quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Dos últimos donatários que teve a capitania da Praia. (...) A Batalha de 11 de Agosto de 1829

Dos últimos donatários que teve a capitania da Praia. Aclamação de El-Rei D. João IV e do que mais aconteceu até à extinção dos juizes de fora.A Batalha de 11 de Agosto de 1829.
Capítulo V
Na mesma armada castelhana que veio conquistar a ilha Terceira no ano de 1583, veio a carta de doação das duas capitanias da mesma ilha, reunidas na pessoa de D. Cristóvão de Moura, depois marquês de Castelo Rodrigo, e grande valido de el-rei D. Filipe; cuja doação lhe fora feita em 14 de Agosto de 1582 (1). Por sua morte passou a seu filho Manuel de Moura Corte-Real, marquês do mesmo título. No ano de 1642 foram confiscados todos os bens do marquês de Castelo Rodrigo, por haver ficado em Castela.

Foi então dada esta administração ao marquês de Aguiar, e por sua morte ao conde de Vimioso, seu filho, morto o qual reverteu para a Coroa no ano de 1655, de onde não mais saiu; e só a capitania da Praia, foi dada em vida de Brás de Ornelas, de juro e herdade (2), para ele e seus descendentes (3), e lhe passou a ele em cumprimento da compra que dela fizera seu pai Francisco de Ornelas da Câmara, em preço de vinte mil cruzados para as guerras da Restauração.

Morto Brás de Ornelas em 1722, por não ter filho legítimo, ainda a dita capitania foi dada no ano de 1715 a Luís António de Bastos Baherem por uma vida mais, em satisfação dos serviços de seu pai António de Bastos Baherem, do conselho de el-rei, e seu secretário. Acabou todavia esta doação com a criação do capitão general para as ilhas dos Açores.

Voltemos ao governo administrativo da Praia, porque dos seus capitães donatários bastará dizer que, desde o tempo que os Filipes se apossaram do Reino e desta ilha, nenhum socorro nem protecção houve mais para estes povos, já pela indiferença desses proprietários, já pela dureza do mesmo tirânico governo; chegando porém a hora da retribuição, os Praienses não se calaram. Digamos agora em breve narração o que fizeram.

Aclamado em Lisboa el-rei D. João IV, a 6 de Dezembro de 1640, e por todo o Reino, mandou à ilha Terceira Francisco de Ornelas da Câmara, capitão mor que era na vila da Praia, e filho de Francisco da Câmara Paim, de quem tenho falado, para que ele promovesse a sua aclamação na mesma ilha; e sem embargo que o castelão D. Álvaro de Viveiros, que então governava o Castelo de S. Filipe, empregou todos os meios e modos para que não se verificasse a dita aclamação, tudo foi inútil; antes esses obstáculos concorreram para o triunfo da causa pública. E Francisco de Ornelas, arrostando pelo meio perigos de sua vida e as dificuldades que sempre consigo trazem semelhantes empresas, chegando o Domingo de Ramos, 25 de Março de 1641, com a Câmara da dita vila da Praia, e todo o povo, aclamou solenemente a el-rei D. João IV, com socorro de alguns cabos de guerra, entre os quais muito se distinguiu o valoroso tenente António Cardoso Machado.

Não me demoro na descrição do cerco do Castelo de S. Filipe, que durou bastante espaço, em que muito se distinguiram os capitães da Praia, Melchior Machado de Lemos, Martim Mendes de Vasconcelos, e outros mais, porque larga e difusamente tratou de tudo o Padre Cordeiro na sua História Insulana, Livro 6, cap. 31 até 40, onde remeto os leitores; nem relato os serviços, e o conceito dos governadores desta guerra, o mencionado Francisco de Ornelas da Câmara e seu cunhado João de Bettencourt, porque nada mais posso acrescentar ao que a respeito deles anda impresso naquele e outros autores de primeira classe; restando-me o sentimento de não achar naquela vila registo algum, nem acórdão, onde esteja escrita a menor parte deste feito glorioso.

Durante o espaço de um século, nada se oferece de notável dentro desta capitania. A educação pública não fazia progressos em todos os séculos passados, nem ainda agora. Os Jesuítas eram os depositários das ciências; e uma única aula de gramática latina, confiada a um padre franciscano, era o muito que naquela vila se achava, sem que para a conservarem deixassem de haver sofrido debates e pleitos com aqueles monopolistas, que tudo queriam para si. Também no Convento da Graça, da mesma vila, por instituição do padre António Mendes de Vasconcelos, e seu irmão padre Tomás Mendes, se ensinava teologia moral; mas ambas estas aulas eram para estudantes que pretendessem o estado eclesiástico. No entretanto não acho que as primeiras letras tivessem mestre pago pelos cofres da fazenda. O cuidado dos infelizes expostos andava entregue ao segundo vereador da Câmara, que à custa das rendas do concelho os mandava criar em casas particulares, com a despesa de 500 reis mensais: Por esta quantia se poderá avaliar qual o cuidado das amas para tais filhinhos!!

A capitania da Praia regeu-se com uma câmara municipal, composta por um juiz ordinário, dois vereadores, um procurador do concelho e três mestres. Outro juiz, e o mais velho, que também era vereador, servia nos órfãos, com fiança abonada de 400:000 na forma da Ordenação do Reino, até ao ano de 1768, que alterando-se essencialmente a administração judiciária foi criado o primeiro juiz de fora para a mesma vila, na pessoa de Manuel Furtado de Mendonça, o qual por alguns actos arbitrários, e desuso em que estavam os Praienses de tal autoridade, foi suspenso a 19 de Outubro de 1770.

O segundo juiz de fora foi José Marques da Costa; tomou posse a 9 de Agosto de 1787. Fez boa justiça, e influi na Câmara para mandar fazer, como com efeito se fez, a roda dos expostos naquela vila. Sucedeu-lhe em 24 de Dezembro de 1796 António de Castro de Sousa, que por seus procedimentos arrebatados foi suspenso e emprazado em Angra no dia 23 de Dezembro de 1801. Então foi provido o doutor João Manuel da Câmara Berquó, mui recto ministro, mui exacto, e grande conhecedor das coisas do seu ofício. Os Praienses se honram muito de um tal julgador. No ano de 1819 tomou posse deste cargo Joaquim Firmino Leal Delgado. Exerceu com dignidade o seu ministério, e pela sua afabilidade ainda hoje a sua memória ali é grata; e suposto que teve ocasião de seguir opiniões políticas com ardor, inclinando-se à causa da liberdade, nem por isso alguém se queixou dele por excesso de jurisdição.

Mui diverso foi o seu imediato sucessor, o infeliz Serafim Girão Rodrigues de Almeida. Por suspeitas infundadas, e meditando sempre em projectos aéreos, persuadindo-se que se atentava contra a sua vida, criminou os vereadores seus colegas; e envolvendo no sumário outras muitas pessoas principais da Praia, os perseguiu: e tanto fez que, por sua incapacidade mental assaz comprovada, foi suspenso por ordem régia, e sendo conduzido à cadeia de Angra, e continuando-lhe o furor, amanheceu em certo dia pendurado pelo pescoço, dando este género de morte cruel, e atitude em que se achou, ocasião a vários discursos do povo, que o aclamou de santidade, e lhe atribuiu milagres por muito tempo.

Sucedeu-lhe imediatamente António Justiniano Pegado Brotéro, que por se envolver nos tumultos e aclamações de D. Miguel foi mal visto; e questionando também os vereadores, foi suspenso por ordem régia. Pouco tempo depois foi provido António José Machado, nobre mancebo, e tão honrado que servindo em 4 de Agosto de 1823, e acontecendo os tumultos do povo desta ilha, que procedeu à prisão arbitrária de muitos cidadãos, convidando-o o governo interino para que aceitasse a vara de corregedor, ele não o quis, preferindo antes retirar-se à sua pátria como particular. Exemplo tão singular, quanto na verdade era próprio de sua alma bem nascida, e animada com os verdadeiros princípios religiosos, sem os quais não há sólida virtude!

Depois dele, e já no ano de 1825, foi provido Pedro Jácome Calheiros de Meneses, algum tanto presumido de sua fidalguia; o que não obstante, conduzindo-se com gravidade; e suposto interveio nas aclamações do Infante D. Miguel, como foi executor das ordens de seu parente o general Tovar, não foi perseguidor, nem dele houveram queixas, quanto ao tempo em que serviu. Assim terminou a série dos juizes de fora da vila da Praia desta ilha Terceira; mas da maior parte deles ficaram tais escândalos e receios, que este povo teria hoje muita dificuldade a desvanecer-se de que, por algum pecado nefando, a cólera de Deus o castigava ainda., se por fatalidade lhe fosse continuada a série de tais juizes, como aconteceu em Israel com a multiplicidade das leis em castigo de seus crimes. Por esse procedimento violento e sedicioso, em que tais magistrados se fizeram como uma guarda e uma escolta de todos os seus vícios poderia alguém esperar o que a semelhante respeito disse o insigne Luís de Camões (4):

"Que grande aperto em gente, ainda que honrosa,Às vezes leis magnânimas quebranta."

Finalmente os acontecimentos políticos que tiveram lugar desde o ano de 1821 até 1828, em que nesta mesma ilha se aclamaram os direitos da Rainha Constitucional a Senhora D. Maria II, não ocupam as páginas desta pequena Memória; não só porque demandam uma relação mais circunstanciada, senão porque entraríamos em personalidades, para cujo contexto não me propus ainda aparar a pena. E assim o espaço de 7 anos que mediou, forma aqui uma lacuna perfeita.

Igualmente concluirei renunciando tratar circunstanciadamente dos serviços consideráveis que prestou a nobre vila da Praia, desde o momento que nela desembarcaram as primeiras forças do exército libertador, até o sempre memorável dia 11 de Agosto de 1829, porque além de estarem ainda tão avivados na memória de todos, demandarem uma especial menção, que reservo para outro lugar, não cabem nos estreitos limites a que me propus; sendo óbvio que o governo de Sua Majestade Fidelíssima os reconheceu de tanta importância, que os condecorou com armas e brasão assaz expressivos, como adiante no Documento L se manifesta: o que na verdade é mais do que suficiente elogio de seus habitantes, e motivo de esquecerem para sempre esses privilégios, que por muito menos causa obtiveram seus maiores, podendo gloriar-se com o Poeta, nestes versos:

"Cesse tudo o que a Musa antiga canta,Que outro valor mais alto se alevanta."

FIM


Notas
1. Em data de 14 de Agosto de 1582, fl. 70 do 1º L. do reg. da Câmara da Praia.
2. A 2 de Dezembro de 1665, fl. 240 do dito Lº.
3. Demorando-se em Lisboa houve de certa mulher, julgo que por nome D. Teresa, duas filhas, e um filho por nome Francisco José da Câmara, capitão mor e guerra; mas por ilegítimo não pôde herdar a capitania de seu pai, nem ainda foi senhor da grande capela por ele fundada, que foi julgada divisível por estimação, e só alienável por junto; e isto se concedeu em atenção da nobreza do instituidor, e considerável importância dos bens, os quais por inventário a que se procedeu em 1801 não ficaram em muito, suposto que a capela fora estabelecida e julgada subsistente em dez mil cruzados de renda anual. Faleceu o testador em Lisboa, no ano de 1772, com a dita disposição testamentária, que hoje se acha totalmente iludida, e os bens repartidos à vontade dos procuradores dos ausentes em Portugal, como herdeiros de Manuel José de Figueiredo.
4. Vid. Canto 8º, est. 7.
Fontes:
Francisco Ferreira Drummond. Memória Histórica da Capitania da Praia, in Memória Histórica do Horrível Terramoto de 15.VI.1841 que Assolou a Vila da Praia da Vitória, edição da Câmara Municipal da Praia da Vitória, Praia da Vitória, 1983 (reimpressão fac-similada da edição de 1846), 283 pp.A ortografia foi actualizada e a errata introduzida.

Sem comentários:

Enviar um comentário