguintes e para os que hoje relembram a sua história de luta, Zumbi permanece vivo na lição de resistência.

De forma exemplar, Zumbi encarna os horrores do escravismo. Zumbi permanece vivo na lição de resistência e é - para sempre! - um cadáver insepulto, um morto vivo. Sua lembrança sobreviverá aos tempos que nos obrigam a sonhar, à historiografia oficial que insiste em ignorar sua real importância. Permanecerá como símbolo das atrocidades infindáveis do poder ilimitado, arbitrário, prepotente. Ficará, acima de tudo, como exemplo a todos que resistem à opressão e lutam por liberdade e justiça.



“Em cada estalo, em todo estopim, no pó do motim
Em cada intervalo de guerra sem fim
Eu canto, eu canto, eu canto assim
A felicidade do negro é uma felicidade guerreira...




II - Capoeira & Capoeiras



“Meu chapéu de lado/tamanco arrastando
lenço no pescoço/ navalha no bolso,
eu passo gingando/ provoco desafio,
eu tenho orgulho de ser vadio.
Sei que eles falam desse meu proceder,
eu vejo quem trabalha andar no miserê.
Eu sou vadio porque tive inclinação.
Quando era criança, tirava samba-canção.”


Wilson Batista, Lenço no Pescoço.


Histórias da Capoeira

“Vou contar uma história/do tempo da escravidão/ vou contar com muita dor/muita dor no coração”

Fornecendo elementos para a história do Brasil, jogo da Capoeira se fez presente em todos os períodos, desde a colônia. Inúmeros memorialistas e cronistas de costumes fixaram a imagem de capoeiras célebres e suas peripécias, sendo possível flagrar a construção da identidade brasileira através do acompanhamento da história da capoeira.

Acredita-se que a existência da Capoeira remonte às senzalas, às fugas dos negros e aos quilombos brasileiros da época colonial: os escravos fugitivos, pare se defenderem, fazendo do próprio corpo uma arma. As origens da Capoeira estão nesse ambiente, onde os negros relembravam suas velhas danças e rituais da África. A maioria dos golpes assemelha-se às defesas e ataques de animais: a marrada do touro, o coice do cavalo, a fisgada do rabo de arraia. Ou então guardam relação com instrumentos de trabalho cuja ação é semelhante aos movimentos do corpo dos capoeiras: o martelo batendo, a foice roçando o mato.
Não há indicações seguras de que a Capoeira, conforme a conhecemos no Brasil ainda hoje, tenha se desenvolvido em qualquer outra parte do mundo. Não existem pesquisas históricas a respeito da capoeira nos séculos XVI a XVIII. Não é possível, portanto, reconstruirmos o processo que levou ao deslocamento da capoeira do campo à cidade. Esse processo deve ter ocorrido por volta do começo do século XIX, considerando que datam desse período as primeiras referências históricas (até agora conhecidas) referentes aos capoeiras urbanos.
No século XIX, os três principais centros históricos da capoeira eram as cidades do Rio de Janeiro, Salvador e Recife. Destacava-se a Capoeira carioca em virtude da presença maciça e organizada das maltas de capoeiras, as quais distribuíam-se por todas as freguesias da Corte.

À época do Brasil colonial, a presença da Capoeira já se encontrava de tal forma sedimentada na sociedade que os capoeiras passaram a formar uma classe. Premidos pelas circunstâncias, faziam usos variados da habilidade que a arte lhes conferia. Com o emprego de diversos instrumentos de ataque e defesa, passaram a prestar serviços aos membros das classes dominantes, que deles se serviam para a execução de crimes que garantiam a continuidade no poder.
As descrições do século passado revelam o emprego da mandinga como estratégia eficiente de luta dos capoeiras.
O pintor Rugendas (1835), retratou a Capoeira na gravura intitulada Jogar capoeira ou dança da guerra. Nela dois negros gingam ao som de um atabaque - tocado por um negro sentado - diante de uma assistência composta por nove negros (dentre os quais três mulheres). O cronista refere-se ao que vê como uma “dança da guerra” ou um “folguedo guerreiro”, onde há “campeões” e “adversários” e como uma “briga” na qual as “facas” acabam com a “brincadeira”.

Discorrendo sobre os “usos e costumes dos negros”, após mencionar uma “espécie de dança militar” Rugendas faz a seguinte descrição: “(...) um outro folguedo guerreiro, muito mais violento, a ‘capoeira’: dois campeões se precipitam um contra o outro, procurando dar com a cabeça no peito do adversário que desejam derrubar. Evita-se o ataque com saltos de lado e paradas igualmente hábeis; mas, lançando-se um contra o outro mais ou menos como bodes, acontece-lhes chocarem-se fortemente cabeça contra cabeça, o que faz com que a brincadeira não raro degenere em briga e que as facas entrem em jogo ensangüentando-a”.

O cronista Luiz Edmundo fez interessante registro do capoeira dessa época, em ‘O Rio de Janeiro no Tempo dos Vice-Reis’, retratando o "Capoeira Carioca": “De volta, pelo caminho que vai à vala, penetramos a rua dos Ourives, das de maior concorrência na cidade.
'À porta do estanco de tabaco está um homem diante de um frade nédio e rubicundo. Mostra um vasto capote de mil dobras, onde a sua figura escanifrada mergulha e desaparece deixando ver apenas, de fora, além de dois canelos finos, de ave pernalta, uma vasta, uma hirsuta cabeleira, onde naufraga em ondas tumultuosas alto feltro espanhol.
'Fala forte. Gargalha. Cheira a aguardente e discute. É o capoeira.
'Sem ter do negro a compleição atlética ou sequer o ar rijo e sadio do reinol é, no entanto, um ser que toda a gente teme e o próprio quadrilheiro da justiça, por cautela, o respeita.
'Encarna o espírito da aventura, da malandragem e da fraude; é sereno e arrojado e na hora da refrega ou da contenda, antes de pensar na chupa ou na navalha, sempre ao manto cosida, vale-se de sua esplêndida destreza, com ela confundindo e vencendo os mais armados e fortes contendores.
'Nessa hora o homem franzino e leve transfigura-se. Atira longe o seu feltro chamorro, seu manto de saragoça e aos saltos, como um símio, como um gato, corre, recua, avança e rodopia, ágil, astuto, cauto e decidido. Nesse manejo inopinado e célere, a criatura é um ser que não se toca, ou não se pega, um fluido, o imponderável, pensamento, relâmpago. Surge e desaparece.
'Mostra-se de novo e logo se tresmalha. Toda sua força reside nessa destreza elástica que assombra e diante da qual o tardo europeu vacila atônito, o africano se trasteja.
'Embora na hora da luta traga ele entre a dentuça podre o ferro da hora extrema, é da cabeça, braço, mão e perna ou pé que se vale para abater o êmulo minaz.
'Com a cabeça em meio aos pulos em que anda, atira a cabeçada sobre o ventre daquele com quem luta e o derruba. Com a perna lança a trave, o calço. A mão joga a tapona e com o pé a rasteira, o pião e ainda o rabo de arraia.
'Tudo isso numa coreografia de gestos que confunde. Luta com dois, com três, e até quatro ou cinco. E os vence a todos. Quando os quadrilheiros chegam com suas armas e os seus gritos de justiça, sobre o campo de luta nem traço mais se vê do capoeira feroz que se fez nuvem, fumaça e desapareceu.
'Na hora da paz ama a música, a doçura sensual do brejeiro lundu, dança a fôfa, a chocaina e a sarambeque pelos lugares onde haja vinho, jogo, fumo e mulatas. Freqüenta os pátios das tabernas, os antros da maruja para os lados do Arsenal. Usa e abusa da moral da ralé, moral oblíqua, reclamando pelourinho, degredo e às vezes, forca.
'Tem sempre por amigo do peito um falsário, por companheiro de enxerga um matador profissional e por comparsa, na hora da taberna, um ladrão. No fundo, ele é mau porque vive onde há o comércio do vício e do crime. Socialmente, é um cisto, como poderia ser uma flor. Não lhe faltam, a par dos instintos maus, gestos amáveis e enternecedores. É cavalheiresco para com as mulheres. Defende os fracos. Tem alma de Dom Quixote. E com muita religião. Muitíssima. Pode faltar-lhe ao sair de casa o aço vingador, a ferramenta de matar, até a própria coragem, mas não esquece do escapulário sobre o peito e traz na boca, sempre, o nome de Maria ou de Jesus.
'Por vezes, quando a sombra da madrugada ainda é um grande capuz sobre a cidade, está ele de joelhos, compassivo e piedoso, batendo no peito, beijando humildemente o chão, em prece, diante de um nicho iluminado, numa esquina qualquer. Está rezando pela alma do que sumiu do mundo, do que matou.
'É de crer que, como sentimento, o capoeira é realmente um tipo encantador...”


Durante a primeira metade do século XIX, a Capoeira parece ter se configurado como uma experiência essencialmente escrava. Entretanto, a partir dos anos 1850, altera-se a composição étnica e social de seus praticantes, com a incorporação de libertos e livres, muitos dos quais brancos. Dentre esses últimos havia alguns membros da elite e também inúmeros estrangeiros, predominantemente portugueses. Tal ampliação introduz mudanças na prática da capoeira como a disseminação do uso da navalha, característico dos fadistas lusitanos.

Durante o segundo reinado, algumas maltas de capoeira tiveram intensa atuação política, inclusive atuando junto aos partidos da época. A aproximação com a política monárquica lhes acarretará uma implacável perseguição por parte dos republicanos sendo que estes, ao assumirem o poder, incluirão a prática da capoeira como um crime previsto pelo Código Penal de 1890.
Já em 1872 levantavam-se as primeiras vozes pedindo a criminalização da capoeira. Reconhecendo os esforços da polícia para reprimir a “audácia” dos capoeiras, “terror da população pacífica”, o chefe de polícia do Rio de Janeiro reclama, em seu relato anual, da dificuldade de se reprimir a capoeira posto que esta “não é um crime de acordo com o Código Criminal” (Holloway,1989:669).
Seis anos depois, novamente se fala sobre o assunto, porém observa-se uma diferença qualitativa na razão da perseguição aos capoeiras. Se, até aqui, os capoeiras são perseguidos, principalmente, porque oferecem algum tipo de ameaça física aos “pacíficos cidadãos”, seja quando “cometem ferimentos” ou "provocam desordens”, agora o argumento primordial é outro. Referindo-se à capoeira como uma “doença moral” que prolifera na “grande e civilizada cidade”, o chefe de policia da Corte ressalta a necessidade de se formalizar a criminalização da capoeira, sugerindo a deportação dos estrangeiros e o envio dos brasileiros para colônias penais (op. cit. 1989:669).


Nesse período muda o motivo central da argumentação policial: o discurso da repressão passa a coadunar-se com os pressupostos evolucionistas vigentes àquela época. Esses conceitos, pautados numa abordagem biológica do social, pressupunham a inferioridade racial do negro. Assim, o temor do “contágio moral” da “barbárie negra” orientava a ação das autoridades.
No entanto, a Capoeira, ao mesmo tempo em que sofre uma intensificação da perseguição policial, começará também a ser descrita por alguns literatos cariocas, não apenas pelo que “tem de mau e bárbaro” mas também como uma “excellente gymnastica”, a ser adotada inclusive nas escolas e quartéis, surgindo aqui uma nova representação social para essa prática, vista agora como “herança da mestiçagem no conflito das raças” e, portanto, “nacional” (Moraes Filho,1893/1979:257).


Muitos dos nossos escritores empolgaram-se com a Capoeira e seus adeptos. Joaquim Manuel de Macedo, em Memórias de Um Sargento de Milícias; Aluízio de Azevedo, em O Cortiço, são alguns dos que buscaram retratar cenas do período em que capoeiras pontificavam, nas suas lutas.
Desde o Império (1822-1889) a presença da Capoeira na vida brasileira foi acentuada. Consta que possuía D. Pedro I um capoeira como guarda-costas, servindo-lhe de proteção em suas andanças noturnas. E não eram poucos os nobres que dominavam recursos da Capoeira. Os negros encarregados dos serviços domésticos muitas vezes ensinavam aos sinhozinhos alguns de seus segredos. Cada vez mais a luta era praticada, rompendo todas as barreiras.
O capoeira dessa época tinha por escola as praças, ruas e corredores. Formavam bandos perigosos, que se davam a conhecer entre si pelas características dos chapéus, lenços, roupas, fitas e tantas convenções quanto era possível imaginar.

A criminalização da capoeira não foi consensual mas significou a vitória política de uma determinada facção da classe dirigente nacional.
Em 11 de outubro de 1890 foi promulgada a Lei nº 487, de autoria de Sampaio Ferraz, proibia a prática da capoeira e previa punição de 2 a 6 meses de trabalho forçado na ilha de Fernando de Noronha. No artigo 402, que tratava "Dos vadios capoeira", lia-se:


'Fazer nas ruas e praças públicas exercícios de agilidade e destreza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem; andar em correrias, com armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal, provocando tumulto ou desordem, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal. Pena - prisão celular de dois a seis meses. Parágrafo único: é considerada circunstância agravante pertencer o capoeira a algum bando ou malta. Aos chefes e cabeças se imporá a pena em dobro".

Como não eram apenas os negros e mestiços que praticavam a Capoeira, a lei acabou atingindo importantes pessoas da nobreza. Exemplo disso foi o conhecido caso de José Elísio dos Reis. Seu pai era o conde de Matosinhos, proprietário do jornal O País. Conhecido de todos como praticante da Capoeira, Juca Reis, antes da aprovação da lei estava em Portugal. Quando retornou ao Brasil foi preso por Sampaio Ferraz. A sua liberdade foi conseguida graças à influência de Quintino Bocaiúva, ministro das Relações Exteriores no primeiro governo republicano brasileiro. Quintino ameaçou renunciar ao cargo se Juca Reis não fosse liberto. O ministro teve seu pedido aceito pelo marechal- presidente Deodoro: o capoeira Juca Reis foi solto e retornou a Portugal.

Os capoeiras foram perseguidos por todo o século XIX. Se por um lado a sua ação provocava verdadeiro pânico numa parcela da população - especialmente nas elites! - que apoiava a repressão policial, muita gente desconfiava dessa ação. O texto publicado no jornal Diário de Notícias, da cidade do Rio de Janeiro, em 19 de janeiro de 1890, é uma amostra irônica da reação popular à violenta campanha policial:


"É polícia das primeiras/É levadinha do diabo/Deu cabo dos capoeiras/Vai dos gatunos dar cabo/Já da navalha afiada/A ninguém o medo aperta/Vai poder a burguesada/Ressonar com a porta aberta
A ir assim poderemos/Andar mui sossegadinhos/Nessa terra viveremos/Como Deus com seus anjinhos/Ai! Assim continuando/A polícia hemos de ver/As suas portas fechando/Por não ter mais que fazer"
Melo Moraes Filho, em Festas e Tradições Populares do Brasil (1893), fala a respeito dos grupos que formavam - as maltas - e suas proezas ao tempo do Império: “A categoria de chefe da malta só atingia aquele cuja valentia o tornava inexcedível e de chefe dos chefes o mais afoito entre estes, mais refletido e prudente.

'Os capoeiras, até quarenta anos passados, prestavam juramento solene e o lugar escolhido para isso eram as torres das igrejas. As questões de freguesia ou de bairro não os desligavam, quando as circunstâncias exigiam desagravo comum; por exemplo: um senhor, por motivo de capoeiragem, vendia para as fazendas um escravo filiado a qualquer malta; eles reuniam-se e designavam o que havia de vingá-lo.
'No tempo em que os enterramentos faziam-se nas igrejas e que as festas religiosas amiudavam-se, as torres enchiam-se de capoeiras, famosos sineiros que montados na cabeça dos sinos acompanhavam toda a impulsão dos dobres, abençoando das alturas o povo que os admirava, apinhado nas praças ou nas ruas.”

Em seguida, passa o memorialista a descrever alguns movimentos da Capoeira, com riqueza de detalhes que nos leva a supor não lhe serem desconhecidos os segredos dessa arte: “A capoeiragem antiga e a moderna tem a sua gíria e sua maneira de expressão, pela qual são compreendidos os lances do jogo. Deveras arriscados, difíceis e dependendo de rapidez e hábito, não é sem longa prática que conseguem tais contendores fazerem-se notáveis. Para darmos uma pálida idéia da gíria e do jogo, ajustamos por aquela algumas evoluções deste. Um dos preparativos mais rudimentares do capoeira é o ‘rabo de arraia’. Consiste ele na firmeza de um pé sobre o solo e na rotação instantânea da perna livre, varrendo a horizontal, de sorte que a parte dorsal vá bater no flanco do contendor, seguindo-se após a cabeçada ou a rasteira, infalíveis corolários da iniciação do combate.
'Por ‘escorão’ entendem eles amparar inesperadamente o pé de encontro ao ventre do adversário, o que é um subterfúgio que difere do ‘pé de panzina’, que é o mesmo resultado porém feito não como um recurso do jogo, mas deixando à destreza tempo de varrê-lo.
'O ‘passo a dois’ (gíria moderna) é um sapateado rápido que antecede à cabeçada e a rasteira, da qual o acometido se livra armando o ‘clube x’, que quer dizer o afastamento completo das tíbias e união dos joelhos, que formando larga base, estabelece equilíbrio, recebendo no embate o salto da botina, que ainda ofende o adversário.
'O ‘tombo da ladeira’ é tocar no ar, com o pé, o indivíduo que pula; a ‘rasteira a caçador’ é o meio ginástico de que servem-se para - deixando-se cair sobre as costas, ao mesmo tempo que firmam-se sobre as mãos - derrubarem o contrário imprimindo-lhe com o pé violenta pancada na articulação tíbio tersianal.”

Melo Moraes traça um retrato de fatos sociais do Rio de Janeiro e da intensa repressão policial à Capoeira, associada à criminalidade.
“As escolas de capoeiragem multiplicavam nesta cidade, pertencendo cada turma de discípulos a esta ou aquela freguesia.
'Desde a dos caxinguelês, meninos que iam à frente das maltas provocar inimigos, até a dos mestres que serviam para exercícios preparatórios, esses cursos regulares funcionavam sendo os mais freqüentados o da Praia do Flamengo, o do morro da Conceição, o da Praia de Santa Luzia, não falando nas torres das igrejas - ninhos atroados de capoeiras de profissão.
'Alistados nos batalhões da guarda nacional os capoeiras exerciam poderosa influência nos pleitos eleitorais, decidiam das votações, porque ninguém melhor do que eles arregimentavam votos, emprenhavam urnas, afugentavam votantes, etc.
'Muitos dos comandantes dos corpos e grande parte dos aficionados entendia do jogo, ou eram habilíssimos na arte.
'Os desafios entre as freguesias transmitiam-se por meio de pancadas de sino convencionais e em horas determinadas. Os combates davam-se nas praças, nas ruas, em sítios mais ou menos distantes e desertos.
'Às vezes, interrompendo a marcha de uma procissão, o desfilar de um cortejo, ouvia-se, aos gritos das senhoras correndo espavoridas, dos negros levando senhores moços ao colo, dos pais de família pondo no abrigo a mulher e os filhos, o horroroso ‘Fecha! Fecha!’. Os caxinguelês voavam na frente, a capoeiragem disparava indômita, seguindo-se aos distúrbios cabeças quebradas, lampiões apedrejados, facadas, mortes, etc...
'A polícia, amedrontada e sem força, fazia constar que perseguia os desordeiros, acontecendo raríssimas vezes ser preso este ou aquele que respondia a processo.
'Pertencendo à segunda fase da capoeiragem no Rio de Janeiro, essas cenas tiveram lugar durante a administração policial de Eusébio de Queiroz e de seus sucessores, desaparecendo totalmente com a guerra do Paraguai, que não acabou somente com os capoeiras, porém assinalou o termo do patriotismo brasileiro.”

Em seguida o cronista passa a reportar-se às personalidades eminentes da época que se notabilizaram também pelos conhecimentos do jogo da Capoeira.
“É geralmente sabido pela tradição que no Senado, na Câmara dos Deputados, no Exército, na Marinha, no funcionalismo público, na cena dramática e mesmo nos claustros, havia capoeiras de fama, cujos nomes nos são conhecidos.
'Nas garrafadas de março, um dos nossos mais eloqüentes oradores sacros fez prodígios nesse jogo, livrando-se de seus agressores; recordamo-nos de um frade do Carmo que por ocasião de uma procissão de enterro, debandou a cabeçadas e rasteiras um grupo de indivíduos imprudentes que o provocaram.
'Pergunte-se por aí qual o ator cuja valentia e destreza como capoeira eram respeitados, e acreditai que a popularidade precisaria muito para atingir-lhe o pedestal.
'Quando estudamos no Colégio de Pedro II foi nosso lente de francês o bacharel Gonçalves, bom professor e melhor capoeira.
'O Dr. D. M., jurisconsulto eminente e deslumbrante glória da tribuna criminal, cultivou em sua mocidade essa luta nacional, entusiasticamente levada a excessos pelo povo baixo, que a afogou nas desordens, em correrias reprováveis, em homicídios horrorosos.
'Pode-se dizer que de 1870 para cá os capoeiras não existem e se um ou outro, verdadeiramente digno desse nome pela lealdade antiga, pela confiança própria e pelo conhecimento da arte resta por aí, veio daquele tempo em que a capoeiragem tinha disciplina e dirigia-se a seus fins.
'Navalhar à traição, deixar-se prender por dois ou três soldados e espancar a um pobre velho, ser vagabundo e ratoneiro, nunca constituíram os espantosos feitos das maltas do passado, que brigavam freguesia com freguesia, disputavam eleições arriscadas, levavam à distância cavalaria e soldados de permanentes quando intervinham em conflitos de suscetibilidade comum.
'O capoeira isolado, naqueles tempos, trabalhava, constituía família, a vadiagem lhe era proibida, não era gatuno, afrontava a força pública e só se entregava morto ou quase morto.
'Como fizemos ver em princípio, as turmas militantes condensavam as classe operárias e os escravos, expressão nítida da capoeiragem de rua.”

Em outro momento da sua narrativa, Melo Moraes fala da presença de portugueses e demais cidadãos no meio da Capoeira, à época assimilada como costume popular.
“Não sendo estranhos ao jogo, portugueses havia que se aliavam às maltas avulsas, distinguindo-se entre eles homens de inaudita coragem e espantosa agilidade.
'Luzidas companhias de batalhões da guarda nacional, de que tinham orgulho briosos comandantes, reuniam magnífica rapaziada, de onde eram tirados praças para diligências perigosas, servindo igualmente para as campanhas eleitorais.
'A prova de que a capoeiragem entrava nos nossos costumes está em que não havia menino que não botasse o boné à banda e soubesse gingar, nem escolas que se não desafiassem para brigar, sendo de data recente as lutas entre os famosos colégios Sabino, Pardal e Vitorio.”
Mello Moraes Filho dá uma idéia precisa da simulação e dissimulação da intenção durante o jogo de capoeira:


“O capoeira, colocado em frente a seu contendor, investe, salta, esgueira-se, pinoteia, simula, deita-se, levanta-se e, em um só instante, serve-se dos pés, da cabeça, das mãos, da faca, da navalha, e não é raro que um apenas leve de vencida dez ou vinte homens” .
Ao encerrar a reportagem da Capoeira no começo do século XIX, traça Melo Moraes o perfil do famoso capoeira Manduca da Praia.
“O Manduca da Praia era um pardo claro, alto, reforçado, gibento e quando o vimos usava barba crescida em ponta, grisalha e cor de cobre.
'De chapéu de castor branco ou de palha ao alto da cabeça, de olhos injetados e grandes, de andar compassado e resoluto, a sua figura tinha alguma coisa que infundia temor e confiança.
'Trajando com decência, nunca dispensava o casaco grosso comprido, grande corrente de ouro que prendia o relógio, sapatos de bico revirado, gravata de cor com anel corrediço, trazendo somente como arma uma bengala fina de cana da Índia.
'O Manduca tinha uma banca de peixe na praça do Mercado, era liso em seus negócios, ganhava bastante e trabalhava com regalo.
'Constante morador da Cidade Nova, não recebia influências da capoeiragem local nem de outras freguesias, fazendo vida à parte, sendo capoeira por sua conta e risco.
'Destro como uma sombra, foi no curro da rua do Lavradio, canto da do Senado, onde é hoje uma cocheira de andorinhas, que ele iniciou a sua carreira de rapaz destemido e valentão, agredindo touros bravios sobre os quais saltava, livrando-se.
'Nas eleições de S. José dava cartas, pintava o diabo com as cédulas.
'Nos esfaqueamentos e sarilhos próprios do momento ninguém lhe disputava a competência.
'Um dia, na festa da Penha, o Manduca da Praia bateu-se com tanta vantagem contra um grupo de romeiros armados de pau, que alguns ficaram estendidos e os mais inutilizados na luta.
'O fato que mais o celebrizou nesta cidade remonta à chegada do deputado Sant’ana, cavalheiro distintíssimo e invencível jogador de pau, dotado de uma força muscular prodigiosa.
'Sant’ana, que gostava de brigas e não recuava diante de quem quer que fosse, tendo notícia do Manduca, procurou-o.
'Encontrando-se os dois, houve o desafio, acontecendo àquele saltar aos ares ao primeiro canelo do nosso capoeira, depois do que beberam champagne ambos e continuaram amigos.”

Outro capoeira famoso no começo do século XX foi Prata Preta, um dos principais líderes populares da Revolta da Vacina (1904), que se notabilizou por seus confrontos com a policia durante o conflito. Sobre essa época é interessante a leitura do relato de Lima Campos, em artigo intitulado “A Capoeira”, publicado em 1906 na Revista Kosmos. trazendo o registro de um flagrante testemunhado pelo jornalista: "A alma do capoeira é o olhar; uma esgrima sutil, ágil, firme, atenta, em que a retina é o florete flexível, penetrante, indo quase devassar a intenção ainda oculta, o desejo apenas pensado, voltada sempre para o adversário, apanhando-lhe todos os movimentos, surpreendendo-lhe os mais insignificantes ameaços, para desviá-los, em tempo, com a destreza defensiva dos braços em rebates lépidos ou evitá-los com os desvios laterais e os recuos saltados do corpo, leve, sobre ponta de pés, até facultar e perceber a aberta e entrar, 'para ver como é, para contar como foi', segundo o calão próprio.


'O capoeira não inutiliza unicamente o adversário pelos seus golpes; inutiliza-o também, e pior, pelo ridículo.
'Não lutava em silêncio, proferia sempre termos grosseiros visando exasperar, ridicularizar o contendor. Na churumela (cabeçada), por exemplo, que eles denominavam 'levar a torre do pensamento ao aparelho mastigante do poeta', o adversário era atingido com a cabeça num golpe vigoroso, desfechado embaixo do queixo, projetado no espaço e finalmente, esborrachava-se de ventre no chão, ou em cambalhotas com pernas para cima".

O jornalista e escritor Coelho Neto (1864-1934), professor de Literatura e Teatro, formado pela Faculdade de Direito do Largo do São Francisco, autor de mais de cem obras literárias e um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras (cadeira nº 2), também praticou a Capoeira. Em 'O Nosso Jogo', um dos capítulos do seu livro Bazar, também registra suas impressões sobre as características da arte no seu tempo:

"O que matou a capoeiragem entre nós foi... a navalha. Essa arma, entretanto, sutil e covarde, raramente aparecia na mão de um chefe de malta, de um verdadeiro capoeira, que se teria por desonrado se, para derrotar um adversário, se houvesse de servir do ferro".

Em outra passagem Coelho Neto esclarece que a arma era descartada pelo capoeira que sabia aplicar com eficiência os golpes, tirando de ação o adversário: "O capoeira digno não usava navalha: timbrava em mostrar as mãos limpas quando saía de um turumbamba (briga, desordem). Generoso, se trambolhava (aplicava queda violenta) o adversário, esperava que ele se levantasse para continuar a luta porque "não batia em homem deitado"; outros diziam, com mais desprezo, "em defunto".

É interessante observar os contornos do perfil do capoeira carioca descrito por Coelho Neto: 'O capoeira que se prezava tinha ofício ou emprego, vestia com apuro e, se defendia uma causa, como aconteceu com a do Abolicionismo, não o fazia como mercenário.
'Quanto às provas de superioridade da capoeiragem sobre os demais esportes de agilidade e força são tantas que seria prolixa a enumeração.
'Além dos feitos dos contemporâneos de Boca Queimada e Manduca da Praia, heróis do período áureo do nosso desestimado esporte, citarei, entre outros, a derrota de famoso jogador de pau, guapo rapagão minhoto, que Augusto Mello duas vezes atirou de catrambias (desprezo) no pomar da sua chacarinha em Vila Isabel onde, depois da luta e dos abraços de cordialidade, foi servida vasta feijoada.
'Outro: a tunda infligida por Zé Caetano e dois cabras destorcidos a grupo de marinheiros franceses, de uma corveta Palas. A maruja não esteve com muita delonga e, vendo que a coisa não lhe cheirava bem em terra, atirou-se ao mar, salvando-se a nado, da agilidade dos três turunas, que a não deixavam tomar pé".

O escritor Manoel Querino, no Jornal de Notícias, da cidade de Salvador, na Bahia, do dia 2 de junho de 1914, em depoimento intitulado 'A Combuca Eleitoral' trata das disputas entre liberais e conservadores e do papel dos capoeiras a soldo dos partidos, na ocasião em que se realizavam as eleições.
“O capoeira fora sempre figura indispensável nos pleitos eleitorais, fazendo respeitar a opinião de correligionários, provocando a desordem, sempre que se fazia necessário; espancando o adversário e contribuindo desse modo para a formação da Câmara dos Fagundes.”

Prosseguindo em sua narrativa Manoel Querino descreve o dia do pleito eleitoral: “Chegado que fosse o dia da eleição, estavam as hostes preparadas para a luta, cada partido arregimentava o seu pessoal, composto de votantes, turbulentos, capoeiras e aderentes. Todos a postos, começava a chamada, no campo da matriz da paróquia. Na ocasião aprazada, dava-se um conflito, era o meio de perturbar a eleição. Chamava-se um cidadão para votar; o grupo político que dispunha de maior número de desordeiros, gritava: - É fósforo! - É! - Não é!... E fechava-se o tempo... Gritos, protestos, doestos, uma vozeria ensurdecedora, e, por fim, recorriam ao argumento decisivo - o cacete; e o sangue dos partidários ensopava as lajes do templo, sendo alguma vez interdito pela autoridade diocesana.
'Aproveitando a confusão do momento, o votante mais sagaz introduzia na urna um maço de chapas. Chamava-se esta ação - emprenhar a urna. De modo que a vitória das urnas estava na razão de quem dispunha dos maiores elementos de desordem, fossem paisanos ou militares.”

O mesmo sistema que gerava a miséria provocava as turbulências no contexto social: fabricava aquele estado de coisas. Os capoeiras faziam uso da violência, indistintamente, contra membros de uma sociedade que sobrevivia às custas da escravidão, a violência institucionalizada sempre gerando mais violência. Enquanto isso, a Capoeira fazia mais adeptos, em todas os segmentos sociais. Segundo Francisco Pereira da Silva, o escritor Coelho Neto era exímio na arte: “Ágil na pena quanto destro na rasteira, duas vezes publicamente se valeu do ensino da capoeiragem recebido nos tempos de rapaz. Josué Montello refere-se a um destes episódios, precisando a data de 6 de agosto de 1886, quando à noite em meeting de abolicionistas no Teatro Politeama do Rio de Janeiro, discursava Quintino Bocaiúva. A certa altura, capoeiristas a soldo dos escravocratas irrompem das galerias e armam tremendo salseiro. Luzes apagadas, vem Coelho Neto e realiza a incrível proeza de desarmar o chefe do bando, que outro não era senão Benjamim - o mais temível capoeira carioca.”

De outra feita, o mesmo romancista Coelho Neto, em episódio também narrado por Josué Montello e aqui transcrito de Pereira da Silva, demonstrou seus atributos de destreza e valentia: “Na Academia Brasileira de Letras, fizera o tribuno maranhense referência em desfavor de um colega de imortalidade. Dias depois lhe apareceu um filho do suposto ofendido exigindo satisfação. Gravemente desentenderam-se e o jovem, que era atleta, não retardou seu golpe de jiu-jitsu. Instantaneamente e com agilidade felina, partiu Coelho Neto para o rabo de arraia levando o insolente a beijar o pó da calçada e a sumir no oco do mundo...”

Do capoeira da Bahia, no século passado, traçou Manoel Querino um perfil da sua figura inconfundível, que em muito se assemelhava à do seu contemporâneo capoeira do Rio de Janeiro: “Era um indivíduo desconfiado e sempre prevenido. Andando nos passeios, ao aproximar-se de uma esquina tomava imediatamente a direção do meio da rua; em viagem se uma pessoa fazia o gesto de cortejar a alguém, o capoeira, de súbito, saltava longe, com a intenção de desviar uma agressão, embora imaginária.
'Eram conhecidos à primeira vista pela atitude singular do corpo, pelo andar arrevesado, pelas calças de boca larga, ou pantalona, cobrindo toda a parte anterior do pé, pela argolinha de ouro na orelha, como insígnia de força e valentia, e o nunca esquecido chapéu à banda.”

Muitos foram os capoeiras que deixaram seus nomes e feitos inscritos nas páginas dos cronistas da história, deixando evidente a aptidão para feitos de coragem e bravura. Exemplo disso são as páginas do jornalista e escritor Monteiro Lobato, cronista e romancista, criador do Sítio do Pica-pau Amarelo e seus personagens, obra que o imortalizaria como maior nome da literatura infantil brasileira. O seu testemunho sobre o 22 do Marajó foi transcrito por João Lyra Filho, em Introdução à Sociologia dos Desportos: “Trata-se de um marinheiro, mestre em desordens, habituado a revirar de pernas para o ar quiosques portugueses; imperava na Saúde, onde suas proezas de capoeira exímio andavam de boca em boca. Tantas fez que o governo o mandou para o Norte, onde foi servir no Alto Amazonas. Ali aclimado, tornou-se rapaz sereno. Com boa pinta, ferrou namoro com a mulher de um ship-chandler, tornando-se seu amante. Mas o trio teve pouca duração; o marido enganado morreu. O marujo casou-se com a viúva, herdeira de bons pacotes, pediu baixa e seguiu para a Europa. No velho mundo, permaneceu dois anos, ao cabo dos quais veio morar no Rio de Janeiro.
'O marinheiro já era outro; transformado em perfeito cavalheiro, embasbacava a rua do Ouvidor com o apuro dos trajes, as polainas de gala, as luvas de pelica e a cartola café-com-leite. Ninguém sabia quem ele era, embora parecesse um fidalgo. Impávido, petroneando de monóculo, olhava de cima. De hábitos certos, todos os dias passava pelo largo São Francisco, assim como paca pelo carreiro. O logradouro era ponto de encontro preferido por alguns rapazes grã-finos, fortemente despeitados ante a esmagadora elegância do desconhecido. Este passou a ser visto como um rival, sobretudo no jogo lúdico do namoro com as donzelas. Os rapazes decidiram quebrar a proa do novo êmulo. Certa vez em que este passava, mais imponente do que nunca, coincidiu aproximar-se da roda um capoeira ‘mordedor’, que se gabava de ser um mestre em soltas. ‘Solta’ era uma cabeçada desferida no adversário, sem encosto da mão.
'Veio a hora da ‘mordida’ e com ela a hora da forra. Os rapazes selaram o trato: o capoeira embolsaria cinco mil réis, desde que sapecasse uma solta naquele freguês de monóculo. ‘É pra já’, disse o valentão, já indo ao encontro do rival. Postou-se perto, na calçada por onde caminhava o ‘22’, desperdiçando passos de lorde e esticado dentro do croisô confeccionado em Londres Um, dois, três. Quando o antigo marujo o defrontou, o capoeira avançou e despejou-lhe primorosa cabeçada. Mas o adversário, surpreendido, quebrou o corpo e mandou a cabeçada do agressor beijar a parede. Ao mesmo tempo, com um pé bem manobrado, plantou-o no chão com uma rasteira de placa. O ‘mordedor’ ergueu-se, tonto e confuso, para desabar, novamente, com outra rasteira de estilo. De agressor passara a agredido; desnorteado, deu sebo às canelas e foi amansar o galo da cabeça a cem passos adiante.
'O Petrônio ficou por ali mesmo, onde estava, dando-se ao conserto do laço da gravata. Mas não perdeu o ímpeto transformado no desprezo dirigido aos rapazes grã-finos e mofinos da roda elegante: ‘- Só uma besta desta dá soltas sem negaça. Já o Cincinato Quebra-Louça dizia que soltas sem negaça só em lampião de esquina; se grampeasse, vá lá. O Trinca-Espinha, o Estrepolia e o Zé da Gamboa admitem soltas neste caso. Mas, assim mesmo, só quando o semovente não é firme de letra.’ E, num giro de bengala entre os dedos, rematou com um suspiro de saudade: ‘- Já gostei desse divertimento. Hoje, minha posição social não me permite cultivá-lo. Mas vejo, com tristeza, que a arte está decaindo.’ E lá se foi, imperturbável e superior, monologando. ‘Soltas sem negaça...Forte besta!’
'Mas os rapazes não se deram por vencidos. Recuperados após o estupor, uma nova tentativa de desforra cresceu no ânimo deles. A desforra deveria ser contundente. Já então, a surra deveria ser mediante contrato: adjudicaram a empresa ao famoso Dente de Ouro, da Saúde, que haveria de romper o baluarte e quebrar de vez a proa ao estranho figurão. Tudo bem assentado, foram colocar-se no momento aprazado junto ao carreiro, com o rompe-e-rasga à frente. ‘É aquele lá’ - apressaram-se em dizer, assim que ao longe repontou a cartola café-com-leite do sobranceiro lutador. Dente de Ouro avançou para o desconhecido; ao defrontá-lo, entreparou e abriu-se num grande riso palerma: ‘Ei 22! Você por aqui?’ E a resposta: ‘- Cala o bico, moleque, e tome lá para o cigarro. Afasta-te que hoje sou gente; não ando em más companhias.’ E o 22 do Marajó seguiu caminho honesto, depois de meter uma pelega de dez na mão do Dente de Ouro. Este, alisando a nota, voltou ao grupo dos grã-finos. ‘Então?’ - um dos rapazes interrogou-o, desnorteado com o imprevisto desfecho. - ‘Cês tão besta? Aquele é o 22 do Marajó, tem corpo fechado para sardinha e pé que nunca melou saque!’ ”

Em A Alma Encantada das Ruas, João do Rio, pseudônimo de Paulo Barreto, jornalista, romancista, cronista, teatrólogo e contista, autor de Dentro da Noite, A mulher e Os Espelhos, e dos livros de reportagens As Religiões do Rio e Movimento Literário, nascido em 1880 e que veio a falecer em 1921, na crônica Presepes, aborda um grupo carnavalesco formado por negros da Bahia, que tem sua sede na praia Formosa, o Rei de Ouros. Descrevendo suas conversas com Dudú, um dos integrantes do grupo, quanto à composição do Presepes, indagou:
“- Mas porque, continuo eu curioso, põem vocês junto do rei Baltazar aquele boneco de cacete?
- Aquele é o rei da capoeiragem. Está perto do rei Baltazar porque deve estar. Rei preto também viu a estrela. Deus não esqueceu a gente. Ora, não sei se V.S. conhece que Baltazar é pai da raça preta. Os negros de Angola quando vieram para a Bahia trouxeram uma dança cungú, em que se ensinava a brigar. Cungú com o tempo virou mandinga e S. Bento.
- Mas o que tem tudo isso?
- Isso, gente, são nomes antigos da capoeiragem. Jogar capoeira é o mesmo que jogar mandinga. Rei da capoeiragem tem seu lugar junto de Baltazar. Capoeiragem tem sua religião.
Abri os olhos pasmados. O negro riu.
- V.S, não conhece a arte? Hoje está por baixo. Valente de verdade só há mesmo uns dez: João da Sé, Tito da Praia, Chico Bolivar, Marinho da Silva, Manoel Piquira, Ludgero da Praia, Manoel Tolo, Moisés, Mariano da Piedade, Cândido Baianinho e outros... Esses cabras sabiam jogar mandingas como homens...
- Então os capoeiras estão nos presepes para acabar com as presepadas.
- Sim senhor. Capoeiragem é uma arte, cada movimento tem um nome. É mesmo como sorte de jogo. Eu agacho, prendo V.S. pelas pernas e viro: - V.S. virou balão e eu entrei de baixo. Se eu cair virei boi. Se eu lançar uma tesoura eu sou um porco, porque tesoura não se usa mais. Mas posso arrestar-lhe uma tarrafa mestra.
- Tarrafa?
- É uma rasteira com força. Ou esperar o dégas de galho, assim duro, com os braços para o ar e se for rapaz da luta, passar-lhe o tronco na queda, ou, se for arara, arrumar-lhe mesmo o baú, pontapé na pança. Ah! V.S. não imagina que porção de nomes tem o jogo. Só rasteira, quando é deitada, chama-se banda, quando com força, tarrafa, quando no ar, para bater na cara do cabra, meia lua...
- Mas é um jogo bonito!, fiz para contentá-lo.
- Vai até o auê, salto mortal, que se inventou na Bahia.
'Para aquela lição intempestiva, já se havia formado um grupo de temperamentos bélicos. Um rapazola falou:
- E a encruzilhada?
- É verdade, não disseste nada da encruzilhada?
'E a discussão cresceu. Parecia que iam brigar...
'Fora, a chuva jorrava torrencial. Um relógio pôs-se a bater preguiçosamente meia-noite. As mulatinhas cantavam tristes: ‘Meu rei de Ouros quem te matou?/Foi um pobre caçadô’
'Mas Dudú saltou para o meio da sala. Houve um choque de palmas. E diante do quarto, onde se confundia o mundo em adoração a Deus, o negro cantou acompanhado pelo coro:


‘Já deu meia noite/O sol está pendente
Um quilo de carne/ Para tanta gente!’


'Oh! Suave ironia dos malandros! Na baiúca havia alegria, parati, álcool, fantasia, talvez o amor nascido de todas aquelas danças e do insuportável cheiro do éter floral...
'Não havia, porém, com que comer. Diante de Jesus, que só lhes dera o dia de amanhã, a queixa se desfazia num quase riso. Um quilo de carne para tanta gente!
'Talvez nem isso! Saí, deixei o último presepe.
'De longe, a casinhola com as suas iluminações tinha um ar de sonho sob a chuva, um ar de milagre, o milagre da crença, sempre eterna e vivaz, saudando o natal de Deus, através da ingenuidade dos pobres. Como seria bom dar-lhes de comer, ó Deus Poderoso!
'Como lhes daria eu um farto jantar se, como eles, não tivesse apenas a esperança de amanhã obter um quilo de carne só para mim!”

João Moniz, poeta nascido em Santo Amaro da Purificação, na Bahia, deixou nas páginas do jornal A Tarde um relato das suas impressões acerca do famoso capoeira Besouro, personagem que até os dias de hoje é cantado nas rodas do jogo. Com palavras de evidente admiração, afirmou o poeta: “Besouro foi a maior atração de minha infância. Seus combates simulados com Doze Homens, Ioiô, Nicori e outros capoeiristas seus amigos, ao som do berimbau e do pandeiro, eram espetáculos magníficos de força, agilidade e delicadeza, em que os suarentos e leais contendores se aplicavam, mutuamente, os perigosos preceitos de ataque e defesa, cuidadosos de se não machucarem, por que não saíssem mal-avindos do brinquedo. E Besouro, então, primava por essas atitudes de nobreza, ele que era respeitado como o primus inter pares, no recôncavo e no costeiro baianos, da luta, que lhe levaria o nome, em situação privilegiada, ao nosso folclore.
'Conheci Besouro na pujança dos seus vinte e poucos anos. Era amável, brincalhão, amigo das crianças e ‘respeitador dos brancos’. De uma coragem pessoal que parecia loucura, gostava de ‘buli’ com a polícia. E não raro explodia um turundundum dos diabos em frente à cadeia velha, sua terra natal. Era Besouro, que, noite velha, havia acordado o destacamento para um ‘brinquedo’, que se prolongava em correrias e tiros, e de que ele saía ileso e sempre sorrindo, como entrava.
'Às vezes, no calor da luta, tirava um pouco de ‘tinta’ nos praças, mas nunca matou ninguém. Tinha tanto horror a palavra assassino quanto adorava o termo valente, que lhe cabia a rigor.”

A respeito de uma versão - até hoje bastante acreditada - da morte de Besouro, onde este teria sido “morto traiçoeiramente pela polícia, por ter abatido oito praças com a capoeira, de uma só vez”, versão esta que foi publicada em reportagem assinada por Cláudio Tuiuty Tavares, em O Cruzeiro, afirmou João Moniz em sua crônica:


“Aquele particípio - abatido - empregado pelo repórter, deixa entender que Besouro matou oito soldados e por isso foi morto. Não, já deixei dito que Besouro nunca matou ninguém, e posso afirmar, com absoluta segurança, que não foi morto pela polícia.

'Contam-se duas versões da morte de Besouro. Uma, inverídica, resultante de perfídia política, e a outra, verdadeira, em que Besouro, embriagado, fora ferido a punhal, traiçoeiramente, por um rapazelho subestimado por ele à vista de outros, quando bebiam numa venda. E não morreu propriamente do golpe, mas, de mau trato, que o deixaram no chão por mais de um dia, o intestino à mostra, antes que o trouxessem para a Santa Casa de Misericórdia de Santo Amaro, onde fechou os olhos para a vida, cercado de amigos, admiradores e curiosos.”

Além do famoso Besouro, muitos capoeiras se notabilizaram, sendo que alguns se tornaram conhecidos mundialmente, como é o caso do pescador Samuel Querido de Deus, de Salvador, numa fase em que havia cessado a repressão ao jogo da Capoeira e sua prática já não era mais proibida. Jorge Amado, em Bahia de Todos os Santos, traçou o perfil do Querido de Deus, no ano de 1944, quando o pescador ainda vivia, sob o título O Capoeira: “Já começaram os fios de cabelo branco na carapinha de Samuel Querido de Deus. Sua cor é indefinida. Mulato, com certeza. Mas mulato claro ou mulato escuro, bronzeado pelo sangue indígena ou com traços de italiano no rosto anguloso? Quem sabe? Os ventos do mar nas pescarias deram ao rosto do Querido de Deus essa cor que não é igual a nenhuma cor conhecida, nova para todos os pintores. Ele parte com seu barco para os mares do sul do estado onde é farto o peixe. Quantos anos terá? É impossível saber nesse cais da Bahia, pois de há muitos anos que o saveiro de Samuel atravessa o quebra-mar para voltar, dias depois, com peixe para a banca do mercado Modelo. Mas o velhos canoeiros poderão informar que mais de sessenta invernos já se passaram desde que Samuel nasceu. Pois sua cabeça já não tem fios brancos na carapinha que parece eternamente molhada de água do mar?
'Mais de sessenta anos. Com certeza. Porém ainda assim, não há melhor jogador de capoeira, pelas festas de Nossa Senhora da Conceição da Praia, na primeira semana de dezembro, que o Querido de Deus. Que venha Juvenal, jovem de vinte anos, que venha o mais ágil, o mais técnico, que venha qualquer um, e Samuel, o Querido de Deus, mostra que ainda é o rei da capoeira da Bahia de Todos os Santos. Os demais são seus discípulos e ainda olham espantados quando ele se atira no rabo-de-arraia, porque elegância assim nunca se viu... E já sua carapinha tem cabelos brancos...
'Existem muitas histórias a respeito de Samuel Querido de Deus. Muitas histórias que são contadas no Mercado e no cais. Americanos do norte já vieram para vê-lo lutar. E pagaram muito caro por uma exibição do velho lutador.
'Certa vez seu amigo escritor foi procurá-lo. Dois cinematografistas queriam filmar uma luta de capoeira. Samuel chegara da pescaria, dez dias no mar e trazia ainda nos olhos um resto de vento sul. Prontificou-se. Fomos em busca de Juvenal. E, com as máquinas de som e de filmagem, dirigimo-nos todos para a Feira de Água dos Meninos. A luta começou e foi soberba. Os cinematografistas rodavam suas máquinas. Quando tudo terminou, Juvenal estendido na areia, Samuel sorrindo, o mais velho dos operadores perguntou quanto era. Samuel disse uma soma absurda na sua língua atrapalhada. Fora quanto os americanos haviam pago para vê-lo lutar. O escritor explicou então que aqueles eram cinematografistas brasileiros, gente pobre. Samuel Querido de Deus abriu os dentes num sorriso compreensivo. Disse que não era nada e convidou todo mundo para comer sarapatel no botequim em frente.
'Podeis vê-lo de quando em quando no cais. De volta de uma pescaria com seu saveiro. Mas com certeza o vereis na festa da Conceição da Praia, derrotando os capoeiras, pois ele é o maior de todos. Seu nome é Samuel Querido de Deus.”

Os principais estudiosos da cultura brasileira, no passado recente, imortalizaram o jogo da Capoeira em páginas magistrais. É este o caso de Eunice Catunda, que concorreu com suas observações para fixar análise do jogo e das suas tradições, em artigo intitulado Capoeira no Terreiro de Mestre Waldemar, publicado em Fundamentos - Revista de Cultura Moderna, no ano de 1952, em São Paulo.
“Todo artista que não acredita no fato de que só o povo é o eterno criador, que só dele nos pode vir a força e a verdadeira possibilidade de expressão artística, deveria assistir a uma capoeira baiana. Ali a força criadora se evidencia, vigorosa, livre dos preconceitos mesquinhos do academismo, tendo como lei primordial e soberana a própria vida que se expressa em gestos, em música, em poesia. Ali se exprime a vida magnífica e bela, em nada prejudicada pela capacidade limitada dos instrumentos musicais primitivos, aos quais se adapta sem ser por eles diminuída.
'O senso de realização coletiva, própria essência da arte, se revela no tríplice aspecto da capoeira, que é uma fusão de três artes: música, poesia e coreografia.”

Em seguida, Eunice Catunda acrescenta sua opinião quanto ao lugar ocupado pela Capoeira no contexto das artes, abalizada por sua formação musical erudita: “A dança da capoeira, na Bahia, é o que jamais deixou de ser a verdadeira arte: não um divertimento, mas uma necessidade. Aliás, é esse um dos fatores a que se deve a força mil vezes mais viva da arte popular quando a comparamos à música erudita: esse caráter funcional, esse aspecto de necessidade imperiosa que tem toda arte que o povo cultua. Ao passo que a música erudita soa cada vez mais falsa, se revela sempre mais um simples gozo de sibaritas, sem função, desnecessária.

'Na Bahia, a arte da capoeira é atividade domingueira, tão normal e querida quanto o nosso grande esporte nacional, o futebol. E quem a exerce é, na maioria, o povo trabalhador: operários da construção civil, carregadores do mercado, gente de profissão definida, que passa a semana inteira no duro batente, lutando para garantir o pão de cada dia, para si e para sua família.”

Na apreciação da Capoeira e suas características, a cronista prossegue registrando a função do mestre-capoeira e seu papel junto aos praticantes, guardando uma tradição que continua no correr dos anos: “O ritual, a tradição a que obedecem os participantes da capoeira, são muito rígidos. O mestre é o conhecedor da tradição. Daí ser ele, também a autoridade máxima. Supervisiona o conjunto todo, determinando a música, o andamento, tirando ou indicando os cantos ou indicando a pessoa que o faça.
'Os concorrentes novatos dançam entre si. Mas quando algum bailarino se destaca, o mestre dança com ele, apontando-o, por meio dessa distinção à atenção dos veteranos, novatos e assistentes. Essa autoridade do Mestre é uma das coisas mais admiráveis e comoventes que tenho visto. O respeito a ele demonstrado pela coletividade, o carinho com que o cercam, fariam inveja a muito regente de música erudita. Prova isto que o espírito de disciplina é mais vivo no povo rude e inculto da nossa terra, quando este se organiza, que entre as camadas superiores, já mais habituados à organização conseqüente da própria instrução e do exercício de atividades culturais e que, por isso mesmo, teriam maior obrigação de compreender a necessidade e a importância da disciplina na coletividade. Acontece porém que o mestre nunca abusa de seus direitos. Não se atribui poderes ditatoriais. Sabe que sua autoridade emana da própria coletividade e comporta-se como parte integrante desta.”

Ao entrar na descrição do terreiro onde aprecia a Capoeira, as anotações descrevem as condições de vida da gente anônima e humilde que resiste com a luta: “O terreiro de mestre Waldemar localiza-se no célebre bairro proletário da Liberdade. Bairro de grande densidade de população, sem pretensões, esquecido da Prefeitura que se preocupa em embelezar e cuidar só daqueles trechos da Cidade do Salvador que se encontram à vista do turista. Quanto ao bairro da Liberdade, não é para ‘gringo’ ver. Como todo bairro operário, não tem calçamento, é cheio de valas onde, em tempo de chuva, as águas parecem envoltas em nuvens de mosquitos; seus incontáveis casebres mal se têm de pé, e se o fazem é por pura teimosia. Abundam as vendolas onde se compra desde o jabá até a caninha. É um bairro repleto de vida e de movimento, corajoso e revoltado.”

A descrição da Capoeira praticada à época evidencia a beleza do jogo tradicional, na perícia e habilidade no manejo do corpo, sem resvalar para o confronto aberto.
“Quando chegamos ao terreiro a capoeira já começara. Dois dançarinos coleavam rentes ao chão, enquanto dois berimbaus e três pandeiros acompanhavam com estranhos ritmos e sons aquela dança magnífica e arrebatadora, de gente combativa e forte. Os dançarinos do momento eram um carregador do mercado de Água dos Meninos e um operário da construção civil. O operário estava todo de branco, sapatos brilhando, camisa alvejando. Era um dos melhores dançarinos. É costume da fina-flor dos capoeiristas o dançar assim, ‘de ponto branco’ como se costuma dizer, para demonstrar sua perícia. Chegam ao cúmulo da dançar de chapéu e os bailarinos hábeis se gabam de sair da dança sem uma só mancha de terra na roupa, limpos e bem arrumados como se ainda não houvessem entrado em função.
'A dança da capoeira é a representação simbólica de antigas lutas autênticas. Na Capoeira de Angola, os dançarinos volteiam quase rentes ao chão, realizando paradas de braço, em posição horizontal, girando, escorregando como enguias e escapulindo por sob o corpo do adversário. Os golpes são constatados por mesuras e pelas exclamações dos assistentes. Aliás, não fora a precisão daqueles movimentos, muitos dos golpes seriam mortais. Esse é o caso das célebres cabeçadas assestadas contra o peito e cujo impulso é sustado só no derradeiríssimo momento, quando a cabeça de um dos bailarinos já aflorou o corpo do outro. A violência latente nunca se desencadeia e esse extraordinário domínio de paixões mantêm a assistência numa incrível tensão de nervos, empolgando a todos numa espécie de hipnotismo coletivo quase indescritível. Só aqueles que assistiram a uma demonstração de Capoeira de Angola poderão compreender a monstruosa força e controle exigidos para que realize cada um daqueles movimentos, sem que se dê lugar a qualquer agressão, sem que se perca a elegância e a graça felina de cada gesto, absolutamente medido, calculado por uma espécie de instinto, já que os elementos atuantes se acham inteiramente entregues a aquela arte aparentemente tão impulsiva e espontânea.
'Apesar da violência latente, não sobrevêm a hostilidade. Há no meio daquilo tudo imensa fraternidade e júbilo. Verificam-se passes espirituosos de bailarinos brincalhões e sorridentes, a realizar difíceis e perigosíssimos passos e golpes. E entre os assistentes estouram sonoras risadas... Jamais vi, em danças de conjunto, nacionais ou estrangeiras, tão arrebatadora beleza, aliada a tal rapidez, precisão e força reprimida, dominada por uma inteira disciplina e lucidez.
'Tivemos ocasião de admirar um menino de sete anos que dançou com o próprio mestre Waldemar, de quem é aluno, e com aquele operário exímio de quem já falei. Não se pode imaginar quanto era comovente acompanhar a frágil figurinha infantil, hábil, compenetrada, a competir com o homem mais velho, em cujo rosto se iluminava um sorriso afetuoso, porém nada complacente. Concentrado, o menino aplicava cabeçadas e rasteiras, escapulindo matreira e agilmente das rasteiras e cabeçadas do mestre, cônscio de sua dignidade de futuro capoeirista, de futuro artista popular, imperturbável, sob os olhares e exclamações dos espectadores.
'A voz masculina, pura e profunda, se elevava acima do pulsar do conjunto instrumental, suave e intensa, muitas vezes modal, para só dar lugar ao côro, verdadeiro canto recitativo. Depois a voz continuava, fazendo floreios sobre a mesma base, sem nunca repetir, impossível quase de anotar com exatidão por meios não mecânicos.
'Os solistas se alternavam, dando à melodia a característica própria de seu temperamento humano. Umas eram mais vivas, mais espirituosas, enquanto outras eram sonhadoras, singelas. Mas todos os textos profundamente poéticos.
'Lembro-me bem de uma voz que se elevou para cantar a beleza dos saveiros de velas enfunadas, louvando o mar generoso e o vento que os conduz. Descreveu o vento a acumular nuvens para depois dissolvê-las em gotinhas de chuva, sobre a branca vela dos saveiros que embalou. Era a poesia popular que se fazia presente no esplendor típico da arte única que é a Capoeira de Angola. E a tudo isso o côro continuava a responder pela boca de todos os assistentes e participantes:


‘Eh! Paraná, eh! Paraná, camará...’ enquanto os dançarinos voltejando, girando, desviando os corpos das cabeçadas, rindo alto, aos saltos, elásticos como gatos.”

Vicente Ferreira Pastinha -
o mestre da Capoeira Angola

Capoeira eu sou Angola/valha-me Deus, senhor São Bento/tanto jogo para cima/como jogo para o chão...’

Vicente Ferreira Pastinha, nascido em 1889, dizia não ter aprendido a Capoeira em escola, mas “com a sorte”: foi o destino o responsável pela iniciação do pequeno Pastinha no jogo, ainda garoto.
Em depoimento prestado no ano de 1967, no Museu da Imagem e do Som, mestre Pastinha relatou a história da sua vida: “Quando eu tinha uns dez anos - eu era franzininho - um outro menino mais taludo do que eu tornou-se meu rival. Era só eu sair para a rua - ir na venda fazer compra, por exemplo - e a gente se pegava em briga. Só sei que acabava apanhando dele, sempre. Então eu ia chorar escondido de vergonha e de tristeza (...)”

A vida iria dar ao moleque Pastinha a oportunidade de um aprendizado que marcaria todos os anos da sua longa existência.
“Um dia, da janela de sua casa, um velho africano assistiu a uma briga da gente. ‘Vem cá, meu filho’, ele me disse, vendo que eu chorava de raiva depois de apanhar. Você não pode com ele, sabe, porque ele é maior e tem mais idade. O tempo que você perde empinando raia vem aqui no meu cazuá que vou lhe ensinar coisa de muita valia. Foi isso que o velho me disse e eu fui (...)”

Começou então a formação do mestre que dedicaria sua vida à transferência do legado da cultura africana a muitas gerações. Segundo ele, a partir deste momento, o aprendizado se dava a cada dia, até que aprendeu tudo. Além das técnicas, muito mais lhe foi ensinado por Benedito, o africano seu professor.
“Ele costumava dizer: não provoque, menino, vai botando devagarzinho ele sabedor do que você sabe (...). Na última vez que o menino me atacou fiz ele sabedor com um só golpe do que eu era capaz. E acabou-se meu rival, o menino ficou até meu amigo de admiração e respeito (...).
'Aos doze anos, em 1902, eu fui para a Escola de Aprendiz de Marinheiro. Lá ensinei Capoeira para os colegas. Todos me chamavam de 110. Saí da Marinha com 20 anos (...). Vida dura, difícil. Por causa de coisas de gente moça e pobre, tive algumas vezes a Polícia em cima de mim. Barulho de rua, presepada. Quando tentavam me pegar eu lembrava de mestre Benedito e me defendia. Eles sabiam que eu jogava Capoeira, então queriam me desmoralizar na frente do povo. Por isso, bati alguma vez em polícia desabusado, mas por defesa de minha moral e de meu corpo(...). Naquele tempo, de 1910 a 1920, o jogo era livre.
'Passei a tomar conta de uma casa de jogo. Para manter a ordem. Mas, mesmo sendo capoeirista, eu não me descuidava de um facãozinho de doze polegadas e de dois cortes que sempre trazia comigo. Jogador profissional daquele tempo andava sempre armado. Assim, quem estava no meio deles sem nenhuma arma bancava o besta. Vi muita arruaça, algum sangue, mas não gosto de contar casos de briga minha. Bem, mas só trabalhava quando minha arte negava sustento. Além do jogo trabalhei de engraxate, vendia gazeta, fiz garimpo, ajudei a construir o porto de Salvador. Tudo passageiro, sempre quis viver de minha arte. Minha arte é ser pintor, artista (...).”

O ritmo da sua vida foi alterado quando um ex-aluno o levou para apresentar aos mestres que faziam uma roda de Capoeira tradicional, na Ladeira da Pedra, no bairro da Gingibirra, em Salvador, no ano de 1941.
“Na roda só tinha mestre. O mais mestre dos mestres era Amorzinho, um guarda civil. No apertar da mão me ofereceu tomar conta de uma academia. Eu dei uma negativa, mas os mestres todos insistiram. Confirmavam que eu era o melhor para dirigir a Academia e conservar pelo tempo a Capoeira de Angola.”
Foi na atividade do ensino da Capoeira que Pastinha se distinguiu. Ao longo dos anos, a competência maior foi demonstrada no seu talento como pensador sobre o jogo da Capoeira e na capacidade de comunicar-se.
“Mas tem muita história sobre o começo da Capoeira que ninguém sabe se é verdadeira ou não. A do jogo da zebra é uma. Diz que em Angola, há muito tempo, séculos mesmo, fazia-se uma festa todo ano em homenagem às meninas que ficavam moças. Primeiros elas eram operadas pelos sacerdotes, ficando igual, assim, com as mulheres casadas. Depois, enquanto o povo cantava, os homens lutavam do jeito que fazem as zebras, dando marradas e coices. Os vencedores tinham como prêmio escolher as moças mais bonitas (...). Bem, mas de uma coisa ninguém duvida: foram os negros trazidos de Angola que ensinaram Capoeira pra nós. Pode ser até que fosse bem diferente dessa luta que esses dois homens estão mostrando agora. Me contaram que tem coisa escrita provando isso. Acredito. Tudo muda. Mas a que a gente chama da Capoeira de Angola, a que aprendi, não deixei mudar aqui na Academia. Essa tem pelo menos 78 anos. E vai passar dos 100, porque meus discípulos zelam por mim. Os olhos deles agora são os meus. Eles sabem que devem continuar. Sabem que a luta serve para defender o homem (...). Saem daqui sabendo tudo, sabendo que a luta é muito maliciosa e cheia de manhas. Que a gente tem de ser calmo. Que não é uma luta atacante, ela espera. Capoeirista bom tem obrigação de chorar no pé do seu agressor. Está chorando, mas os olhos e o espírito estão ativos. Capoeirista não gosta de abraço e aperto de mão. Melhor desconfiar sempre das delicadezas. Capoeirista não dobra uma esquina de peito aberto. Tem de tomar dois ou três passos à esquerda ou à direita para observar o inimigo. Não entra pela porta de uma casa onde tem corredor escuro. Ou tem com o que alumiar os esconderijos da sombra ou não entra. Se está na rua e vê que está sendo olhado, disfarça, se volta rasteiro e repara de novo no camarada. Bem, se está olhando ainda, é inimigo e o capoeirista se prepara para o que der e vier (...).”

Os conceitos do mestre Pastinha formaram seguidores em todo o país. A originalidade do método de ensino, a prática do jogo enquanto expressão artística formaram uma escola que privilegia o trabalho físico e mental para que o talento se expanda em criatividade.
“Capoeira de Angola só pode ser ensinada sem forçar a naturalidade da pessoa, o negócio é aproveitar os gestos livres e próprios de cada qual. Ninguém luta do meu jeito mas no jeito deles há toda a sabedoria que aprendi. Cada um é cada um (...). Não se pode esquecer do berimbau. Berimbau é o primitivo mestre. Ensina pelo som. Dá vibração e ginga ao corpo da gente. O conjunto da percussão com o berimbau não é arranjo moderno não, é coisa dos princípios. Bom capoeirista, além de jogar, deve saber tocar berimbau e cantar. E jogar precisa ser jogado sem sujar a roupa, sem tocar no chão com o corpo. Quando eu jogo, até pensam que o velho está bêbado, porque fico todo mole e desengonçado, parecendo que vou cair. Mas ninguém ainda me botou no chão, nem vai botar (...)”

Vicente Ferreira Pastinha se calou no ano de 1981. Durante décadas dedicou-se ao ensino da Capoeira. Mesmo completamente cego, não deixava seus discípulos. E continua vivo nos capoeiras, nas rodas, nas cantigas, no jogo.


“Tudo o que eu penso da Capoeira, um dia escrevi naquele quadro que está na porta da Academia. Em cima, só estas três palavras: Angola, capoeira, mãe. E embaixo, o pensamento: Mandinga de escravo em ânsia de liberdade, seu princípio não tem método e seu fim é inconcebível ao mais sábio capoeirista”.

Manoel dos Reis Machado: o mestre Bimba

"Chora capoeira/capoeira chora/chora capoeira/ mestre Bimba foi embora...”

No dia 23 de novembro de 1899 nasceu no bairro de Engenho Velho, freguesia de Brotas, cidade de Salvador, Bahia, Manoel dos Reis Machado. Teve como pai Luis Cândido Machado, caboclo de Feira de Santana. Sua mãe, Maria Martinha do Bonfim, era uma crioula de Cachoeira.
Logo ao nascer o garoto ganhou um nome que se tornaria símbolo e sinônimo da Capoeira. Isso graças a uma frase dita à hora do parto: - olha a bimbinha dele! Esta exclamação definiu o resultado de uma aposta entre a mãe da criança - que imaginava uma menina - e a parteira, que previra um menino. Ninguém seria capaz de pensar, naquele momento, que Bimba passaria a ser um nome destinado a acompanhar o futuro capoeira em sua entrada na história do jogo.

O aprendizado de lutas se iniciou com o pai, à época famoso lutador de batuque - uma antiga forma de luta negra. Aos 12 anos começou a aprender Capoeira com o africano Bentinho, capitão da Cia. de Navegação Bahiana. Segundo suas palavras, o sistema de aulas à época era bastante violento. As rodas eram formadas na Estrada das Boiadas (atual bairro da Liberdade), em Salvador, num ritmo bravio ao som do berimbau. Mestre Bimba costumava recordar um golpe formidável aplicado por Bentinho, que o acertara na cabeça, provocando um desmaio até o dia seguinte...

Seu trabalho como mestre-capoeira iria distinguir-se pela divulgação do jogo em todos os recantos do país e a elaboração de um sistema próprio de treinamento e transmissão dos conhecimentos e técnicas do jogo: a Capoeira Regional Bahiana.
Graças aos seus esforços foi aberta a primeira Academia de Capoeira com autorização oficial. Esta seria a forma adotada por inúmeros mestres para obter e legalizar um espaço, onde a prática do jogo não sofreria o perigo de perseguições. Afinal, era o ano de 1937 e o país vivia sob uma ditadura - período que sempre se destaca pela generalização das arbitrariedade e cometimento de toda sorte de violências pelos detentores do poder. E o que era tolerado em um dia poderia ser reprimido no outro.

Em sua vida Bimba foi trapicheiro, doqueiro, carroceiro, carpinteiro. Mas acima de qualquer coisa e por todo o tempo, mestre-capoeira. Um dos maiores nomes deste ofício.
Ninguém melhor que um contemporâneo de Bimba para descrevê-lo brincando a Capoeira. Ramagem Badaró - de conhecida família bahiana da zona de cultivo do cacau, que foi enfocada por Jorge Amado em Terras do Sem Fim -, jornalista, advogado e escritor, autor do romance O Sol, deixou interessante relato acerca do mestre, no artigo intitulado 'Os negros lutam suas lutas misteriosas; Bimba é o grande rei negro do misterioso rito africano', publicado em Saga - magazine das Américas, no ano de 1944, em Salvador.
“Tinha uma difícil missão a cumprir. Encontrar um assunto para uma reportagem que não fosse sobre guerras, suicídios ou crime. Um assunto diferente que não proviesse da fonte comum de todas as reportagens da cidade. Das delegacias de polícia, do Necrotério ou da Assistência. Porque os casos de delegacia são sempre os mesmos: roubo, crime e sedução. Os de Necrotério são anacrônicos e os de Assistência, banalíssimos.
'Estava nesse dilema, quando passou um negro de andar gingante de capoeira. Tinha resolvido o problema. Lembrei-me de mestre Bimba e da velha Roça do Lobo. Fui até o bairro elegante dos Barris, em cujos flancos se derramam em desordem as casas de taipa da vala do Dique. Presépios de palha da miséria sem esperança dos homens do povo. Quando comecei a descer pela picada aberta na ladeira pelos pés descalços e calosos daquela gente que nasce com o atavismo dos párias e a herança do infortúnio, já os sons dos berimbaus traziam aos meus ouvidos o cartão de boas vindas do terreiro de mestre Bimba. Continuei descendo, até que de repente o caminho se alargou e se confundiu com o terreiro onde os homens lutavam Capoeira. O povo formava um círculo ao redor dos dois homens lutando. Jogando Capoeira no centro do círculo.
'O berimbau batia compassadamente, tin-tin-tin... tin-tin-tin... tin-tin-tin... enquanto os homens pulavam, caíam, levantavam-se num salto e deixavam-se cair outra vez, se golpeando mutuamente. O povo batia palmas acompanhando a música dos berimbaus e cantando o estribilho da Capoeira:


Zum, zum, zum, zum/ Capoeira mata um
Zum, zum, zum, zum/ No terreiro fica um...


Caí também no meio da turma e comecei a bater palmas e a tentar cantar o zum, zum da Capoeira (...).”
Badaró narra o instante que precede a entrada do mestre Bimba no jogo e a emoção que tomou conta dos espectadores.

“De súbito, o tin-tin nervoso dos berimbaus sumiu, calou-se, parou. Os berimbaus deixaram de tocar. Os homens que estavam lutando também pararam. Com as roupas molhadas de suor desenhando nas dobras do corpo os músculos possantes. Os assistentes aplaudiram os homens que tinham acabado de lutar. E eles cantaram um corrido, agradecendo os aplausos.


Ai-ai de lelô/ Iem-ien de lalá
Adeus meus irmãos/ Nós vamos rezar


'Nesse momento gritaram:
- Mestre Bimba vai lutar!
'Todo mundo se voltou para trás, batendo palmas e gritando:
- Mestre Bimba... mestre... viva... viva... vivôôôôôô.
'Um preto agigantado entrou no círculo formado pelo povo. Sorrindo. A multidão aplaudiu com mais força. O sol bateu-lhe de rijo no rosto escuro, iluminando-lhe as feições. Era de fato, alto. O rosto oval. Os olhos fundos escondidos numa testa saliente. Nariz chato. Carapinha rala quase careca. E um bigode pequeno, ralo, em forma de triângulo sobre os lábios grossos. Mas no conjunto era simpático.

O jornalista narra a forma como Bimba se prepara para jogar, enfatizando a aura de respeito que envolvia o famoso mestre. Uma disputa de versos antecede o confronto na roda de Capoeira.
“Quando Bimba entrou no círculo os berimbaus começaram a ensaiar uns toques. E a multidão que enchia o terreiro aplaudia freneticamente o seu ídolo. Nisso, um crioulo possante entrou no círculo, aceitando o desafio. E o povo comentou a coragem daquele homem que ia lutar com Bimba. Porque entrar numa luta com Bimba sem ser convidado por ele é procurar encrenca. Mesmo sendo mera demonstração. Porque ele é o rei da Capoeira. Os berimbaus ensaiaram um toque e um dos homens perguntou:
- Qual é o toque? - São Bento Grande Repicado, Santa Maria, Ave Maria, Benguela, Cavalaria, Calambolô, Tira-de-lá-bota-cá, Idalina, ou Conceição da Praia?
'Bimba pensou rapidamente e disse:


- Toque Amazonas e depois Benguela.
'Os berimbaus começaram a tocar. O crioulo aproximou-se e mestre Bimba apertou-lhe a mão. E o povo começou a acompanhar o tin-tin-tin dos berimbaus, batendo palmas. Bimba balanceou o corpo e cantou:


No dia que eu amanheço/ Dentro de Itabaianinha
Homem não monta cavalo/ Nem mulher deita galinha
As freiras que estão rezando/ Se esquecem da ladainha


'Mas o crioulo não ficou atrás e cantou, negaceando o corpo no compasso dos berimbaus.
A iúna é mandingueira/ Quando está no bebedor
Foi sabida e é ligeira/Mas capoeira matou
'Palmas festejaram o repente do crioulo. Porém, Bimba não deu tréguas à vitória do outro. E respondeu:


Oração de braço forte/ Oração de São Mateus
Pro cemitério vão os ossos/ Os seus ossos, não os meus
'Novamente o povo aplaudiu e cantou o estribilho da Capoeira:


Zum, zum, zum, zum/ Capoeira mata um
Zum, zum, zum, zum/ No terreiro fica um
'O crioulo, entretanto, não deixou cair a quadra de mestre Bimba e replicou:
E eu nasci no sábado/No domingo me criei
E na segunda-feira/ A Capoeira joguei
'A multidão deu vivas e bateu palmas para os dois lutadores no centro do círculo. Uma preta comentou:


- Bom menino! Se é bom na briga como é no canto, boa parada para Bimba.
Começa então a disputa na roda e Ramagem Badaró conta com detalhes o momento final: “Os dois lutadores negaceavam os corpos ao som da música dos berimbaus. Um defronte do outro. Olhando-se dentro dos olhos, se estudando mutuamente. O crioulo foi o primeiro a começar. Fazendo algumas fintas, procurando descobrir as partes fracas do adversário. E mestre Bimba aparentemente deixava-se cair nas ciladas do outro. O crioulo foi começando a tomar gosto e abrindo mais a própria guarda, concentrado no ataque. A multidão no terreiro da Roça do Lobo, continuava acompanhando com as mãos o tin-tin-tin dos berimbaus. E a cantar em coro o estribilho da Capoeira:


Zum, zum, zum, zum/ Capoeira mata um
Zum, zum, zum, zum/ No terreiro fica um


'Enquanto isso os lutadores continuavam negaceando os corpos, procurando descobrir os pontos fracos do adversário.
'De repente, pararam de súbito. E ficaram mudos de atenção, apreciando o ataque. O crioulo avançou rápido, levantou uma perna e deu uma meia-lua-armada pela direita de Bimba. Porém, não deu resultado, porque Bimba foi mais rápido. Deixou-se cair na guarda, enquanto tentava puxar o adversário numa rasteira. Mas, o crioulo também era ligeiro e livrou-se do golpe com um aú pela esquerda. Bimba insistiu, tornando a atacá-lo. Tentando pegá-lo numa cabeçada presa. Porém o crioulo contra-atacou com uma calcanheira violentíssima. Entretanto Bimba livrou-se agilmente com um formidável pulo mortal.
'Os berimbaus tocavam com mais frenesi. Demonstrando a excitação nervosa dos tocadores. Também as palmas de acompanhamento diminuíram muito, quase cessando.
'Enquanto isso a assistência completamente em suspenso, apreciava a luta nos seus mínimos detalhes.
'Bimba notou que tinha bom adversário. O crioulo era bom de verdade. Manhoso, ágil e corajoso. O crioulo começou a se afastar de Bimba como se fosse dar-lhe as costas numa fuga. Bimba percebeu de relance o truque do adversário e ficou em guarda. Os músculos completamente controlados, prontos para aproveitar aquela oportunidade. Como ele esperava, o crioulo deu-lhe completamente as costas, como se fugisse da luta. Esperando que ele caísse no velho truque da Capoeira e mergulhasse num arpão de cabeça, dando-lhe a oportunidade de contra-atacar com um mortífero arpão de joelho. Mestre Bimba, que já previra o golpe, defendeu-se com uma negativa. Puxando ao mesmo tempo a única perna do crioulo apoiada no chão, com uma violenta rasteira. Pegado de surpresa, o crioulo perdeu o equilíbrio, subiu e desabou no terreiro. Uma gritaria retumbante festejou a sagacidade de Bimba. Todo mundo ficou excitado, menos mestre Bimba.
'O capoeirista caído, levantou-se com a mesma rapidez com que caíra. Porém, estava raivoso, com o sangue fervendo nas veias. Danado de raiva e meio descontrolado. E afastou-se de Bimba, sempre negaceando o corpo, procurando desanuviar a cabeça. A assistência gritava e batia palmas acompanhando o tin-tin-tin nervoso da orquestra dos berimbaus e o xique-xique dos chocalhos de vime, cantando sempre o estribilho da capoeira:


Zum, zum, zum, zum/Capoeira mata um
Zum, zum, zum, zum/No terreiro fica um


'Nesse instante o crioulo voltou novamente para o centro do círculo. E avançou para Bimba tentando pegá-lo numa vingativa pela esquerda. Não acertou e tomou uma vaia. O crioulo se descontrolou e avançou louco de raiva. Tentou apanhar Bimba com um golpe de cotovelo e um sopapo galopante. Mas Bimba não se deixava alcançar. Continuava negaceando o corpo, sempre fintando, por meio de rápidas escapadas. A multidão delirava. Isso, entretanto, lhe distraiu a atenção. Fazendo com que relaxasse a vigilância da sua guarda. E o crioulo soube tirar partido desse descuido. Aproximou-se veloz, levantou a perna e deu-lhe uma bênção em pleno peito. Mestre Bimba pressentiu o golpe e tentou livrar-se. Foi ligeiro. Mas não o suficiente para se livrar completamente do golpe. O peito lhe doeu e a sua vaidade também. Porque as palmas do público festejavam o crioulo.
'Bimba não deu tréguas à vitória do outro. Avançou para o crioulo fingindo ir dar um balão açoitado. Depois, ensaiou uma palma e levantou a perna como se fosse dar uma bênção. O crioulo ficou todo confuso com a rapidez e a sucessão dos golpes. Pensou que aquele último golpe era o verdadeiro ataque que Bimba queria fazer e procurou defender-se caindo numa rasteira. Viu o seu erro e tentou derrubar Bimba com uma encruzilhada. Também errou e mestre Bimba dominou-o com um tronco de pescoço, antes que ele pudesse livrar-se num balão. Tinha vencido a luta. O povo invadiu o terreiro aplaudindo o rei da Capoeira. Bimba abraçou o adversário. E o crioulo mostrou que era homem mesmo. Cantou:


Santo Antônio pequenino/Amansador de burro brabo
Amansai-me em Capoeira/com setenta mil diabos

'Bimba gostou do elogio e retribuiu, cantando:


Conheci um camarada/Quando nós andarmos juntos
Não vai haver cemitérios/P’ra caber tantos defuntos
'A multidão tornou a aplaudir e mestre Bimba abraçou o crioulo (...).”

Com sua incursão no terreiro de mestre Bimba, Ramagem Badaró conseguiu sua reportagem e escreveu bonita página sobre a Capoeira desse tempo, mostrando-nos mais uma vez o quanto é solidária a autêntica manifestação da luta, nessa arte.
Mestre Bimba dedicou-se ao jogo até o final dos seus dias. Em seus últimos anos de vida, deixou a Bahia e veio para Goiás, atraído pela possibilidade de encontrar o reconhecimento a que fazia jus. No ano de 1974 mestre Bimba deixou definitivamente o convívio da família, amigos e discípulos e passou a ocupar lugar de destaque na memória da Capoeira.



III - A roda da Capoeira



'Ritmo na luz/ ritmo na cor/ ritmo no movimento
ritmo nas gretas sangrentas dos pés descalços
ritmo nas unhas descarnadas/Mas ritmo/ ritmo.
Ó vozes dolorosas de África!


Agostinho Neto, Fogo e ritmo.


A música da Capoeira

Berimbau já fez chamada/é hora de lutar
essa dança Capoeira, oi sinhá/ é de matar...’

Como as primeiras manifestações musicais não deixaram vestígios seguros, é impossível precisar como e quando surgiu a música. A maior parte dos estudiosos sequer se arrisca a fazer especulações; outros abordam hipóteses com base no que se sabe sobre a vida humana pré-histórica e preenchem as lacunas óbvias com forte dose de imaginação. Entretanto, nenhuma teoria afirma com certeza o momento em que os primitivos começaram a fazer arte por meio de sons.

Ao que tudo indica, o homem das cavernas conferia à sua música um sentido religioso, considerando-a um presente dos deuses e atribuindo-lhe funções mágicas. Associada à dança, a música assumia um caráter ritual, por meio do qual era possível reverenciar o Desconhecido, agradecendo-lhe a fertilidade da terra, a abundância da caça. Com o ritmo saído de movimentos elementares - batendo as mãos e os pés - talvez eles buscassem também celebrar fatos da sua realidade: vitórias nas guerras, descobertas surpreendentes. Com o passar do tempo, além do uso das batidas de mãos e pés, suas danças passaram a ser ritmadas com pancadas na madeira, a princípio de forma simples e depois mais trabalhadas, para soarem de modo diferente. Pode ter surgido daí o instrumento de percussão.

Não é difícil imaginar o quanto os barulhos da natureza deviam fascinar o homem daqueles tempos, inspirando-lhe a vontade de imitar o ruído das águas, o sopro do vento, os sons dos demais animais. Como para isso o ritmo não era suficiente e o artesanato ainda não possibilitava a invenção de instrumentos melódicos, estranhos sons emitidos pela garganta devem ter constituído as formas rudimentares de canto. Isto junto com o ritmo resultou numa mistura de palmas, gritos e batidas. Era tudo ao alcance do homem primitivo. E certamente terá sido um estilo que resistiu por muito tempo.

Segundo os conceitos atuais de música, essas tentativas de expressão foram demasiado pobres para se enquadrarem na categoria de arte musical. Do ponto de vista histórico, entretanto, tiveram uma importância enorme, pois a rítmica elementar então desenvolvida acompanhou o homem em sua caminhada, se espalhando sobre a terra, preponderantes na elaboração de culturas e civilizações. E continuou evoluindo com ele, acumulando todas as transformações vividas pela humanidade até os dias atuais, sendo que muitas de suas antigas descobertas permanecem em pleno uso, com pequenas modificações


Na roda do berimbau

A roda se enche de sons. É uma festa de ritmos e cantos bravios, onde a sensibilidade se manifesta livremente. E acontece a dança e o canto em meio à luta.
Na Capoeira a musicalidade é fundamental. Raiz e corpo da arte, a melodia flui de toda parte. Berimbaus, atabaques, ganzás, agogôs, pandeiros, tudo é som e movimento.
As cantigas estão presentes no jogo desde quando se forma o círculo. E o primeiro canto - geralmente conduzido pelo capoeira mais antigo presente à roda - pode ser um improviso.

Se o berimbau toca Angola, o canto inicial é um solo denominado ladainha. Neste momento, enquanto é ouvida a cantiga, não há jogo. A atenção de todos está no conteúdo da música. Pode estar sendo transmitida uma mensagem onde o capoeira dá expressão à sua vivência na roda ou às experiências adquiridas ao longo da vida. Pode ser ainda que a ladainha rememore fatos passados, trazidos à lembrança como aviso aos jovens, enquanto perpetua um pouco da história do jogo e dos capoeiras.

A música é um dos instrumentos de preservação da memória, transmitindo as tradições de diferentes épocas do passado da Capoeira. O canto às vezes exprime tristeza pela ausência de um camarada que já morreu, encerrando ainda uma advertência ou observação, um exemplo prático, uma lição para a vida. Ao encerrar a ladainha é iniciado pelo solista um refrão, sinal para a entrada do coro formado pelos capoeiras.

À medida em que o jogo tenha seu desenvolvimento, as cantigas irão acompanhar e descrever - numa linguagem peculiar - as situações que acontecem na roda, quando não ocorre do canto determinar, de forma sutil, o desenvolvimento das ações.
A poesia pode significar uma provocação a alguém ou uma brincadeira com qualquer dos capoeiras; pode traduzir uma advertência à forma muita das vezes perigosa em que transcorre o jogo; pode ser ainda a reverência a um orixá. De qualquer forma, as cantigas trazem uma característica comum - a linguagem figurada e de compreensão restrita aos jogadores.

A sonoridade vibrante dos berimbaus é magnética. Agora tocam a Iúna. Dizem os antigos que neste toque ressoa o canto da ave Inhuma (ou Anhuma) e conta a lenda que ela é portadora de uma força mágica. Encantada, dos seus pios de desprende a magia dos deuses...
Ouçamos o toque. Num dado momento se destacam os sons agudos de um berimbau para no instante seguinte serem suplantados por outro, que vibra com profunda gravidade. É o diálogo das Iúnas. Como se dois seres mitológicos, tomados de profunda paixão, tornassem audível seu canto de amor. Que às vezes ecoa aparentando entendimento, para subitamente transfigurar-se no embate inarmônico de apaixonado desencontro.

Ao final prevalece a compreensão entre berimbaus gunga e viola - de timbres grave e agudo, respectivamente - mas fica a nítida impressão que de repente começará tudo mais um vez.
O atabaque traz evocações que transportam ao mundo da magia. O ritmo misterioso descobre - à visão da mente - um cenário de realismo fantástico. A força dos sons invade o capoeira, arrastando o pensamento, que se perde num turbilhão de emoções e pode levar à trilha do sobrenatural: empolgação e fascínio se traduzem em agilidade e força. E se descortina a África viva em cada um de nós. Misteriosa, como a exaltação que brota bem de dentro, aos jorros, atinge a superfície da pele e transborda, em gestos de força e beleza. Até que sobrevenha a calma e sossego, como numa estranha dança.

Os tons do agogô se destacam num claro contraponto entre a marcação discreta e a dissonância que fere os sentidos, despertando-os. Essa é sua função, e à medida em que esses sons se fazem ouvir, se perde a noção do tempo e espaço, na excitação que atordoa: tudo se torna encanto.
Ao fundo o ganzá impõe o balanço do som capaz de prender - no seu movimento compassado - o fluxo da vontade, arrastando-a e somente liberando o capoeira após conquistada sua alma. Só aí ele retorna, entre surpreso e extasiado, ao confronto com a realidade. Talvez uma serpente mítica tenha sacudido os guizos, em meio ao torvelinho dos sentidos livres, e tenha capturado sua presa, tornando-a semelhante, dando-lhe suas características de contida agressividade e determinação.
O troar constante do reco-reco pode impelir o ouvinte a quedar-se surpreso. A atenção é desviada para o soar imprevisível, que causa a sensação de uma chibata imaginária, provocando estalos que ressoam dentro do capoeira, os açoites despertando arrepios de coragem e repercutindo na luta.

Noutro momento o berimbau toca Angola. Está prestes a acontecer o jogo de maior importância, que define o espírito da Capoeira. A voz do mestre se levanta, com um acento de tristeza e lamento, entoando um canto de forte sabor nostálgico. O berimbau gunga acompanha gravemente as modulações da voz, repicando de forma compassada e realçando cada verso da cantiga. E talvez resida nisto a grande musicalidade das ladainhas, todas de extrema simplicidade.

Enquanto o gunga se ajusta à voz que puxa a cantoria, formando um dueto, o berimbau viola acrescenta ao conjunto o timbre agudo, despontando em improvisos que se sucedem numa riqueza de variações impressionante.

Cada instrumento acrescenta à música colorido especial, dando vida à Capoeira. Africanos pela origem, nascidos do sangue e natureza do negro, construíram a brasilidade. Graças a eles, cantores nativistas são capazes de encontrar elementos para a composição de uma expressão musical brasileira, representativa dos sentimentos comuns à nossa gente. O som vai prosseguir por horas a fio, fazendo a delícia dos jogadores entregues à arte, embevecendo os que assistem à roda e ensinando um caminho para a redescoberta de outras formas de comunicação.


As origens do berimbau

Talvez desde a pré-história o arco musical se constitui numa das formas de instrumento encontradas pelo homem, na busca da expressão sonora que lhe permitisse exteriorizar o íntimo. E o acompanhou no decorrer da sua evolução, presente em diversas culturas até os dias atuais.
Acreditam alguns pesquisadores que o arco musical resultaria do desenvolvimento do arco de caça - cuja invenção pode ter ocorrido em algum momento entre cerca de 20.000 a 15.000 anos passados, no norte da África. Outros já supuseram exatamente o contrário: o arco de caça é que teria se originado do arco musical... E para aumentar o elenco de possibilidades, existem opiniões que discordam das anteriores: o arco musical e o arco de caça tiveram origem e desenvolvimento completamente independentes um do outro...

Dentre a diversidade de teorias a respeito do arco musical predomina certa concordância, ao ser fixado o período por volta de 15.000 a.C. como época em que possivelmente ocorreria o seu uso pelo homem primitivo. Pinturas localizadas em uma caverna (Les Trois Fréres) na região sudeste da França, feitas nesse período da pré-história, retratam um homem que se veste com peles de bisão, trazendo seguro um objeto que se parece com o arco, mantido próximo do rosto. O pesquisador Abbé Breuil identificou o desenho como de um homem tocando um arco musical.

De todo modo, relatos mais recentes de exploradores e viajantes, particularmente do século XIX, trazem outras evidências do arco musical na África Central, do Sul, Patagônia, Novo México, Brasil...
Existem formas diversas de classificação do arco musical. Assim, tanto pode ser incluído na categoria de cítaras, quanto algumas formas se encaixam com maior facilidade na classe das harpas. Mais uma vez, qualquer que seja a opinião seguida, o arco musical se fez presente nas antigas culturas egípcia, assíria, caldéia, fenícia, persa, indú. Na África, muitas espécies de arco musical podem ser encontradas entre tribos de Uganda, pigmeus do Congo, em Angola e noutras regiões.
Como não foram efetuadas pesquisas em profundidade no Brasil e continente africano antes do final do século passado, não existem informações documentais quanto à presença e uso do arco musical, na forma por nós conhecida como berimbau, antes dessa época. Com certeza existiam - já que são utilizados tradicionalmente - há muito tempo no continente africano. O que não podemos é precisar desde quando.

Informações importantes foram prestadas por inúmeros exploradores, viajantes e pesquisadores do período final do século passado e alguns mais recentes, que apesar de fazerem narrativas um tanto superficiais e sem detalhes, nos permitem estabelecer a presença do nosso berimbau na África, originando sua presença também no Brasil, pois além das formas idênticas, são iguais em construção e tocados do mesmo modo. Resumindo, registram o mesmo instrumento, seja qual for a denominação dada em cada lugar.

O mais antigo desenho desse instrumento é dos exploradores Capelo e Ivens, que fizeram o desenho de um arco musical em tudo semelhante ao berimbau em 'De Benguela às terras de Iaca', Lisboa, 1881. O texto, porém, não traz nenhum comentário a respeito do instrumento.

Ladislau Batalha, no livro Angola, editado no ano de 1889, em Lisboa fez a seguinte descrição do berimbau: “O humbo é o tipo dos instrumentos de corda. Consta geralmente de metade de uma cabaça, oca e bem seca. Furam-na no centro, em dois pontos próximos. À parte, fazem um arco como de flecha, com a competente corda. Amarram a extremidade do arco, com uma cordinha do mato, à cabaça, por via dos dois orifícios; então, encostando o instrumento à pele do peito que serve neste caso de caixa sonora, fazem vibrar a corda do arco, por meio de uma palhinha.”

A descrição não deixa dúvidas. Em que pese a ausência de detalhes mais específicos, o humbo é realmente nosso velho e conhecido berimbau. O mesmo Ladislau Batalha torna a referir-se a ele em Costumes Angolenses, de 1890, também publicado em Lisboa: “Um negralhão toca no seu humbo, espécie de guitarra de uma só corda a que o corpo nu do artista serve de caixa sonora.”

No mesmo ano de 1890, ainda em Lisboa, Henrique Augusto Dias de Carvalho, em sua Etnografia e História Tradicional dos Povos da Lunda, desenhou o mesmo instrumento, sozinho e com outros, incluindo a denominação rucumbo e a descrição seguinte: “O rucumbo, constituído de uma corda distendida em arco de madeira flexível, que tem numa das extremidades uma pequena cabaça a servir de caixa de ressonância; o arco fica entalado entre o corpo e o braço esquerdo, indo a mão correspondente segurar nele a certa altura, e os sons são obtidos com a mão direita, por intermédio de uma pequena varinha que tange a corda em diferentes alturas.”

O major Dias de Carvalho afirma ainda que “os lundas chamam-lhe violôm. Tocam-no quando passeiam e também quando estão deitados nas cubatas”. Diz ainda que o instrumento era “muito cômodo e portátil”.
Do Álbum Etnográfico de José Redinha, Luanda, s.d., consta um desenho de instrumento com a descrição a seguir: “Um monocórdio, lucungo, com caixa de ressonância, constituída por um copo de cabaça.”

Outra informação da existência africana do berimbau decorre de Albano de Neves e Souza, consultado por Luis da Câmara Cascudo, e que afirmou: “(...) um instrumento aí chamado de Berimbau e que nós chamamos hungu ou m’bolumbumba, conforme os lugares e que é tipicamente pastoril, instrumento esse que segue os povos pastoris até a Swazilândia, na costa oriental da África.”

No Brasil, um dos primeiros a fazer o registro da presença do berimbau foi Henry Koster, que descreveu o instrumento da seguinte forma: “(...) um grande arco com uma corda tendo uma meia quenga de coco no meio, ou uma pequena cabaça amarrada. Colocam-na contra o abdome e tocam a corda com o dedo ou com um pedacinho de pau.”
Jean Baptiste Debret, em Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, deixou-nos o desenho de um tocador de berimbau e uma descrição do instrumento, ao qual denomina urucungo: “E finalmente o urucungo, aqui representado. Este instrumento se compõe da metade de uma cabaça aderente a um arco formado por uma varinha curva com um fio de latão, sobre o qual se bate ligeiramente. Pode-se ao mesmo tempo estudar o instinto musical do tocador que apoia a mão sobre a frente descoberta da cabaça, a fim de obter pela vibração um som mais grave e harmonioso. Este efeito, quando feliz, só pode ser comparado ao som de uma corda e tímpano, pois é obtido batendo-se ligeiramente sobre a corda com uma pequena vareta que se segura entre o indicador e o dedo médio da mão direita.”

Outra descrição acompanha a gravura que reproduz um instrumento em tudo idêntico ao berimbau, colocado à mão de um vendedor e que nos foi deixada por Johhan Emmanuel Pohl, em Viagem no Interior do Brasil, de 1832, onde afirma: “Os negros gostam muito de música. Consta da gritaria monótona de um entoador, como estribilho e seguido por todo o coro de maneira igualmente monótona, ou, quando instrumental, do sonido de uma corda retesada num pequeno arco, num simples instrumento que descansa sobre uma cabaça esvaziada que dá, no máximo, três tons...”

Estas são as descrições e referências mais antigas ao berimbau conhecidas até o momento. Apesar de ligeiras discordâncias quanto à denominação e detalhes menores, de há muito o berimbau se faz presente ao lado do negro, garantindo-lhe a presença da música no momento desejado.


A construção do berimbau


O primeiro passo para o fabrico do berimbau é a obtenção de uma madeira flexível e resistente, que suporte arqueamento e pressão sem ceder demasiado. Escolhe-se uma vara sem muitos nós ou grandes curvas, que bem pode ser "biriba" (a preferida pela maioria dos capoeiras ) ou guatambú (mais facilmente encontrada). O guatambú se apresenta como a madeira indicada - ao lado da taipoca e outras espécies nativas - na construção do berimbau, por se tornarem suas varas muito leves, após secas, sendo comuns longas hastes muito regulares, apresentando grossura mais ou menos uniforme de uma extremidade a outra. Tirada a vara, que não seja demasiado grossa ou muito fina. O tamanho ideal é de aproximadamente 1.20 m.

Quando a madeira ainda está verde, caso não seja perfeitamente reta, basta passá-la sobre o calor do fogo, ainda com casca, para que sejam corrigidas eventuais curvas, dando-lhe a forma reta necessária. A casca do guatambú sai com facilidade, passando uma faca de lâmina afiada de ponta a ponta da vara, removendo longas tiras.
Passamos, a seguir, à confecção propriamente dita do berimbau. Esculpe-se uma pequena ponta na extremidade mais grossa da vara, que irá servir como conexão para se ajustar o arame do berimbau. A outra ponta deve ser bem acertada, pois irá receber um pequeno pedaço de sola de couro, que impedirá o arame de rachar a madeira.

O arame - que cumprirá o papel de corda do instrumento - é um fio de aço com um comprimento maior que a vara cerca de 20 cm e recebe em sua extremidade um laço de diâmetro adequado para se encaixar na ponta esculpida na madeira - que será o pé do instrumento - enquanto que no outro extremo recebe uma laçada menor, onde será amarrado o cordão que irá prendê-lo à madeira. Após esta primeira fase, o berimbau é vergado - ou "armado" para o ajuste da corda, formando o arco - com o emprego de um pé flexionando a madeira, enquanto uma das mãos apoia a extremidade superior da vara e a outra amarra o arame. Pronto o berimbau, já se tornou comum acrescentar-lhe discreta pintura, manchas de fogo e verniz, com a finalidade de embelezá-lo. Esta pintura às vezes possui um significado especial para o tocador, quando é este que confecciona o instrumento.

O próximo passo é a elaboração da caixa de ressonância, indispensável ao arco do berimbau. Para isto, utiliza-se uma cabaça que serve à perfeição ao nosso propósito. De preferência, que a cabaça se encontre já bem seca e não tenha sido colhida madura. Que a casca não seja demasiado grossa ou muito fina. O tamanho ideal terá um circunferência de aproximadamente 18 cm - quando se pretenda fazer um berimbau gunga, de timbre grave; caso se pretenda um berimbau viola, de timbre agudo, o tamanho deverá ser menor, com cerca de 11 cm.

Escolhida a cabaça, primeiramente façamos uma abertura tal que seja possível a saída de um som claro. Esta abertura será proporcional ao diâmetro máximo alcançado pela cabaça e feita na extremidade oposta à que se prende a haste, quando ainda no pé. Concluída a abertura - feita com uma serra fina - se a cabaça for demasiado grossa é conveniente que coloquemos água em seu interior e deixar por 48h, para depois raspá-lo até que a casca se torne da espessura desejada. Isso para que a ressonância obtida seja de boa qualidade. Depois, com o emprego de uma lixa, daremos à abertura da cabaça o acabamento necessário.

Terminado este preparo, a cabaça receberá no seu fundo dois furos paralelos em uma distância de aproximadamente 3 cm um do outro, por onde irá passar o cordão que a manterá fixa ao arco. O tamanho deste cordão irá depender do grau de curvatura obtido pelo arco, para que a cabaça fique presa de forma tal que aperte o arame e proporcione ao tocador a necessária firmeza para segurar o instrumento, apoiando-o sobre o dedo mínimo através deste cordão. Servirá ainda para afinar o instrumento, conforme a pressão exercida sobre a corda.

Na escolha da vareta a ser utilizada na percussão do arame são preferidas pequenas varas tiradas de pedaços de bambu, da grossura aproximada de um lápis e comprimento de mais ou menos 30 cm. Outra espécie de vareta muito apreciada é de bambu fino, do tipo das varas de pesca, obedecendo às dimensões citadas. A vareta será usada segura entre os dedos indicador e polegar, apoiada sobre o dedo médio de uma mão, enquanto a outra sustenta o instrumento e prende o dobrão. A percussão da corda se dá numa altura pouco superior ao ponto onde o dobrão pressiona o arame. As batidas devem ser firmes.

O dobrão - denominação popular das antigas moedas de 40 réis - é empregado com a finalidade de pressionar o arame quando se pretende obter uma nota aguda, já que o berimbau emite dois tons básicos (grave e agudo) e outros efeitos. É por seu intermédio que o tocador estica ainda mais a corda do instrumento, provocando em conseqüência a modificação do tom grave para o agudo ou um chiado característico. Muitos capoeiras preferem o uso de pedras lisas e resistentes no lugar das moedas de cobre, por considerarem o som obtido mais agradável, além da escolha das pedras possibilitar o emprego daquela de formato mais conveniente para o manuseio do tocador.


O caxixi

Na execução do berimbau, um outro instrumento constitui acessório indispensável: o caxixi, que é usado como chocalho.
Caxixi é o nome que se dá ao pequeno cesto de alças, feito com tiras de junco trançadas, contendo em seu interior contas de lágrimas, pequenas conchas marinhas ou búzios. O seu fundo é feito de pedaços de cabaça.
Além do seu emprego como complemento ao berimbau, Edison Carneiro nos informa em Candomblés da Bahia acerca de outros usos do caxixi.

“Caxixi, s.m. Saquinho de palha trançada que contém sementes de bananeira-do-mato, usado pelos pais dos candomblés de Angola para acompanhar certos cânticos, especialmente a ingorôssi. (...) Ingorôssi, s.m. Reza da nação Angola. O tata, agitando um caxixi, fica no meio das filhas, que sentadas em esteiras, batem com a mão espalmada sobre a boca, respondendo ao solo. (...) O chefe do candomblé acrescenta à orquestra, quando Nagô ou Jeje, o som do adjá, uma ou duas campânulas compridas que, sacudidas ao movimento da filha, ajudam a manifestação do orixá, e quando Angola ou Congo, o som do caxixi, um saquinho de palha trançada cheio de sementes. (...) Os candomblés de Angola e do Congo saúdam conjuntamente os inkices com um cantochão lúgubre, o ingorôssi, que se compõe de mais de trinta cantigas diferentes. As muzenzas se sentam em esteiras, em volta do tata, que, com um caxixi na mão, faz o solo, respondido por um coro de gritos entrecortados por pequenas pancadas na boca.”

No acompanhamento do berimbau o caxixi é usado prendendo-se a sua alça entre os dedos anular e médio da mão que segura a vareta. Tem destaque especial na marcação rítmica dos toques.


A roda de Capoeira

"Chibata na mão/Capoeira no pé/pega esse negro que é de Nazaré.."

As cantigas estão presentes no jogo desde o momento em que se forma a roda. O canto inicial - em geral conduzido pelo mestre, ou capoeira mais antigo - pode constituir-se na apresentação da roda, do lugar onde é feito o jogo.
Quando um capoeira visita uma roda formada por grupo que não freqüente habitualmente, o canto de abertura pode ser seu, o que demonstrará deferência e homenagem ao visitante.

O toque do berimbau agrupa os capoeiras em círculo. A princípio, somente se ouve o som do gunga; em seguida entram no ritmo os demais berimbaus. O viola e o violinha, com seu timbre ainda mais agudo. Agora é a vez do atabaque, com sua marcação forte, pesada. Um a um se apresentam para a roda o agogô, reco-reco, pandeiro, ganzá.
Os capoeiras acompanham com palmas o som dos instrumentos. Todos permanecem de pé. O toque inicial é Angola, e o canto - um solo: a ladainha - pode ser costumeiro àquela roda ou improvisado, como esta cantiga de autoria do mestre Canjiquinha:


'Meu Deus o que eu faço/para viver nesse mundo/se ando limpo, sou malandro/se ando sujo, sou imundo/oh que mundo véio grande/oh que mundo enganadô/se eu não brigo, sou covarde/se mato sou assassino/se eu não falo, sou calado/se falo, sou faladô/eu digo dessa maneira/meu mestre que me ensinô...'

Durante a ladainha não há jogo. Os capoeiras ouvem atentamente o canto. Neste momento o mestre-capoeira transmite uma mensagem à roda ou a determinado capoeira. É na cantiga que o capoeira expressa sua vivência no jogo.


'Quando eu tinha dinheiro/levei a vida a vadiar/
comi na mesa de ioiô/deitei na cama de iaiá/
o dinheiro acabou/me mandaram trabalhar...


Às vezes a ladainha traz à lembrança fatos passados, relembrados como aviso aos jovens, e assim o capoeira guarda até hoje a história do jogo e dos jogadores, instrumento de preservação da memória e transmissão das tradições de cada época e da sua arte.
‘Tava lá em casa/sem pensar, nem ‘maginar/quando ouvi bater na porta/mandaram me chamar/para ajudar a vencer/a guerra do Paraguai/eu que nunca fui de luta/nem pretendia lutar/botei a arma na mão/era tempo de brigar/era hora de lutar...'

Pode acontecer ainda de estar mesclada à alegria da brincadeira a tristeza pela ausência do capoeira que já morreu e o canto busca exprimir estes sentimentos.


'Adeus Bahia, zum, zum, zum/Cordão de Ouro
eu vou partir/porque mataram o meu Besouro...'


Os que ouvem procuram estar atentos ao conteúdo do canto, que pode conter uma advertência ou observação, um exemplo prático, uma lição para a vida.


'Mataram o capoeira/dentro da delegacia
delegado me chamou/p'ra prestar depoimento
daquilo que eu não sabia...'


Ao terminar a ladainha o mestre inicia um refrão, que é o sinal para a entrada do coro, acompanhando o canto.


'Iê, viva meu Deus/viva meu mestre/galo cantou/é hora, é hora/da volta ao mundo/que o mundo deu/que o mundo dá/camará'


Antes de iniciar o jogo, entrando na roda, os capoeiras executam um movimento de reverência, de saudação à Capoeira, ao berimbau, à roda, de respeito aos camaradas presentes. É uma demonstração de obediência ao jogo e às suas regras.

Os capoeiras firmam o corpo sobre as mãos apoiadas ao solo, braços flexionados - um sob o corpo, o outro em posição paralela. A perna que corresponde ao braço utilizado em apoio permanece acima do solo, flexionada; a outra se coloca em posição ainda mais alta, estirada.
Deste modo, em uma demonstração de habilidade, domínio do corpo e equilíbrio, os capoeiras anunciam sua disposição dentro da roda: a brincadeira, a disputa baseada no respeito aos fundamentos da arte.

Feita a saudação, os capoeiras se cumprimentam e entram na roda. À medida em que o jogo se desenvolve, o canto acompanha as situações que acontecem na roda, quando não as provoca, como ocorre quando um jogador procura demonstrar sua superioridade ao outro.


'Pega esse negro/derruba no chão
esse negro é valente/esse negro é o cão..'.


Quando há intenção de provocar alguém, da assistência ou dentro da roda, o capoeira que conduz o canto pode entoar:


E é tu que é moleque/moleque é tu/mas é tu que é moleque/moleque é tu/moleque te pego/te jogo no chão/castiga o moleque/conforme a razão...


O canto pode servir para brincar com uma mulher que entra na roda:


Se essa mulher fosse minha/eu ensinava a viver
dava mamão com farinha/de noite e de dia
p’ra ela aprender...


A brincadeira do canto pode envolver uma advertência velada aos jogadores, se um deles é atingido ou provocado de forma perigosa. Noutras vezes a cantiga também narra acontecimentos ocorridos dentro do jogo, de significação própria:


Siri botou/gameleira no chão
botou, botou/gameleira no chão...


Pode ser que a música sirva de consolo a um capoeira que não se dê bem no jogo, em linguagem peculiar:


A canoa virou/marinheiro
no fundo do mar/tem dinheiro...


É comum ainda o canto em que há referência a determinado orixá, da devoção do jogador; outros mencionam o nome de um capoeira, em sua homenagem.
As letras trazem uma característica comum: a linguagem, em geral, é figurada, sendo sua compreensão restrita aos capoeiras. Com isto, para os que ignoram sua função, são apenas cantigas...

Os capoeiras prosseguem no jogo, nos seus gestos de enorme beleza. Sem se tocarem, na comunicação dos movimentos imprevistos e súbitos. O bom capoeira jamais explicita seus golpes. Age sorrateiramente e só atacando quando o adversário está vulnerável. Parece milagre que as pernas percorram o mesmo espaço sem se chocarem. Ninguém é ferido, não há agressão. A luta existe no esforço de suplantar o adversário pela habilidade na execução do jogo.
A roda pode durar horas, prendendo os espectadores na agilidade e alegria dos cantos e movimentos, na sucessão de cenas emocionantes, onde um minuto de desatenção pode levar um dos capoeiras ao solo. Mas não se deixem enganar...a dança pode ser um jogo camuflando a luta e a brincadeira pode ter um final inesperado:


São Salvador, Bahia/A tarde morria devagar
E berimbau se ouvia/ Gente na rua a passar
Alguém no desejo da briga/Fazia cantiga de provocar São Salvador, Bahia/ Um homem passando escutou/ Isso é comigo! e falou:/Se quer jogar vamos lá/
Eu ia pra lá mas não vou/E dizendo se ajoelhou/
Dois homens fizeram oração/Começaram jogando no chão/ Jogaram Angola, Santa Maria/ São Bento Pequeno/ Cavalaria/ E o povo assistia/ tremendo/Capoeira pra matar/ Faca de ponta/ Rabo de arraia Na dança da morte do lugar/ São Salvador, Bahia
Quando a polícia chegou/ Um corpo no chão havia
Em volta o silêncio dizendo/ Seu moço, essa briga acabou/ São Salvador, Bahia/ Bahia de São Salvador”


O jogo da Capoeira

“Capoeira é luta de bailarinos. É dança de gladiadores. É duelo de camaradas. É jogo, é bailado, é disputa - simbiose perfeita de força e ritmo, poesia e agilidade. Única em que os movimentos são comandados pela música e pelo canto. A submissão da força ao ritmo. Da violência à melodia. A sublimação dos antagonismos.
Na Capoeira, os contendores não são adversários, são ‘camaradas’. Não lutam, fingem lutar. Procuram - genialmente - dar a visão artística de um combate. Acima do espírito de competição, há neles um sentido de beleza. O capoeira é um artista e um atleta, um jogador e um poeta.”
Dias Gomes

Para compreender esse jogo é preciso primeiramente entender o propósito dos capoeiras ao entrarem na roda. A leitura gestual do jogo de Capoeira desvenda-o como um modo particular de fazer política: as estratégias baseada sobretudo no enfrentamento indireto.
A luta-dança-jogo expressa o modo como os negros inverteram, a seu favor, a força visível e explícita dos poderosos, fugindo do enfrentamento direto a partir de regras que não foram definidas por eles.
A aparente oposição entre a rebeldia passiva e a rebeldia ativa determina a dubiedade do jogo de Capoeira: os seus movimentos corporais indicam uma negociação, mais do que rebelião. Durante o confronto os corpos negociam e a ginga significa a possibilidade da barganha, atuando no sentido de moderar o conflito. Ao menor sinal de distração do oponente, quando “as chances de falhar são mínimas” (como ensinava mestre Pastinha), explode o contra-ataque, como um relâmpago, deflagrando-se então o conflito.
Esse é um jogo de considerável complexidade - apesar da aparência simples -, onde há objetividade em todos os gestos e uma filosofia intrínseca determinando o sentido da movimentação. A disputa às vezes transcorre de forma tão sutil que muitos não se apercebem da sua existência, ou não conseguem entendê-la. O capoeira pretende suplantar o oponente: só que é dada ênfase especial à malícia na movimentação; a inteligência é privilegiada na execução dos golpes, em detrimento da aplicação de movimentos de força e potência. Predomina particularmente a astúcia nos contra-ataques irresistíveis.
Não há o objetivo de superar o adversário na base do vale-tudo. Os gestos são naturalmente estudados, permitindo a observação detida de um camarada pelo outro. Se um movimento é executado de forma irrefletida, seu autor não perde por esperar... De pronto está criada a oportunidade de uma sucessão de ataques e contra-ataques. Cada gesto é executado com muita atenção em todos os detalhes. A hora exata de empregá-lo é aquela que diminua as possibilidades de deixar uma brecha para a defesa. É imprescindível estar atento às reações do oponente, procurar iludi-lo, chamá-lo para a armadilha. Tudo de forma calculada, treinada, assimilada durante horas de exercício e prática.
Este é o princípio fundamental do jogo de Capoeira: nada de explosões de violência. Não se trata de uma briga, mas de um entretenimento. Deve prevalecer a aceitação das regras. Malícia, manha, astúcia, esperteza, são sinônimos do jogo. Não se pretende a demonstração ou exibição de nada que não seja a competência na disputa.
A movimentação do jogo acontece basicamente no chão. Isto não quer dizer que não podem ser executados movimentos altos; significa que o capoeira busca explorar as facilidades de locomoção pelo solo, fazendo uso de todos os recursos colocados ao seu dispor graças aos treinos, destinados a habilitar o praticante a gestos aparentemente inofensivos.
Se um capoeira interrompe um movimento já iniciado, por encontrar-se o adversário demasiado longe, é bem provável que o outro capoeira reaja de forma insólita: se aproximando do oponente aos saltos, como se fosse um símio, para desferir potente cabeçada. Pode ser ainda que o seu parceiro escapula do ataque correndo pelo solo, como se fosse um gato.
No jogo da Capoeira se desconfia de imediato do capoeira que afivela um sorriso fixo ao rosto, como se tudo não passasse de uma grande piada. Essa pode ser a forma encontrada para criar-se um clima descontraído, onde as defesas ficarão abertas, permitindo o ataque desconcertante.
Em razão do espírito bem-humorado e descontraído do jogo de gestos soltos e naturais, tanto faz se o capoeira é um garotão bem nutrido, cheio de músculos e espelhando vigor, ou se é um velho mestre. O que importa é a vivência, a experiência, a sabedoria, a prática: vale mais o conhecimento dos fundamentos da Capoeira.
As oportunidades de atingir o adversário não são procuradas com a ferocidade típica do combate entre irracionais. O capoeira sabe - simplesmente ao encostar o pé no adversário - que seus movimentos podem ser fatais. Então, para que atirar o adversário à distância, nocauteado, talvez inutilizado?
A essência da Capoeira é compreender o jogo como uma brincadeira entre amigos, que se respeitam e vêem na luta uma diversão amistosa. Nesse brinquedo vale mais um movimento desnorteante que um chute arrasador. É preciso malícia, manha, para suplantar o oponente. Saber esperar sem perder o espírito malandreado do jogo. Na hora certa surgirá a oportunidade; basta ter calma. A própria circularidade do jogo e de seus movimentos assegura ao capoeira que eventualmente se encontre em desvantagem, a oportunidade ideal para recuperar terreno.
O capoeira busca o jogo no chão por saber que ali os recursos físicos se igualam: a vantagem só poderá ser encontrada com muita da habilidade. Cada gesto envolve grande margem de risco, em razão de detalhes aparentemente insignificantes. Um movimento executado de forma que deixe parte do tronco ou da cabeça desprotegidos é de imediato aproveitado pelo contendor, que logo procura atacar a região desguarnecida. No momento seguinte o capoeira que levou vantagem se afasta sorridente - e quando ninguém estiver esperando, inicia o contra-ataque, tirando proveito de cada brecha na defesa do adversário. As iniciativas de ataque e defesa se sucedem, uma após a outra, exigindo total concentração dos jogadores
As oportunidades de superar o adversário não são forçadas. O clima de brincadeira entre companheiros não é quebrado por cenas de violência banal. A superioridade de um capoeira em relação a outro - ou mesmo o equilíbrio entre ambos - se manifesta tanto na oportunidade bem aproveitada para evidenciar esperteza, quanto no modo educado de reconhecer o momento de vacilação.
A tradição do jogo não admite que o capoeira em desvantagem busque a desforra ou o revide a qualquer custo. O capoeira sabe que se no passado o aspecto de brinquedo e diversão do jogo representava sobretudo uma estratégia política para ocultar o aspecto combativo, proeminente na capoeira da sociedade escravista, até hoje essa natureza dúplice (brincadeira e combate) está presente e contamina todos os elementos do sistema cultural da Capoeira.
As táticas dos capoeiras no jogo se baseiam no disfarce e na camuflagem dos verdadeiros objetivos. Exemplo disso é o berimbau: é um instrumento musical mas ao mesmo tempo pode ser uma arma: e fala-se em “armar” o berimbau para poder tocá-lo; montar o instrumento e afiná-lo, esticando-se o arame, prendendo-o a uma das extremidades da madeira envergada e depois ajustando a cabaça na outra extremidade - e em “desarmar” o berimbau, ao final de uma roda
No jogo da Capoeira há movimentos corporais cujos nomes nos remetem ao terreno das brincadeiras de infância (pião, balão) e há aqueles que supõem o combate (armada, arpôo de cabeça, asfixiante); e existe a chamada de Angola, que é um momento de ruptura na roda de capoeira, quando os dois jogadores se movimentam emparelhados para a frente e para trás até que um, subitamente, “desarma” a chamada, isto é, aplica um golpe qualquer sobre o adversário, reiniciando assim o jogo.
A combinação das ações do jogo (tais como golpes e floreios, avanços e recuos, ataques e esquivas) é dúbia como as próprias cantigas de Capoeira, que falam do jogo que “todos podem aprender, general até doutor”, ao mesmo tempo em que avisam do perigo da brincadeira: “Capoeira é ligeira, ela é brasileira, ela é de matar”.
Luta coletiva que incorpora séculos de resistência cultural, expressando corporalmente a linguagem de um povo que tradicionalmente resistiu à dominação, a Capoeira é fundamentalmente um jogo de contrapoder. Atuando nos vazios do adversário, aproveitando-se das lacunas provocadas pelos movimentos do próprio atacante, o importante para o capoeira é saber aproveitar o espaço vazio deixado pelo outro; só quando há oportunidade de êxito o capoeira parte para o embate direto. Percebe-se, então, que o mesmo corpo que aparentemente conformara-se, na ocasião oportuna insurge-se e ataca: inesperado, surpreendente, invertendo as regras do jogo que garantem a dominação; e aquele que já se acostumava ao aparente domínio da situação poderá, num instante, 'levar uma rasteira' e tornar-se, ele próprio, o dominado.
A surpresa é o elemento essencial nas estratégias de ação e reação da Capoeira, subvertendo e invertendo as regras do jogo da dominação: a principal intenção é sempre a de desequilibrar o outro, o qual, por sua vez, deve evitar cair. Afinal, cair é ficar em desvantagem: perder o domínio, o poder. Todos os movimentos da luta da Capoeira se encaixam nesse mesmo propósito: derrubar o outro. E para que isso ocorra, mais do que força física o capoeira deve ter fundamentalmente mandinga, malícia. Essa regra do jogo garante há séculos a unidade da Capoeira como prática de camaradas. Mesmo que um deles acabe derrubado, no chão. Afinal...
'Capoeira que é bom/ não cai
E se um dia ele cai/ cai bem...'
Vinícius de Moraes & Baden Powell, Berimbau

A preparação do capoeira

Quando se afirma ser a Capoeira luta, dança, arte, mandinga, fica implícita a diversidade das técnicas e processos existentes em sua aprendizagem. A mandinga, a astúcia e a agilidade se sobrepõem à força física, posto que o mais forte não é aquele fisicamente mais avantajado mas o mais malicioso, o mais mandingueiro.
A metodologia utilizada com este objetivo exige o emprego de instrumental adequado ao que se propõe: fazer um capoeira, para que este possa jogá-la, corporificá-la. Estabelecido este propósito, cabe ao mestre verificar individualmente a medida na qual o iniciante possui alguns requisitos básicos: ritmo, flexibilidade articular, elasticidade e força muscular, etc.
Esta observação ocorre quando o iniciante demonstra facilidade - ou não - na execução dos movimentos voltados à educação e condicionamento corporal.
O primeiro passo pode consistir em andar engatinhando, ou seja, o corpo apoiado nas mãos, braços e pernas mantidos flexionados, deslocando lentamente pelo solo.
Este treinamento possui finalidades essenciais para o jogador, sob os aspectos do desenvolvimento físico e de retomar-se a intimidade homem-terra. A locomoção executada desta forma exige força muscular diretamente proporcional ao corpo, perfeita coordenação entre os movimentos dos membros inferiores e superiores, mantidos sob intenso trabalho aeróbico.
Outra posição indispensável na preparação do capoeira é a denominada parada, ou parada de mãos, em que o corpo fica imóvel na postura vertical, com a cabeça para baixo, sustentado pelos braços estirados e as mãos abertas apoiadas ao solo.
Tendo o praticante desenvolvido suficiente força e equilíbrio, o exercício seguinte é andar com as mãos, usando a mesma posição vertical da parada, agora com as pernas flexionadas nos joelhos.
Os músculos do tronco e membros superiores, muito solicitados no jogo, são trabalhados especificamente com a prática de flexões dos braços, na postura descrita acima. Nestes exercícios o corpo permanece na vertical, cabeça para baixo. As pernas se encontram dobradas nos joelhos, a coluna vertebral com pequena arqueação, os pés auxiliando o equilíbrio, deslizando sobre uma superfície vertical (que pode ser uma parede), paralela ao corpo.


Os movimentos

“Olha a armada/meia lua e cabeçada
a rasteira e a queixada/ p’ra matar...”



A ginga

A ginga é a movimentação corporal essencial da capoeira. Passo de dança, passo de luta. Primeiro, para aprender-se o jogo. Cadência, movimentação oscilante, meneio do corpo, que desconcerta e engana, no jeito bamboleante, na dança de todo o corpo.
A sua característica principal é permitir a descontração,
a entrega aos ritmos da Capoeira. Funciona como armação para outros movimentos, permitindo deslocações constantes.
Como se fora uma dança - nem por isto obrigada a ter propósitos inofensivos - estabelece harmonia entre a Capoeira e a própria natureza do jogador: versátil, dinâmica, criativa.

Permitindo que a um só tempo o corpo lute aparentando dançar, a ginga camufla o potencial letal dos movimentos. É a ginga que predispõe o jogador a um jogo situado entre a brincadeira e o combate. A ginga não é unicamente uma base para o arremesso de golpes. E os movimentos da Capoeira não são somente golpes.
Existe um princípio de movimentação em equilíbrio, com as ações circulares típicas do jogo, que determina uma forma de ginga para cada jogador, atendendo a suas características e preferências. Afinal, não podemos esquecer as peculiaridades do jogo.
As padronizações - ou estilizações - levam à diminuição do espaço reservado à arte, aos improvisos de cada jogador, empobrecendo e descaracterizando o jogo, invertendo suas finalidades.

As tentativas de estabelecer-se um estilo único de ginga, geralmente são o resultado das iniciativas de alguns professores, que buscam ajustá-la às razões pelas quais praticam a Capoeira, sejam a promoção de shows ou o ensino de pugilato. Isso contraria o fundamental: a arte se presta à luta e pode ser vista como demonstração, mas sua natureza vai muito além destas meras possibilidades.
Qualquer comparação que implique em limitação, exclusão de componentes do seu conteúdo, provoca deturpações. Principalmente se referentes a modalidades pugilísticas, por relacionarem a Capoeira com manifestações inseridas em outro contexto cultural.
Não serão menos equivocadas comparações com outras danças, entendidas conforme os conceitos geralmente adotados para sua compreensão. Isso importaria em excluir a possibilidade do emprego ofensivo-defensivo, existente desde o surgimento do jogo, de forma implícita ou explícita.
É importante observar a ginga, notando o intenso magnetismo a desprender-se do capoeira dançando com todo o corpo, balançando os braços, sorridente frente ao adversário que por força quer atingi-lo.

Os braços se posicionam sempre de forma tal que fica garantida proteção à cabeça, quando se faça necessário, para - na ocasião apropriada - prepararem um ataque. As pernas alternam passos que permitem a execução de outros movimentos. Na mobilidade dos quadris se encontra uma das causas da agilidade com que os capoeiras se esquivam ante ataques, sendo recurso auxiliar no arremesso de movimentos com os pés, mãos ou cabeça.
Além de incluir uma sucessão de posições de guarda do capoeira, a ginga possibilita o início e velocidade nos ataques e defesas. Esta premissa estabelece, portanto, a necessidade do pleno conhecimento da sua mecânica. À medida que o jogador se entrega ao ritmo de forma descontraída, deve personalizá-la, ajustando-a sempre conforme seu temperamento e intenções.

Ao gingar o capoeira se permite improvisos e inovações, considerando o essencial: defender um lado do corpo enquanto o outro se prepara (ou executa) um ataque. Deve ser considerada imprescindível a manutenção do equilíbrio do corpo. Nestas condições, o emprego de figurações e gestos destinados a desviar a atenção do adversário, camuflando o propósito de ataques e defesas, acontece de acordo com a criatividade de cada um. O desenvolvimento da maneira própria de gingar depende de imaginação e prática constante.
É importante o treinamento da ginga pelo capoeira defronte a um camarada, executando apenas gestos destinados a desviar a atenção do adversário, aplicando diversas formas de truques ao seu alcance, para enganar o oponente, assim como a execução intensiva individual.

Movimento de locomoção do capoeira na roda, permite aproximar-se ou afastar-se do oponente, armando ataques e executando uma defesa.

Negativa
Aqui o capoeira desce sobre uma perna, que flexionará sob o peso do corpo, ao abaixar-se. Com isto, temos o corpo sobre uma perna, apoiado no calcanhar, enquanto a ponta do pé (flexionada) firma a base no chão. A outra perna é lançada à frente, esticada, o calcanhar tocando o solo. O braço deste lado apoia a mão ao solo, garantindo ao capoeira três pontos de apoio e uma posição que permite locomoção rápida.
Geralmente os capoeiras aperfeiçoam a execução da negativa treinando a troca de negativas, que consiste em alternar sucessivamente os pontos de apoio do corpo, de um lado e de outro, em rápidos movimentos.

Resistência
É uma defesa onde o capoeira se abaixa sobre as pernas flexionadas, colocando o peso do corpo sobre uma perna. O braço correspondente a esta perna mantêm a mão apoiada no solo, enquanto o tronco é ligeiramente curvado, a outra mão à frente da cabeça.

Ao treinar a resistência o capoeira se prepara para outros movimentos, sendo comum conjugar sua execução com o aú.

Meia-lua de frente
Ao fazer este movimento o capoeira descreve uma meia-lua com uma perna estirada, arremessada com o pé passando à altura do adversário e completando um semicírculo, para então voltar com o pé ao ponto inicial, retornando à ginga.

Bênção
O capoeira ao aplicar a Bênção levanta a perna que se encontra atrás na ginga, puxa-a em direção a si e - num movimento rápido - empurra-a contra o peito do adversário, buscando atingi-lo com o calcanhar.

Esquiva
Neste movimento o capoeira se desloca sem recuar o corpo, porém evitando a trajetória de um gesto contrário, se abaixando lateralmente.
Cabeçada

Em uma posição semelhante à da esquiva, o capoeira projeta seu tronco para a frente, sobre uma perna flexionada servindo como base, buscando atingir o adversário com a cabeça.

Rasteira
Na execução da rasteira o capoeira cai sobre uma das pernas, que se flexiona sob o peso do corpo.
Se a perna flexionada for a esquerda, tendo por pontos de apoio o pé desta perna e as duas mãos sobre o solo, o capoeira traça um semicírculo à sua frente, com a perna direita, o pé desta perna passando rente ao solo, buscando varrer o adversário. O movimento prossegue até que se complete o círculo, quando o capoeira se levanta já defronte ao oponente.

Martelo baixo
O capoeira desce ao solo, apoiando-se às mãos, executando um giro sobre o pé da perna que se encontra à frente, arremessando a perna de trás, até voltar à posição inicial.

Chapéu de couro
Na execução do chapéu de couro, o capoeira principia uma rasteira e interrompe a certa altura, para voltar com a mesma perna em direção contrária à inicial, desferindo um movimento idêntico ao anterior.
Queixada
Aqui o capoeira se posiciona defronte ao adversário, dá um passo lateral e em seguida, numa torção do tronco, arremessa a perna da frente, desferindo um movimento semicircular à altura da cabeça do adversário.
O golpe prossegue até a descida da perna até o solo.
Armada
O capoeira executa um giro de todo o corpo, aparentemente dando as costas ao adversário, posicionando-se sobre a perna que se encontra à frente, arremessando a outra perna, em um movimento que completa o giro do corpo, tendo como objetivo a cabeça do oponente.

Meia-lua de compasso
Neste movimento o capoeira se abaixa até o solo, apoiando as duas mãos ao solo e desferindo um giro com a perna de trás, arremessando-a à altura do tronco do adversário. O giro é executado sobre a perna base, como se fosse um compasso. Durante todo o movimento a cabeça se encontra entre os braços, os olhos atentos ao adversário.

No treinamento básico, é útil a execução em seguida à resistência, exigindo um maior controle da meia-lua e mantendo o corpo bem próximo ao solo durante toda a movimentação.
Ao treinar contra-ataques à meia-lua, um movimento pouco convencional, porém de certa utilidade, é o de puxar a perna de apoio de quem arremessa o golpe, com a mão, provocando a interrupção e queda do capoeira.

Chapa lateral
Este movimento é executado de forma semelhante à Bênção. A perna é puxada pelo capoeira (joelho flexionado) e distendida em um gesto súbito, procurando atingir o oponente com a parte inferior do pé.

Chapa de costas
Neste movimento o capoeira se abaixa até o solo, numa posição próxima à da meia lua de compasso, quando então desfere um golpe idêntico à chapa lateral, agora contando com o apoio das duas mãos ao solo e se aproveitando do fato de estar de costas para o adversário.

Chapa-pé rodado
Ao executar este chute o capoeira faz um giro de todo o corpo sobre uma perna base que se encontra à frente, dando as costas ao adversário. Neste momento, aproveitando o impulso do movimento de rotação do corpo, desfere vigoroso chute na posição da chapa lateral, em direção ao tronco do adversário.
Tesoura de costas
Na tesoura o capoeira parte de um aú ou de posição idêntica àquela inicial da meia-lua de compasso. Em um rápido salto, deve buscar prender entre suas pernas as do adversário, mantendo a frente do corpo para o solo, apoiando-se sobre as mãos.

Em seguida, encaixado o movimento, um dos braços é levantado do solo para fazer um gesto no sentido de rotação do tronco, servindo o outro como base para o corpo ser girado de lado, tesourando a base de apoio do adversário e arremessando-o ao solo.

Ponte
Movimento usado como fuga de um ataque, onde o capoeira - saindo de uma posição igual à da resistência - executa uma curvatura do tronco e coluna, apoiando as mãos ao solo, para levantar-se com o apoio dos braços.
Coice
Como se percebe pelo nome, o coice é um movimento onde o capoeira se apoia sobre os braços e desfere um potente chute duplo.
As pernas são encolhidas e depois arremessadas contra o adversário.

Rabo de arraia
No rabo de arraia o capoeira se aproxima do adversário e se atira ao solo, apoiado às mãos, lançando um dos pés em direçãoao rosto do oponente, enquanto a outra perna dá equilíbrio ao movimento.
Vôo do morcego
Na execução deste movimento o capoeira pula em direção ao adversário, com as pernas e braços encolhidos. No ar, as pernas são distendidas e os pés empurrados com força contra o oponente. Ao cair no solo, o capoeira amortece a queda com as mãos.

Parafuso
O capoeira executa um giro em tudo semelhante ao da armada. Quando a perna começa a efetuar o semicírculo, o capoeira dá um salto e desfere um pontapé lateral com a outra perna, girando no ar, graças ao impulso obtido durante toda a movimentação.

Meia-lua solta
Na execução do giro, o calcanhar da perna que descreve a meia-lua procura passar à altura da cabeça do oponente.
Neste movimento o capoeira faz um giro de tronco, preparando-se para executar a meia-lua solta. Em seguida arremessa o corpo num giro sobre uma perna flexionada, no ar, como se fizesse uma meia-lua de compasso acima do chão.

Variações do Aú
Em geral os movimentos da Capoeira são executados pelo jogador de forma pessoal, cada um acrescentando características que os tornem mais adequados a um momento particular do jogo. O aú é um dos movimentos que já tem consagrado o uso da maior quantidade de variantes. Temos assim o aú aberto, o aú fechado, o aú com martelo, em que o capoeira na posição do aú desfere um pontapé no adversário, o aú com rolê, quando o capoeira conclui o movimento na posição de negativa, aú compasso, executado sobre uma das mãos, procurando cair com uma perna esticada atingindo o oponente com o calcanhar, aú com queda de rins e aú camaleão.


A Capoeira no século XX

Não é karatê e não é kung-fu
maculelê, maracatu...’

A Capoeira permaneceu na ilegalidade até os anos 30 e 40 deste século, quando foram abertas em Salvador, Bahia, as primeiras “academias” com licença oficial para o ensino da capoeira como uma prática esportiva.
Neste empreendimento destacaram-se dois mestres baianos negros e originários das camadas pobres da cidade, Bimba e Pastinha, considerados pelos capoeiras atuais como os “heróis culturais” desta luta.
Para viabilizar seu projeto regional e étnico, estabeleceram duas estratégias diferentes.

O criador da capoeira Regional Baiana, mestre Bimba, não viu nenhum inconveniente em “mestiçar” essa luta, incorporando à mesma movimentos de lutas ocidentais e orientais (tais como box, catch, savate, jiu-jitsu e luta greco-romana).
Por outro lado, o mestre Pastinha, outro nome famoso da capoeira baiana, contemporâneo de Bimba e igualmente empenhado na legitimação da prática do jogo, reagindo àquela “mestiçagem” da capoeira, afirmou a “pureza africana” da lute, difundindo o estilo da capoeira Angola e procurando distingui-lo da Regional.

Diferentemente do século XIX, quando a prática da Capoeira, tolerada como contravenção ou criminalizada, empurrava os negros pare fora da sociedade brasileira, com a capoeira esporte os negros foram absorvidos: estão do lado de dentro, “no jogo”.
Bimba e Pastinha serviram-se de táticas distintas, defendendo maneiras diferentes de inserção social. Suas escolas propuseram por intermédio da Capoeira, estratégias simbólicas e políticas diferenciadas que visavam, em última instancia, ampliar o espaço político dos negros na sociedade brasileira, indicando dois caminhos possíveis. De um lado foi organizado o estilo Regional, que embora incorpore elementos de lutas ocidentais, guarda elementos que reafirmam a identidade étnica negra nas músicas, nos toques do berimbau e nos próprios movimentos que, conforme depoimento de mestre Bimba, são provenientes também do batuque e do maculelê.

A Capoeira Regional coloca em contato sistemas de valores distintos e, portanto, construções corporais distintas (movimentos corporais de brancos e negros), operando uma mediação, criando um campo simbólico ambíguo e ambivalente.
Sob esse aspecto a Capoeira Regional oferece uma afirmação de identidade mais ampla que a da Capoeira Angola afirmando a presença do negro enquanto parte da sociedade brasileira e, finalmente, enquanto símbolo da nação como um todo. A Regional admite por exemplo, a incorporação de elementos de outras formas de luta e novos conceitos quanto à maximização dos efeitos dos golpes; e permite a construção de uma nova presença negra no cenário nacional. Um preço foi pago por isso, no plano político: renunciar à afirmação de uma diferença na identidade negra.

A Capoeira que se quer pura, representada pelo estilo Angola é uma forma inequívoca de afirmação da identidade étnica: em sua própria designação os praticantes reafirmam sua origem e ao conservar a pureza da construção corporal negra, demarcam uma forma culturalmente distinta de jogar capoeira. Os defensores da Capoeira Angola consideram que existindo como resistência no momento de inclusão do negro na sociedade brasileira, ela só é revalorizada como reafirmação dessa mesma resistência em função da recuperação de uma identidade negra específica, no bojo da construção política de uma consciência negra. A construção dessa identidade é possível a partir de uma postura conservadora, que reinventa a tradição e só se mantém com a recuperação simultânea dos outros elementos que, no plano simbólico, organizam essa visão de mundo negra. Exemplo disso é a afirmação da origem africana da capoeira a partir do ritual de iniciação denominado dança da zebra ou N’Golo.

A oposição Capoeira Angola versus Capoeira Regional é matizada: o estilo Regional preserva as características ambíguas e mantém elementos que assinalam as fronteiras culturais e étnicas dos negros, mesmo com a incorporação de movimentos corporais de lutas brancas.
A prática da Capoeira Angola não é tão somente voltar ao passado, mas buscar na Capoeira uma visão do mundo que questionou, desde o princípio, diversos conceitos e padrões da cultura ocidental. Afinal, quando surgiu a Regional, já existia uma tradição consolidada na Capoeira, principalmente nas rodas de rua do Rio de Janeiro e da Bahia

Depoimentos obtidos junto aos velhos mestres de Capoeira da Bahia lembram personagens importantíssimos na história da luta no século XX, tais como Traíra, Cobrinha Verde, Onça Preta, Pivô, Nagé, Samuel Preto, Geraldo Chapeleiro, Daniel Noronha, Totonho de Maré, Juvenal, Canário Pardo, Aberrê, Livino, Bilusca, Cabelo Bom e outros. Inúmeras cantigas lembram os nomes e as proezas destes capoeiras, mantendo-os vivos na memória coletiva da Capoeira.
Destacou-se entre os que defendiam a escola tradicional o mestre Waldemar, do bairro da Liberdade, em Salvador, falecido em 1990. Desde 1940 conduzindo a roda de Capoeira que viria a ser o mais importante ponto de encontro dos capoeiras da capital bahiana, infelizmente mestre Waldemar não teve na velhice o reconhecimento que merecia. Não foram muitos os capoeiras mais jovens que tiveram a honra de conhecê-lo e ouvi-lo contar suas histórias. Lamentavelmente, morreu na pobreza, como os mestres Pastinha, Bimba e muitos outros.

Alguns mestres-capoeiras, antigos freqüentadores das famosas rodas de Capoeira tradicional de Salvador, apesar da idade avançada ainda dão sua contribuição ao desenvolvimento do jogo, ministrando cursos, palestras e mesmo ensinando regularmente em instituições no Brasil e em outros países.
Com a boa aceitação obtida pela escola de mestre Bimba, dividiu-se o universo da Capoeira em tendências divergentes: alguns se voltaram para a preservação das tradições e outros procuraram desenvolver um estilo mais direcionado para o combate, à feição das lutas marciais. Conforme ensinam os velhos mestres da Capoeira baiana, a expressão 'Capoeira Angola' ou 'Capoeira de Angola' somente surgiu após a criação da 'Regional', com o objetivo de estabelecer-se uma designação diferente entre esta e a Capoeira tradicional, já amplamente difundida. Até então não se fazia necessária a diferenciação e o jogo se chamava simplesmente Capoeira.

Se o trabalho desenvolvido por mestre Bimba mudou os rumos da Capoeira, muitos capoeiras se preocuparam em mostrar que a Angola não precisaria sofrer modificações, pois já continha elementos para uma eficaz defesa pessoal. A cisão ficou mais intensa, levando a uma autêntica polarização, a partir da fundação, em 1941, do Centro Esportivo de Capoeira Angola, em Salvador, sob a liderança do mestre Pastinha, reconhecido como o mais importante representante dessa escola.

A ampla expansão da Regional, principalmente como uma modalidade de luta, contribuiu para difundir a falsa idéia de que a Angola não dispunha de recursos para o enfrentamento, afirmando-se ainda que as antigas rodas de Capoeira, anteriores a mestre Bimba, não apresentavam situações reais de com ate. Entretanto, os velhos mestres fazem questão de dizer que estes ocorriam de uma forma diferente da atual, em que os jogadores se valiam mais da agilidade e da malícia, da mandinga, do que da força propriamente dita.

No seu livro Capoeira Angola, mestre Pastinha afirma que "sem dúvida, a Capoeira Angola se assemelha a uma graciosa dança onde a ginga maliciosa mostra a extraordinária flexibilidade dos capoeiras. Mas, Capoeira Angola é, antes de tudo, luta e luta violenta".
Prática comum no cotidiano das primeiras décadas do século XX, a Capoeira não exigia de seus praticantes nenhuma indumentária especial. O capoeira entrava no jogo calçado com a roupa do dia-a-dia. Nas rodas mais tradicionais, aos domingos, alguns dos capoeiras mais destacados faziam questão de se apresentar trajando refinados ternos de linho branco, como era comum até meados desse século.

O ensino da antiga Capoeira Angola ocorria de forma espontânea. Os mais novos aprendiam com os mais experimentados, diretamente, com a participação na roda. O aprendizado informal nas ruas e praças das cidades brasileiras predominou até 1960.
Expressivo número de capoeiras se refere atualmente à Angola como uma das formas de jogo, não propriamente como um estilo metodizado de Capoeira.
Lembramos, como já foi dito neste livro, que a velocidade e outras características do jogo da Capoeira estão diretamente relacionados com o tipo de 'toque' executado pelo berimbau. Entre outros, existe aquele denominado toque de Angola, que tem a característica de ser lento e compassado. Jogar Angola consiste, na maioria dos casos, em jogar Capoeira ao som do toque de Angola.

A compreensão do autêntico significado da Capoeira Angola vem mudando com o enorme trabalho das escolas tradicionais, que realizam um sério e valioso trabalho de divulgação e difusão dos fundamentos dessa modalidade.
No meio da Capoeira, durante décadas os discípulos de mestre Bimba e de mestre Pastinha alimentaram divergências. A Angola, desvalorizada durante as décadas de 60 e 70, momento do auge da Regional - que procurava conquistar o mercado então aberto às chamadas artes marciais - seria, ao longo da década de 80 e desde o início dos anos 90, revalorizada como depositária da tradição, no bojo da valorização da negritude e do crescimento da consciência negra.

A grande parte das academias, escolas e associações de Capoeira dedicam algum tempo ao jogo de Angola quando realizam suas rodas, que nem sempre corresponde àquilo que os antigos capoeiristas denominavam Capoeira Angola. E o jogo acaba resumindo-se à constante utilização das mãos como apoio no chão e execução de movimentos de pouca eficiência combativa, golpes mais baixos e lentos, realizados visando maior efeito estético com a exploração do equilíbrio e da flexibilidade do capoeira.

Evidentemente, seria tarefa dificílima reproduzir detalhadamente antigas movimentações e rituais da Capoeira. Afinal, como qualquer manifestação dinâmica, o jogo tem sofrido modificações ao longo de sua história. O esforço dos capoeiras dedicados ao ensino da arte que viveram uma intensa preocupação de recuperar o saber ancestral da Capoeira, mediante o contato com os velhos mestres, demonstra uma saudável preocupação com a preservação das suas raízes históricas, recuperando informações junto aos antigos capoeiras, que vivenciaram inúmeras situações interessantes, acumulando experiência valiosa ao longo de muitos anos de prática e ensino.
Graças a essa proveitoso intercâmbio podem ser encontradas na maioria dos capoeiras algumas das mais relevantes características da Angola, como a continuidade do jogo, quando os jogadores procuram explorar ao máximo a movimentação evitando interrupções na dinâmica do jogo; as esquivas, fundamentais na Angola, em que o capoeira evita ao máximo o bloqueio dos movimentos do adversário, procurando trabalhar dentro dos golpes, aproveitando-se dos desequilíbrios e falhas na guarda do outro; a improvisação, típica dos jogadores de capoeira ambientados nas "rodas de rua" e que pela experiência diante de situações de enfrentamento real sabem que os golpes e outras técnicas treinadas no dia-a-dia são um ponto de partida para a luta, mas precisam ser moldadas rápida e criativamente à situação de momento. A maioria das escolas não adotam a denominação de Angola ou Regional para a Capoeira que ensinam. E entre as que se identificam como Regional, poucas demonstram relação direta com o trabalho de mestre Bimba: na imensa maioria, os mestres afirmam jogar e ensinar uma forma mista, conciliando elementos tradicionais com as inovações introduzidas por mestre Bimba.

Os fundamentos da luta tradicional ensinados às novas gerações pelos velhos mestres da Bahia, como Waldemar, Caiçara, Canjiquinha, João Grande, João Pequeno, Paulo dos Anjos, Ferreirinha e Curió, entre outros, contribuíram decisivamente para o avanço na organização dos grupos e na retomada das antigas tradições.

Nas últimas décadas do século XX a tendência constatada na grande maioria das escolas foi de que a Capoeira incorpore as características das duas escolas. Importante, portanto, que os capoeiras conheçam a sua história, praticando sua luta de forma consciente. Angola e Regional possuem valioso conteúdo histórico e não se excluem: completam-se

Indiscutivelmente, o jogo da Capoeira é uma das mais significativas contribuições dos africanos e seus descendentes para a formação da nossa identidade cultural, inserindo-se na nossa história e preservando a lembrança das lutas sociais que forjaram a cidadania brasileira. Promover o resgate das tradições da Capoeira significa recuperar a consciência da identidade brasileira. Divulgando essa belíssima linguagem corporal estamos expressando a voz de uma nacionalidade construída na luta de resistência à dominação cultural. Lutar pela recuperação da memória brasileira é lembrando dos heróis saídos do seio do povo. Não nos esqueçamos do exemplo recente de Pastinha, Bimba, Querido de Deus, Besouro e tantos dos nossos irmãos que corporificam a cultura brasileira.

A ação desses mestres permitiu a preservação da Capoeira enquanto luta e arte, jogo e dança, aspectos essenciais numa manifestação cultural cujo valor depende dessa complexa dubiedade. Vale ressaltar a importância do trabalho desenvolvido pelos mestres e capoeiras espalhados por todo o mundo, que têm desenvolvido esforços proveitosos pela continuidade dessa luta, única e original.
A sobrevivência da Capoeira estará assegurada pela ação dos inúmeros praticantes que compreendam a importância dessa forma exclusiva e magnífica de expressão corporal, cultivando a graça e leveza dos movimentos, as possibilidades técnicas e plásticas de traduzir fisicamente elasticidade, flexibilidade e controle. Tudo isso temperado com muita malícia. E o que é mais importante, sem esquecer a finalidade da luta: a liberdade - que resume o objetivo a ser alcançado e o caminho a percorrer.

Fortalecido pelas tradições ricas em caracteres e componentes, os negros construíram a unidade da sua resistência em torno dos seus valores, determinando assim as ações da sua resistência social e cultural. Mesmo assumindo uma língua que não era a deles, adotando uma forma de comunicação totalmente estranha aos seus costumes - a escrita -, o negro preservou no corpo a memória da sua identidade. Essa memória corporal constitui-se na fonte de saber, no banco de dados que dá suporte à memória dos usos, costumes e tradições. tem na Capoeira o mais importante discurso de liberdade e autonomia memorizado no corpo. E é a partir dessa significativa interferência não-verbal que os negros participaram da definição da nossa cultura: sentindo na pele a emergência dos problemas políticos e sociais, resgataram da sua memória corporal a luta de resistência da Capoeira.
O jogo da capoeira é um dos caminhos para a grande aventura da redescoberta: a construção da cidadania brasileira Por que não tentar?


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