quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Doação da Capitania da Ilha Terceira ao cavalheiro Jácome de Bruges, (...) Álvaro Martins Homem

Doação da capitania da ilha Terceira ao cavalheiro Jácome de Bruges, que faz seu assento na parte da Praia. Sucede-lhe na mesma parte Álvaro Martins Homem
Capítulo I
Sobre o tempo prefixo em que foi descoberta e investigada a ilha Terceira de Jesus Cristo, variam miseravelmente os autores, sendo uns da opinião fora o seu descobrimento em 1432, e outros que tivera lugar, depois das ilhas de Cabo Verde, que foi em 1446. O certo é que no ano de 1449 já ela estava descoberta: e a 2 de Março de 1450 foi doada pelo Grão Mestre da Ordem de Cristo, o Infante D. Henrique, ao cavalheiro Jácome de Bruges, flamengo de nação, e casado na corte com Sancha Rodrigues de Toar, para que a povoasse com gente que fosse da fé católica; e por isso mesmo houvesse os dízimos, de todos os dízimos que à Ordem de Cristo pertencessem, para sempre, e aqueles que de sua geração descendessem (1), exceptuando para logo esta doação da lei mental (Documento A).

No ano seguinte, 1451, saiu o doado Jácome de Bruges para a ilha Terceira, com dois navios carregados, à sua custa, de toda a casta de gados úteis ao serviço dos homens, e nela os lançou, com os demais que provavelmente o comendador de Almourol, Gonçalo Velho Cabral, deveria já ter lançado algum tempo antes, por se ocupar há vários anos, por mandado do Infante, naquele serviço. Ignora-se perfeitamente em que dia chegou, e onde foi o seu desembarque; e da mesma forma se perde na tenebrosa noite dos tempos em que dia, mês e ano aportou a segunda vez com os seus adjuntos e mais povoadores da ilha. Porém, não se pode duvidar que o lugar de Porta Alegre, hoje denominado Santa Ana a Velha, fosse a sua primeira habitação, bem próximo, ou talvez no mesmo ano de 1450, em que o capitão Bruges, atraído pelas comodidades que lhe oferecia o sítio da Praia, nele veio fazer assento, e lançou (2) os fundamentos da igreja de Santa Cruz (3).

Ali, portanto, foi o capitão donatário Jácome de Bruges colocar a sede do governo, ocupando-se na dada das terras e nas experiências de agricultura, que naquela parte da ilha lhe oferecia as maiores vantagens para o futuro. Ele mesmo tomou para si a grande campina que fica a nascente da referida vila sobre a serra, à qual chamou de S. Tiago; e repartiu alguma parte dela com o seu locotenente Diogo de Teive, o qual da ilha da Madeira trouxera para o substituir. Figurado amigo, que foi a causa da sua perdição, excitado pela cobiça das riquezas, que por si só arruina as cidades e devasta os mais florescentes impérios!

Falecendo no ano de 1460 o Infante D. Henrique, lhe sucedeu o Infante D. Fernando, seu sobrinho, por cuja autoridade parece que Álvaro Martins Homem, cavaleiro de sua casa, apareceu na ilha Terceira feito donatário de uma parte dela, que a seu arbítrio foi tomada em Angra. Pretendem alguns que já nesse tempo Jácome de Bruges houvesse desaparecido da ilha, por traças do referido Diogo de Teive (4), com intento de se levantar com a serra da Praia já arroteada, e onde ele tinha quinhão, como ficou dito; e que nunca o capitão Bruges contendera com Álvaro Martins a respeito da capitania, que lhe fora dada in solidum para ele e sua filha mais velha, em falta de varão, e que os debates que houveram foram com seu procurador, na sua ausência; outros são do parecer que ele contestara com Álvaro Martins, somente por não se dividir fielmente a ilha, tomando por fundamento e no rigor da letra, as próprias palavras da carta de Álvaro Martins, que se oferece no Documento B; e que por consequência reconhecera e confessara válido o título do seu rival; porém, isto não parece muito acertado. Sigamos o nosso propósito.

Passaram vários anos sem que houvessem novas algumas do capitão Jácome de Bruges; e não obstante as intimações que a Infanta D. Brites, que então governava na qualidade de curadora de seu filho D. Diogo, mandou por várias vezes fazer a sua mulher Sancha Rodrigues, para que ela lhe desse conta de seu marido ou vivo ou morto, jamais se obtiveram algumas; em tanto que valendo-se a Infanta de um mapa e pintura da ilha, que o já defunto D. Fernando mandara fazer, a dividiu em duas capitanias, dando uma ao referido Álvaro Martins Homem, e outra a João Vaz da Costa Corte Real, cavaleiro de sua casa, com permissão a este último de escolher o que melhor lhe conviesse; e porque ele preferiu a parte de Angra, onde já Álvaro Martins Homem havia feito umas boas casas e os moinhos, viu-se este obrigado a passar à capitania da Praia, e nela se estabeleceu com sua família, recebendo o valor das benfeitorias que deixara em Angra: o que tudo bem se depreende da mencionada doação (5), Documento B.

Estabelecido desta maneira na parte da Praia, Álvaro Martins Homem com sua mulher Inês Martins Cardosa e seus filhos (6), foram continuando a dada das terras aos que lhas pediam naquela extensa capitania, à qual concorriam de fora da ilha muitas pessoas a estabelecer-se. Refere o Doutor Gaspar Frutuoso, no Livro VI, capítulo VIII, que em tempo deste capitão faltara de Portugal embarcação para a Terceira mais de 9 anos; e que em toda ela se sentira muito esta falta, especialmente no vestir, que de comer já havia muito grande abundância na ilha.

Também se conta por um feito o mais singular daqueles tempos que, quando na baía da Praia deu fundo uma armada castelhana, desembarcando alguma gente com o intento de espoliarem os poucos moradores que por ali haviam, e andando na pilhagem, ao estrondo que fizeram as árvores onde subira um português para ver o que sucedia, se espantaram e fugiram os inimigos; sobre os quais dando os nossos com as próprias armas largadas por aqueles, os perseguiram e mataram, sem restar um só que levasse a nova; e que sendo esta vitória sabida em Angra, que já era vila, foi nela muito festejada (7). Seria este um feliz auspício do que em nosso tempo aconteceu naquela baía!!

Quer este assalto acontecesse antes de Álvaro Martins Homem se ter passado à Praia, quer depois, o que não se pode duvidar é que a Infanta D. Brites estava informada da necessidade de prover esta parte, que era a melhor e mais defensável, e porque os navios de Castela já começavam de fazer alguns danos nestas ilhas, determinou colocar na terra de Sancha Rodrigues a povoação, e a este fim, sendo em 6 de Setembro de 1482, foram à vila de Angra deputados pela parte da Praia, João de Ornelas Savedra, e seu parente Diogo Álvares da Câmara, requerer (8) a Duarte Paim dissesse ante o ouvidor Afonso do Amaral, onde queria se lhe fizesse outra tanta terra como a que lhe era assim tomada para fazer a povoação. E suposto que o mesmo Duarte Paim, casado então com Antónia Dias da Areia, filha do finado Jácome de Bruges, não quisesse anuir ao mandado da Infante, por dizer lhe pertencia a ilha toda, e a disputava contra os dois capitães; sempre se tomou o terreno, e nele se fez uma formosa povoação acastelada (9), à qual se ajuntou depois o título de vila, como abaixo veremos.

Em breve tempo, com o dinheiro que Álvaro Martins havia recebido de João Vaz Corte Real pelas casas e moinhos da ribeira daquele lugar, fez oito na Agualva, e três nas Quatro Ribeiras; e também se afirma dera princípio a todas as igrejas da sua capitania, sendo criadas logo paroquiais as de S. Roque dos Altares, a do Santo Espírito da Vila Nova, e a de Santa Cruz da Praia, com ordenado a seus vigários de 5$000, dos quais 2$000 de mantimento e 3$000 pelas missas das terças-feiras por alma do Infante, pai da Infanta D. Brites; e bem assim com mais dois moios de trigo e duas pipas de vinho, e um marco de prata pelas missas dos sábados, e por alma do Infante D. Henrique. As demais igrejas foram criadas em forma de capelanias.

Não faltaram ao capitão Álvaro Martins os pleitos sobre lhe ser reivindicada a capitania, que com a demais fora doada ao primeiro capitão Jácome de Bruges, para ele e para sua filha Antónia Dias, com quem se achava casado o referido Duarte Paim; ainda que em vida do mesmo Álvaro Martins e Duarte Paim se não decidiram, mas sim depois da sua morte. Não há notícia do dia, mês e ano em que faleceram o donatário e sua mulher Inês Martins Cardosa.
Notas
1. Veja-se a respectiva carta na "História Insulana" do Padre António Cordeiro, Livro 6, Capítulo 2; porém não está conforme o Documento A, que oferecemos.
2. Este facto foi atestado por uma inscrição em pedra de cantaria que o vigário António Joaquim Fagundes achou numa parede da igreja no ano de 1810, por ocasião de a reparar do terramoto de 26 de Janeiro de 1801, cujo traslado se acha no frontispício da mesma igreja.
3. Pelo artigo 5.º do foral do almoxarifado se determinou que na reparação das igrejas se gastasse da real fazenda até à quantia de 5$000; e que o povo corrigisse o que faltasse. Alguns têm dito que os donatários eram obrigados a fazer as igrejas paroquiais; mas esta notícia não é exacta, porque esta obrigação incumbia ao Grão Mestre da Ordem; e disto aparece vestígio no referido foral.
4. Diz-se que Diogo de Teive fingiu cartas vindas da Flandres, anunciando ter vagado uma grande casa em que J. de Bruges deveria suceder, e que este embarcando-se para Lisboa em certa caravela, não chegou lá. Outros atribuem aos seus adjuntos a sua morte, da qual se teriam achado vestígios na ilha. E pode ser que os boatos da sua morte por Diogo de Teive fossem motivados pelas desavenças que tiveram a respeito daquela propriedade; a certeza não se sabe.
5. Acha-se no 1º Livro de registo da Câmara, fl. 71, inserta em uma carta testemunhável do marquês de Castelo Rodrigo.
6. Conforme a doação que lhe foi feita em 17 de Fevereiro de 1441.
7. O mesmo Doutor Gaspar Frutuoso, referido pelo Padre Cordeiro.
8. Existe o traslado autêntico deste requerimento, passado no ano de 1630 pelo escrivão da Câmara, António Ferreira de Gusmão, e nele se lêem estas palavras. O Padre Mestre Fr. Diogo das Chagas o copiou no seu "Espelho Cristalino", em prova de que no referido ano de 1482 Angra era vila, e na Praia se tratava de levantar povoação defensável; e que, dita em papeis autênticos ser tratada neste tempo por vila, sem que ainda o fosse.
9. Consta de um livro dos acórdãos da Câmara, que esta vila foi acabada de amurar pelos anos de 1513; e que continha dos portões adentro 400 vizinhos, população muito maior comparativamente à de hoje, pois em 1844 haviam em toda a paróquia 662 fogos, e 2910 almas.
Fontes:
Francisco Ferreira Drummond. Memória Histórica da Capitania da Praia, in Memória Histórica do Horrível Terramoto de 15.VI.1841 que Assolou a Vila da Praia da Vitória, edição da Câmara Municipal da Praia da Vitória, Praia da Vitória, 1983 (reimpressão fac-similada da edição de 1846), 283 pp.A ortografia foi actualizada e a errata introduzida.

Sem comentários:

Enviar um comentário