quarta-feira, 18 de março de 2009

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Salão Nobre no final do séc. XIX

Os antepassados


Um casamento em meados do século, a 27 Julho de 1952


A mãe e o bébé... nascido em 1909!



A biblioteca do ínicio do século XX
A capela no ínicio do séc. XX

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Línguas Célticas

1. INTRODUÇÃO

As línguas célticas formam um ramo da família indo-européia, possuindo certos traços em comum, principalmente no âmbito da fonologia e do léxico. Tanto no terreno geográfico quanto no cronológico, essas línguas comportam duas divisões, geralmente conhecidas como o celta continental e o celta insular. DAUZAT (1940: 46) rotula, com bastante propriedade, as línguas dessa família como “línguas residuais.”

Celta continental é o nome genérico para as línguas faladas pelo povo conhecido dos escritores clássicos como Keltoi e Galatae. Durante um período de 1.000 anos (aproximadamente de 500 a. C. a 500 a. D.), os celtas ocuparam uma área que se estendia da Gália à Iberia, ao sul e à Galácia, ao leste. A maior evidência do celta continental consiste em antropônimos, nomes de tribos e topônimos registrados por escritores gregos e latinos. Somente na Gália e no norte da Itália encontram-se algumas inscrições, cujas interpretações são ainda duvidosas. Os celtas que atingiram a atual Península Ibérica ficaram conhecidos como celtiberos. Foram submetidos por Cartago e, depois, pelos romanos (século II a. C.). Além de topônimos, o parco conhecimento que se tem dessas línguas está confinado a alguns traços fonológicos e uma pequena parte do vocabulário.

O celta insular refere-se às línguas das Ilhas Britânicas, juntamente com o bretão (falado na Bretanha, França). Embora exista alguma evidência escassa das fontes clássicas - principalmente topônimos - e algumas inscrições nos alfabetos latino e ogham2 do final do século IV ao VIII a. D., a principal fonte de informação sobre os primeiros estágios dessas línguas são os manuscritos realizados a partir do século VII, em irlandês, e um pouco mais tarde em outras línguas britânicas.

As línguas insulares dividem-se em dois grupos - o irlandês e o britônico (ou bretão). O irlandês3 foi a única língua falada na Irlanda no século V, época em que se iniciou o conhecimento histórico daquela ilha. Os dois outros membros desse grupo, o escoto-gaélico e o manx, surgiram das colonizações irlandesas que começaram naquela mesma época. Houve também colônias de falantes do irlandês no País de Gales, porém nenhum vestígio desse idioma restou a não ser algumas inscrições.

O britônico, que parece ter coberto quase toda a Grã-Bretanha e a Ilha de Man, recebeu marcada influência romana no período da ocupação (43-410) e, a partir do século V, sofreu forte e desvantajosa concorrência do germânico. Inscrições e antropônimos remanescentes da Escócia mostram, de modo claro, que ali já se falou uma língua não indo-européia, geralmente conhecida como Pictish4 “picto”, e que foi mais tarde suplantada pelo britônico. Havia, sem dúvida, diferenças dialetais dentro da própria ilha, porém os dialetos existentes surgiram da fragmentação do britônico resultante da invasão da Ilha de Man e da região da atual Escócia pelos irlandeses e pelas invasões dos anglo-saxões que começaram pelo sul da atual Inglaterra e que finalmente alcançaram a Escócia. Como se sabe, a Escócia foi desde então dividida em dois compartimentos lingüísticos - o inglês (também conhecido como Scots) e o gaélico, atestado já no século V a. D., é ainda empregado no interior da Irlanda, no interior da Escócia e, muito precariamente, por alguns idosos na Ilha de Man. Um dialeto britônico, hoje conhecido como cúmbrio perdurou nas fronteiras ocidentais entre a Inglaterra e a Escócia até por volta do século X, mas nada se conhece a seu respeito. No atual País de Gales, o britônico sobreviveu como língua dominante até meados do século XIX; atualmente é conhecido como galês, ainda falado por pouco mais de um milhão de pessoas. Um outro foco do discurso britônico, o córnico, sobreviveu em Cornwall “Cornualha”, desaparecendo no final do século XIX. Foi dessa região que, nos séculos V e VI a. D., os emigrantes haviam trazido o Céltico mais uma vez para o continente europeu estabelecendo uma colônia ao noroeste da França, ainda conhecida como Bretanha.

2. DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO

2.1 O celta comum

As tentativas de reconstrução do celta comum (ou proto-celta) - a língua mãe que resultou nas diversas línguas do celta continental e do celta insular - têm sido pouco frutíferas. Embora o celta continental ofereça indícios em profusão da existência de um sistema fonológico bem desenvolvido, o mesmo não ocorre no que diz respeito à morfologia e à sintaxe. Nesse domínio, o velho irlandês, a mais arcaica das línguas insulares, é a que melhor apresenta subsídios para investigação. Os registros existentes apresentam um quadro de uma língua que guarda certas semelhanças com o latim e com o germânico comum; isto é, que ainda preserva uma parte considerável da estrutura da língua ancestral indo-européia e não perdeu as sílabas finais ou mediais. Seu sistema vocálico apresenta pouca diferença do sistema indo-europeu reconstruído por Meillet. As diferenças mais significativas são a substituição do *e Indo-europeu por *i (exemplo, gaulês rix e irlandês ri “rei”; cf. latim rex) e do *o por * a.

O sistema consonantal é também conservador, embora existam alguns traços marcantes, dentre os quais merece destaque a queda do *p (exemplo, indo-europeu *petër, irlandês athair “pai”; cf. latim pater5). Essa queda deve ter ocorrido num estágio bem antigo do celta comum; somente o topônimo Hercynia, preservado no grego, mostra que, em posição inicial, passou a h antes de desaparecer. Na maioria das línguas célticas conhecidas, um novo p surgiu por influência do *k endo-europeu. Daí gaulês pempe, galês pimpe “cinco” (cf. latim quinque). Esse fenômeno levou os lingüistas comparativistas a formularem a hipótese da existência de *kwenkwe no celta comum.

A morfologia dos substantivos e dos adjetivos não revela mudanças notáveis do indo-europeu. O verbo irlandês, entretanto, apresenta um arcaísmo surpreendente não encontrado em nenhuma outra língua indo-européia. Os pesquisadores demonstraram recentemente que as terminações conhecidas como primárias e secundárias do verbo indo-europeu, como na 3a pessoa do singular *-(e)t -(e)ti, ambas ocorriam no mesmo tempo verbal. As formas com -i eram usadas quando o verbo ocupava posição inicial absoluta; as outras formas eram usadas quando o verbo ocupava posição normal no final da frase. É o que se pode observar nas formas do velho irlandês beirith6 de *bereti) “ele carrega” e ni beir (de *beret) “ele não carrega”.

O problema da relação do celta comum com outras línguas indo-européias continua sem resposta. Durante algum tempo sustentava-se a existência de uma unidade ítalo-céltica. A presença de particularidades comuns às línguas célticas e itálicas, como por exemplo a correspondência q-p, os genitivos em -i dos temas em -o e a passiva em -r (cf. latim laud-or “sou louvado”), era o argumento dos que defendiam essa tese. Outro traço comum entre o céltico e o itálico que também não tem sido convincente é a formação do superlativo dos adjetivos (cf. latim -issimus; céltico -*samos, *-isamos).

O berço original dos celtas, conforme opinam a maioria dos lingüistas, foi o sudoeste da atual Alemanha, de onde se viram impelidos para a Gália, para a Espanha, para as ilhas britânicas, para o vale do Pó, até que, por fim, foram submetidos pelos romanos (século II a. C. - século I d. C.). Foi na Bretanha, no País de Gales e na Inglaterra que alguns aspectos da língua dos celtas melhor se conservaram. Pode-se inferir que os celtas haviam conseguido um padrão de organização social superior ao dos povos germânicos. Basta atentarmos para existência de palavras como Gótico reiki e andbahts (alemão moderno Reich e Amt) tomadas de empréstimo aos celtas *rïgion “reino, império” e *ambactos “oficial”. Para os gregos e para os romanos, por outro lado, os celtas eram de uma cultura inferior. As pouquíssimas palavras célticas encontradas no grego são as que se referem a instituições, como bardoi7 “poetas”. Do mesmo modo, os empréstimos do celta ao latim, os quais derivam principalmente do período anterior à expansão do poder romano, são também escassos, limitando-se a termos referentes a guerra, transporte e produtos agrícolas (ver 4.1).


2.2 Registros antigos do celta

O celta desapareceu muito rapidamente na Europa Oriental. A mais antiga evidência do celta insular, bem como do celta continental, consiste principalmente em nomes documentados por autores gregos e latinos. No caso da Irlanda, muitos dos topônimos registrados por Ptolomeu no século II d. C. ainda não foram identificados. A partir do século IV, as inscrições no alfabeto ogham encontradas na Irlanda se referem apenas a antropônimos. A partir do século V, nomes britônicos em inscrições latinas são registrados no País de Gales bem como nomes irlandeses são registrados em latim e em ogham nas áreas de assentamento irlandês. Esses registros, embora escassos, contribuem de certa forma para a identificação de estruturas similares entre o britônico, o irlandês e o gaulês. Daí, na Bretanha encontra-se o genitivo Catotigirni, que no antigo galês dá Cattegirn, e na Irlanda o genitivo Dovatuci, que no velho irlandês dá Dubthaich. Essa mudanças - a perda das sílabas finais e das vogais de ligação, o enfraquecimento das consoantes entre vogais, etc. - são muito semelhantes ao que estava acontecendo ao latim na França na mesma época (cf. avicellus > oiseau, acqua > eau). As explicações sobre as razões dessas profundas mudanças bem como a época em elas ocorreram ainda são insatisfatórias.


3. CARACTERÍSTICAS LINGÜÍSTICAS DAS LÍNGUAS CÉLTICAS INSULARES

As línguas célticas insulares, as únicas cujas formas são mais bem conhecidas, apresentam um considerável número de traços sem paralelo em outras línguas indo-européias. Alguns lingüistas têm argumentado que esses traços podem ter resultado da presença de um grande substrato não-céltico nas Ilhas Britânicas. Embora seja pouco provável que as invasões célticas daquelas ilhas tenham iniciado muito antes de 500 a. C. ou que os invasores tenham exterminados os habitantes lá existentes, essa possibilidade não pode ser rejeitada. Por outro lado, algumas particularidades outrora consideradas exóticas, como o verbo na posição inicial da frase, tem sido demonstrado de modo bem convincente tratar-se de um desenvolvimento orgânico do indo-europeu. Outras características, como a contagem em múltiplos de vinte, constituem puras inovações, porém este sistema é compartilhado pelo inglês (three score and ten) e pelo francês (quatre-vints).


3.1 Características fonológicas

O traço fonológico mais marcante do celta insular é uma dupla série de consoantes em que consoantes fortemente articuladas se distinguem de suas correspondentes fracas. As duas séries eram originalmente apenas variantes fonéticas, com as variantes fortes ocorrendo em posição inicial absoluta e em certos grupos consonantais e as variantes fracas em outras posições. Mais tarde, entretanto, as duas séries se tornaram independentes. Mudanças consideráveis têm ocorrido nas formas fonéticas dessas duas séries a partir do momento em que as línguas iniciaram a fase da escrita. No irlandês e no galês, no córnico e no bretão o contraste forte - fraco nas oclusivas sonoras foi substituído pelas oclusivas - fricativas (b-v). O irlandês possui o mesmo sistema para as oclusivas surdas (t - th); porém o galês, o córnico e o bretão possuem as sonoras (exemplo: surda t - sonora d). Essas mudanças, por si mesmas, não são muito diferentes do enfraquecimento de consoantes entre vogais que ocorre em outras línguas européias ocidentais (compare o galês pader “prece, oração”, do latim pater “pai”, com o português padre, do latim patre-); porém, no celta insular, elas ocorreram não apenas no interior da palavra mas também no interior do sintagma, daí o enfraquecimento da consoante inicial de uma palavra quando precedida de uma outra palavra terminada por vogal. Quando as sílabas finais desapareciam na evolução para as línguas modernas, essas variações permaneceram, estabelecendo-se um sistema de mudanças iniciais. Se, por exemplo, a forma nominativa do gaélico *sindos kattos koilos “o gato magro” for reconstruída, teremos in catt coel no velho irlandês após a queda das sílabas finais; porém o genitivo *sindi katti koili “do gato magro” dará in chaitt choil, com a mudança das consoantes iniciais. O mesmo tipo de mudança ocorreu num dos dialetos italianos: no toscano, as formas latinas porta, illa porta, tres portae dão, respectivamente, porta “porta”, la porta “a porta” e tre pporte “três portas”. Em ambos os casos, o enfraquecimento de consoantes evoluiu da palavra para o sintagma. Esse desenvolvimento comum, entretanto, não é garantia de que ele seja distintivamente céltico.


3.2 Características gramaticais

Outro traço do celta insular é a ausência de morfema marcador do infinitivo do verbo encontrado na maioria das línguas indo-européias, como por exemplo, inglês “to study”, “to write”; português “estudar”, “escrever”. Emprega-se, em seu lugar, um substantivo verbal, cuja raiz nem sempre é a mesma do verbo. Por ser um substantivo, pode ter como complemento um substantivo no caso genitivo, que, pelo menos nas línguas mais antigas da família, funciona ora como sujeito ora como objeto, dependendo do tipo do verbo. Desse modo, do velho irlandês téit in ben "a mulher vai" pode-se formar a frase nominal techt inna mná "a ida da mulher"; já da frase marbaid inna mnaí "ele mata a mulher" pode-se formar marbaid inna mná (lais) "a morte da mulher (por ele)." Dentre muitas outras funções do substantivo verbal está seu emprego, quando precedido da preposição apropriada, com o verbo substantivado para denotar uma noção aspectual progressiva. Desse modo, para a frase téit in ben existe uma paralela a-tá in ben oc techt "a mulher está a ir" (= a mulher está indo), e à marbaid in mnaí corresponde a-tá oc marbad inna mná "ele está matando a mulher." Eis mais um exemplo curioso: creud adhbhar na moicheirghe sin ort? No português esta frase corresponde a: "por que você se levantou tão cedo?" Literalmente significa "qual foi a causa desse levantar cedo por você?"


4. A INFLUÊNCIA CÉLTICA

A NAS LÍNGUAS EUROPÉIAS MODERNAS

No decorrer dos séculos, a influência céltica nas línguas européias modernas tem sido cumulativa e pode ser distribuída em três áreas.


4.1 Vocabulário geral: empréstimos

Lancea "arma de guerra". Cf. inglês e francês lance, alemão Lanze, provençal lansa, espanhol lanza, italiano lancia, português lança.

Carrus < *karron (*karros) "veículo de quatro rodas". Cf. inglês car, francês car (da antiga forma normanda char), alemão Karren "carroça" (diferente de Wagen), italiano, espanhol e português carro.

Carpentum < *carpentos "carro, veículo de carga; veículo de exército, entre os gauleses". Desse termo somente o derivado carpentariu-s "fabricante de carros" parece ter vingado em outras línguas. Cf. inglês carpenter, francês charpentier, provençal carpentier (donde o espanhol carpintero, o português carpinteiro e o italiano carpentiere).

Cervesia "cerveja". Cf. francês cervoise, espanhol cerveza, português cerveja. O alemão Bier, o inglês beer e o italiano birra derivam do velho alto alemão bior "bebida fermentada". Somente o inglês mantém os termos beer e ale para designar o mesmo produto; as línguas escandinavas somente ale, e as demais línguas germânicas somente beer.

Druid <*druwids “aquele que sabe com certeza”. Nome dos primitivos sacerdotes gauleses e bretões. Cf. francês druide, latim plural druidae, druides, grego druidai < gaulês druides (= irlandês draoi, genitivo plural druadh, gaélico draoi, draoidh, druidh) < velho celta *derwijes (donde galês dewydd-on) de *derwos (donde galês obsoleto derw “verdadeiro”, irlandês derb “certo”), donde o sentido etimológico “adivinho, vaticinador”. Há uma outra hipótese baseada em *dru “carvalho” (associada aos rituais druídicos com esta árvore). O velho inglês tinha dry “mágico” < velho irlandês drui. - Os druidas, que formavam uma classe sacerdotal, possuíam uma doutrina religiosa e filosófica: acreditavam na imortalidade da alma e em reencarnação. Atribuíam virtudes misteriosas a certas plantas. As suas atribuições judiciárias lhes permitam ter influência política, social e religiosa sobre as nações celtas (Gália, Bretanha e Irlanda).

São provavelmente de origem céltica as palavras dun “de cor escura” e ass “asno” (através do latim asinus), todas tomadas de empréstimo no período pré-anglo-saxão.

Quando os romanos finalmente conquistaram a Gália e impuseram sua língua, um certo número de palavras célticas relacionadas à vida rural penetraram no latim, algumas ainda se conservam em dialetos franceses como mouton “carneiro”, ruche “colmeia” e arpent “medida de terra”.

Do celta insular provieram, ao longo dos séculos, algumas dezenas de termos ligados principalmente a acidentes geográficos, muitos dos quais predominam somente no inglês. Dentre esses termos contam-se:

Do bretão

Dolmen < *taolvean, *tolven "dólmen", monumento druídico, pré-histórico, formado por uma grande pedra achatada, colocada sobre outras em posição vertical. Os mais famosos dólmens encontram-se em Cornwall.

Menhir < men hir (de mean "pedra" + hir "longa") "menir", monumento formado por um bloco de pedra cortado verticalmente.

Do gaélico

Banshee < bean sidhe "espírito feminino" (folclore).

Bog <*bhugh "terra úmida e esponjosa".

Brogue < brog "tipo de borzeguim rústico do couro cru (usado especialmente na Irlanda e Escócia).

Cairn
Clan < clann "clã", "tribo".

Colleen < cailin, diminutivo de caile, "menina".

Corrie < coire "sorvedouro, remoinho de água".

Crag <*krako "rochedo íngreme".

Crannog < crannog "antiga habitação lacustre".

Gallore < gu leóir "em abundância".

Glen < gleann "vale estreito, ravina".

Loch < loch8 "lago".

Plaid < plaide "manta ou capa de lã escocesa em xadrez".

Slogan < sluaghghairm "slogan", "lema”.

Strath < strath "vale largo".

Tor < tòrr "pico rochoso e pontudo".

Tory < *tóraighe "perseguidor"; a partir de 1689, nome de um grande partido político conservador da Grã- Bretanha.

Trousers < triubhas "calças".

Whiskey

Do galês

Coracle < curach "barquinho dos antigos bretões feito de vime ou madeira recoberta de couro ou oleado".

Cromlech < cromlech (de crom "curvado" + "lech "pedra") "elevação pré-histórica de grandes pedras brutas"

Cwn < cwm "vale escarpado".

Flannel < gwlanen "flanela".

Flummery < llymru "tipo de papa ou mingau de aveia".


4.2. Temas, estilos e nomes literários

Após a conquista da Grã-Bretanha pelos normandos no século XI, os bretões e os galeses usuários do latim, do francês e do inglês começaram a difundir temas históricos célticos nas cortes e nos mosteiros da Europa Ocidental. Um elemento chave dessa disseminação foi the Matter of Britain, cuja forma original francesa, Matière de Bretagne, indica a ligação com a Bretanha (região e ex-província da França que se estende entre o Canal da Mancha e a Baía de Biscaia) com a atual Grã-Bretanha. O mais importante desse material são as lendas do Rei Artur e seus cavaleiros cujos personagens possuem nomes célticos ora afrancesados ora anglicizados, como Arthur, Gareth, Gawain, Guinevere, Lancelot, Merlin e Morgan. Nesse ciclo literário podemos observar a fusão de estilos e temas cristãos, clássicos e germânicos presentes nas pseudo-histórias da Grã-Bretanha, nos romances de cavalaria e nas narrativas do Santo Graal. A literatura de inspiração céltica em língua inglesa tem continuado desde então. Evidências dessa continuidade encontram-se, por exemplo, no poema épico Ossian de MacPherson (1736-96), nos poemas e romances de Walter Scott (1771-1832), nos romances de James Joyce (1882-1941) e nos poemas de Dylan Thomas (1914-53).

Vale aqui ressaltar que, nas últimas décadas, a música de temática céltica tem marcado sua presença, através de nomes já de repercussão internacional, como Bill Douglas, Bill Whelan, Clannad, Enya, dentre muitos outros.


4.3 Topônimos e antropônimos

É, sem dúvida, na toponímia que a contribuição céltica mais se faz presente. O reino de Kent, por exemplo, deve seu nome à palavra céltica Canti ou Cantion, "borda", "aba"; já os dois antigos reinos de Deira e Bernica, na Northumbria, derivam suas designações de nomes tribais célticos. Outros distritos, especialmente os do oeste e do sudoeste, mantêm nos dias atuais os traços de suas antigas designações célticas: Devonshire contêm no primeiro elemento o nome tribal Dumnonii, Cornwall significa “galês da Cornualha”, e seu ex-condado Cumberland (atualmente parte de Cumbria) é a “terra dos Cymry ou Britônicos”. Ademais, num grande número de centros importantes no período Romano podem ser identificados elementos célticos corporificados em seus nomes. O próprio topônimo London9 “Londres”, capital da Inglaterra e do Reino Unido, embora a origem da palavra seja um tanto incerta, muito provavelmente remonta a uma designação céltica. Se observarmos num mapa da Inglaterra ou mesmo dos Estados Unidos nomes em que aparecem os elementos win-: Winchester, salis-: Salisbury, glou-: Gloucester, wor-: Worcester e lich- ou litch-: Lichfield podemos assegurar tratar-se de origem céltica.

É, porém, nos nomes de rios, montes e lugares próximos a ambientes naturais que sobrevivem o maior número de topônimos de origem céltica. São nomes de rios de origem céltica: Thames “Tâmisa”, Avon, Exe, Esk, Usk, Don, Severn, e Wye. Palavras célticas que significam “morro ou colina” são encontrados em topônimos como bar “topo, cume”: Barr; bre “colina”: Bredon, Bryn Mawr (literalmente “grande colina”); pen “cume”: Pendleton, dentre outras. Alguns outros elementos célticos ocorrem também com certa freqüência, tais como cumb “vale profundo”: Duncombe, Holcombe, Ilfracombe, Wichcombe; tor “rocha alta”: Torr, Torcross, Torhill; pill “enseada de maré”: Pylle, Huntspill; broc “texugo”: Brockholes, Brockhall; dun “lugar protegido”: Dundee, Dunbar, bem como o antigo nome de Edinburgh, Dunedin; Kill “igreja”: Kildare, Kilkenny e -llan “sagrado”: Llangollen, Llandudno. Outros nomes de lugares de provável origem céltica incluem: Dover “água”, Dublin, Glasgow, York, Ecles “igreja”, Bray “monte”.

Palavras latinizadas como caester (e as variantes caster e cester), fontana, fossa, portus, vicus e o elemento -col como em Lincoln10 (< colonia “colônia”) foram empregadas para dar nomes a lugares durante a ocupação romana da ilha e transmitidas aos anglo-saxões pelos celtas. A primeira delas, castra (< castra “campo” ou "cidade murada"), tornou-se um elemento bem familiar na formação de topônimos ingleses, sendo os mais importantes: Chester, Colchester, Doncaster (de Danum, nome de um rio), Dorchester (de Durnovaria "briga de socos", talvez em referência a competições de pugilismo locais), Manchester (de Manucium "nome de uma colina em formato de seio"), Winchester (de Venta "lugar especial"), Lancaster, Gloucester (de Glevum "luminoso"), e Worcester, Rochester (de Durobrivae "ponte fortificada", em que apenas a sílaba ro pode ser identificada), Caeleon, Cardiff, Carlisle

No Continente, são de origem céltica os nomes dos rios Danúbio [alemão Donau, de danu- "rio", através do latim Danuvius]; Reno [alemão Rhein, de Renos "correr, fluir", através do latim Rhenus]; Sena e Tejo [através do latim Tagu].

Há fortes evidências de influência céltica também na toponímia, tais como: Verdun, Novion, Metz [através do latim Mettis] e Bourges (na França); Nertobriga, Lacobriga, Turobriga, Mirobriga, Arcobriga, todos com a terminação -briga, que significa "altura", "montanha" (Portugal). A estes nomes de lugar podem ser acrescentados: Coimbra [através do latim Coniumbriga], Bragança, Alcóbira e Ségovia (também em Portugal) e Madrid (na Espanha).

Nomes de pessoas de origem céltica incluem: prenomes tais como Alan, Donald, Duncan, Eileen, Fiona, Gavin, Ronald, Sheila; patronímicos e sobrenomes em mac ou mc (MacDonald, McDonald) e O ( O'Donald, O'Neil), e outros como Cameron, Campbell, Colquhoun, Douglas, Evans, Griffiths, Jones, Morgan, Urquhart.


5. CONCLUSÃO

Muito antes da invasão dos anglo-saxões (século V), as línguas faladas pelos habitantes da Ilhas Britânicas pertenciam à família céltica, introduzidas por um povo que lá chegara por volta do ano 500 a. C. Muitos desses povoadores foram, por sua vez, subseqüentemente, subjugados pelos romanos, que ali chegaram em 43 a. C. Porém em 410 os exércitos romanos haviam se retirado para ajudar a defender seu Império na Europa. Após um milênio de ocupação por falantes do celta e de meio milênio de ocupação por falantes do latim, não foram tão grandes os efeitos sobre a língua dos novos conquistadores: os anglo-saxões.

Ao que parece, muitas dessas palavras célticas não lograram um lugar muito permanente na língua inglesa. Algumas logo desapareceram, enquanto outras conseguiram somente aceitação local. O relacionamento entre os dois povos não foi do tipo que causasse qualquer influência considerável no estilo de vida ou no discurso inglês. Os celtas sobreviventes transformaram-se num povo submerso. O anglo-saxão teve pouca oportunidade de adotar os modos de expressão célticos, e a influência céltica permanece como uma das menos relevantes dentre as primeiras influências que afetaram as línguas do continente europeu em geral e a língua inglesa em particular.


6. BIBLIOGRAFIA

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As Cruzadas

Por D. Estevão Bettencourt, 24 de Junho de 2004

Resumo: O termo “Cruzada” mesmo nunca ocorre nos documentos medievais; é vocábulo posterior, utilizado de maneira um tanto inadequada quando se fala de instituições medievais


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Por “Cruzadas medievais” entendemos, as expedições empreendidas pelos cristãos do Ocidente para libertar do domínio muçulmano o S. Sepulcro de Cristo em Jerusalém. Têm início em fins do séc. XI (1095) e terminam em 1291, quando os últimos bastiões dos cruzados no Mediterrâneo oriental sucumbiram sob os ataques dos turcos. Recobrem, pois, os séculos XII e XIII. Verdade é que houve expedições bélicas para libertar a Terra Santa ou o Oriente da Europa ameaçado pelos turcos também nos séculos XIV e XV, como antes de 1095 se falava de reconquistar a Espanha ocupada pelos árabes... Antes de entrarmos no tema propriamente dito, importante observação deve ser feita, a saber: não se pode entender um episódio do passado sem se reconstituírem previamente o quadro geral respectivo e as categorias de pensamento dos atores desse episódio. A propósito damos a palavra a Profª. Regine Pernoud no seu livro “Les Croisades” (Paris 1960, p. 7): “É de notar quanto a historiografia nos tempos modernos se tornou moralizante e quão poucos historiadores resistem à tentação de se transformar em juizes e censores dos acontecimentos que eles referem. Ora os julgamentos que os historiadores possam proferir sobre o passado, arriscam´se muitas vezes a ser inadequados ou injustos, porque, sem que o próprio estudioso tenha sempre consciência disto, ele julga segundo critérios que datam da sua época, e não da época analisada. Especialmente estranho é o fato de que esse moralismo histórico se tenha propagado precisamente nos séculos XIX e XX, quando se registra admirável esforço em prol da historiografia objetiva, imparcial configurada às ciências exatas, que seguem métodos rigorosos. Os julgamentos dos historiadores acarretam o inconveniente de introduzir um dos elementos mais subjetivos, ou seja, as opiniões políticas ou religiosas abraçadas pelo estudioso... Essas sentenças arbitrárias, simplistas demais para poder ser verídicas, não provém do fato de que em geral o estudioso está mais apressado para julgar do que para compreender?’ Conscientes do valor destas advertências, procuraremos, nas páginas que se seguem, antes do mais compreender ´ o que não significa legitimar indistintamente os fatos narrados.


Causas da “Viagem da Cruz”

O fundo de cena histórico

1 - O termo “Cruzada” mesmo nunca ocorre nos documentos medievais; é vocábulo posterior, como também moderno é o vocábulo corporação, utilizado de maneira um tanto inadequada quando se fala de instituições medievais. Na Idade Média falava´se de “caminho de Jerusalém, passagem, viagem, via da cruz, peregrinação”. É, pois, a partir deste vocabulário que havemos de começar o estudo do que posteriormente foi chamado “Cruzadas”. “Peregrinação” é uma das práticas mais ancoradas na Bíblia ou ´ ainda ´ na tradição judaica, na tradição cristã e na tradição muçulmana; ver Deuteronômio 16,16; Lucas 2,41. Em particular, a peregrinação a Jerusalém e aos lugares santos da Redenção do gênero humano foi sempre uma das expressões de fé mais caras aos cristãos. No séc. IV após a era das perseguições, quando o Cristianismo começou a usufruir de liberdade no Império Romano, vê´se a lmperatriz Helena, mãe de Constantino, ir à Palestina para descobrir e restaurar os testemunhos da vida, da morte e da ressurreição de Cristo, que haviam sido sufocados pela ocupação romana a partir de 70 e, máxime, após 135 d.C. Pouco depois de Helena, mãe de Constantino, tem´se a figura de S. Jerônimo (†421), que resolveu estudar a Bíblia na Terra Santa, estabelecendo´se na gruta de Belém. Aos paucos, no país biblico foram´se constituindo numerosos mosteiros de homens e mulheres, que queriam beneficiar´se do contato com os lugares sagrados. Do séc. IV em diante, o movimento de peregrinações a Terra Santa não cessou entre os cristãos: Jerusalém, Roma e Compostela eram os principais pontos de atração da piedade. Têm´se mesmo ainda hoje numerosos “Itinerários” de Terra Santa escritos em latim através dos séculos por cristãos de nomeada, como o peregrino de Placência, Silvia, Etéria... Na ldade Média tão arraigado era o hábito de peregrinar que até mesmo o servo da gleba (o homem estatico por excelência, porque ligado ao campo, que ele não podia deixar e que ninguém tinha o direito de Ihe tirar) gozava do direito de sair da sua terra para realizar uma peregrinação, sem que ninguém se Ihe opusesse.

2 - No séc. VII a expansão árabe fez perecer as numerosas comunidades cristãs esparsas pela Síria, a Palestina, o Egito, o norte da Africa. Jerusalém em 638 foi ocupada e, em parte, transformada em cidade Árabe muçulmana. As condições dos cristãos.que lá viviam ou que lá iam ter a fim de visitar os lugares santos, tornaram´se difíceis, embora oscilantes segundo as épocas; a tensão do ambiente foi as vezes abrandada por acordos, como, por exemplo, os de Carlos Magno († 814) com o califa Haroun al´Rachid; esses pactos, porém, nem sempre foram respeitados, como no caso do califa Hakim, fundador da religião drusa, que em 1009 mandou destruir a basílica do S.Sepulcro em Jerusalém e durante dez anos moveu perseguição a cristãos e judeus. Pouco depois, ou seja, a partir de 1055, os Turcos seleucidas entraram no próximo Oriente. Em 1071, Jerusalém caia em suas mãos. Os cristãos, em conseqüência, sofreram opressão. Os peregrinos que voltavam da Terra Santa, narravam no Ocidente a ingrata situação em que se achavam os irmãos e os santuários na Terra Santa de Cristo. As condições de peregrinação eram extremamente penosas. Os relatos falam de peregrinos colocados no cárcere, seqüestrados em troca de dinheiro, torturados, durante a viagem para a Terra Santa. Uma das crônicas mais impressionantes era a da peregrinação de Bünther, bispo de Bamberga (Alemanha), que, com milhares de companheiros, a pequena distância de Jerusalém, sofreu duro ataque dos beduínos da região durante três dias. Certamente muitos episódios e casos particulares circulavam de boca em boca na Europa a respeito do que ocorria em Jerusalém e nos arredores; tais episódios constituiam o teor do que o cristão podia conhecer a respeito da Terra Santa. Dessas informações temos um espécimen ainda hoje numa crônica de Guilherme de Tiro, historiador do século XII: “Aconteceu, por permissão de Nosso Senhor e para provação do povo, que um homem desleal e cruél se tornou senhor e califa do Egito. Tinha por nome Hakim e quis ultrapassar toda a malícia e a crueldade que tinham estado em seus ancestrais. Ele foi tal que os homens da sua lei o tinham também na conta de eivado de orgulho, de furor e de deslealdade. Entre outras deslealdades, mandou abater santa igreja do sepulcro de Jesus Cristo, que fora construída anteriormente por ordem de Constantino Imperador, pelo patriarca de jerusalém chamado Máximo e que fora refeita por Modesto, outro patriarca do tempo de Heráclio.53 Então começou a situação de nossa gente a ser muito mais dura e dolorosa do que fora, pois grande luta lhes entrara no coração por causa da lgreja da Ressurreição de Nosso Senhor, que eles viam assim destruída .Doutra parte eram dolorosamente sobrecarregados de impostos e tarefas, contra os costumes e os privilégios que eles haviam recebido dos príncipes incrédulos. Até mesmo o que jamais lhes fora imposto, chegou a ser lhes proibido: a celebração das suas festas. No dia que soubessem ser a maior festa dos cristãos, eles (os drusos) os obrigavam a trabalhar mais sob o jugo e a força; proibiam´lhes (aos cristãos) sair das portas de suas casas, em que eles eram encerrados para que não pudessem celebrar festa alguma. Em suas casas mesmas não gozavam de paz nem segurança, pois se atiravam sobre elas grandes pedras e pelas janelas lançavam excrementos, lama e toda espécie de lixo. Se acontecesse que alguns cristãos dissesse uma só palavra capaz de desagradar a esses incrédulos, logo, como se tivesse cometido um morticínio,era arrastado à prisão e Ihe cortavam o pé ou a mão, ou podiam todos os seus bens ser confiscados pelo califa ...Muitas vezes, os incrédulos tomavam os filhos e as filhas dos cristãos em suas casas e com eles faziam o que queriam;ora mediante adulação os incrédulos constrangiam muitos jovens a renegar a fé...Os bons cristãos esforçavam´se por sustentar tanto mais firmemente a sua fé quanto mais eram maltratados. Seria longo contar todos os vexames e as desgraças em que o povo de Nosso Senhor se encontrava então. Eu vos contarei um episódio, para que mediante esse possais compreender muitos outros. Um dos incrédulos, malicioso e desleal, que odiava cruelmente os cristãos, procurava certa vez um meio de os fazer morrer. Viu que a cidade inteira (Jerusalém) tinha grande honra e reverência pelo Templo que fora refeito54... Diante do Templo há uma praça que se chama a esplanada do Templo, que eles (os muçulmanos) guardavam e mantinham limpa, como os cristãos mantém limpas as suas igrejas e os seus altares. Esse incrédulo desleal tomou de noite, sem que alguém o visse, um cão morto, pútrido e fétido, e colocou´o nessa esplanada, diante do Templo. De manhã, quando os homens da cidade foram ao Templo para orar, encontraram esse cão. Fez´se então um grande grito, rumor e clamor por toda a cidade, a ponto que só se falava do ocorrido. Reuniram´se e não tiveram dúvida em dizer que os cristãos haviam feito isto. Todos concordaram em passar ao fio da espada todos os cristãos; já estavam mesmo desembainhadas as espadas que a todos deviam cortar a cabeça. Entre os cristãos havia um jovem de coração generoso e de grande piedade. Falou ao povo e disse: ‘Meus senhores, verdade é que não tenho culpa alguma no que aconteceu, como aliás nenhum de nós a tem; isto, eu o dou por certo. Mas será extremamente doloroso se morrerdes todos assim e se todo o Cristianismo se extinguir nesta terra. Por isto pensei em vos libertar a todos com o auxílio de Nosso Senhor. Apenas vos peço duas coisas pelo amor de Deus: que oreis por minha alma em vossas preces e que tomeis sob os vossos cuidados e reverência a minha pobre família. Pois eu assumirei a causa sobre mim e direi que fui eu que fiz aquilo de que acusam a todos nós!’ Os que lamentavam morrer, tiveram grande alegria então e prometeram ao jovem fazer orações e honrar os seus familiares de tal modo que estes, no domingo de Ramos, trouxessem sempre a oliveira, que significa o Cristo, e a colocassem em Jerusalém. ´ O jovem, portanto, foi ao encontro dos injustos e disse que os outros cristãos não tinham culpa alguma no ocorrido e que ele era o autor da façanha. Quando os incrédulos ouviram isto, puseram em liberdade todos os outros, e somente ele teve a cabeça talhada. “ Faça´se o desconto devido possivelmente ao estilo panegirista do cronista... É certo, porém, que ainda no séc. XII havia em Jerusalém uma família encarregada de fornecer aos fiéis as palmas para o domingo de Ramos, em memória (diziam) da dedicação desse antepassado generoso, que se teria sacrificado em prol da comunidade.


Concepções e características medievais

1 - Note´se agora que os relatos corcernentes aos vexames da Terra Santa ecoavam nos ouvidos de sociedade e povos caracterizados por dois traços profundamente marcantes:

a) Eram populações nas quais todos os indivíduos (com raras exceções, que confirmavam a regra) tinham ´ ou ao menos julgavam ter ´ e professavam a fé cristã. Essa fé não procedia de uma autoridade exterior (do Papa ou do Imperador), mas era uma convicção profundamente ancorada no coração de todos. Os valores da fé eram, para esses homens, o que fazia que a vida valesse a pena de ser vivida. O calendário da vida pública, as catedrais românicas e góticas, os nomes de acidentes geográficos e instituições, além de numerosos outros dados, atestam. o profundo impacto que a mensagem da fé causava sobre os povos medievais, ritmando as minúcias da vida cotidiana. Não há dúvida, a fé dos medievais era muito propensa a demonstrações exuberantes, como também a dar crédito a visões, aparições, feitos extraordinários, sinais retumbantes de Deus... Ao lado das grandes Universidades de Paris, Oxford, Bolonha, Nápoles, havia também muita simploriedade e infantilidade na piedade cristã. Mas inegavelmente tudo que se ligasse com a fé, revestia´se de grande significado para os medievais.

b) A sociedade na Idade Média estava toda impregnada do espírito e da realidade dos cavaleiros. Efetivamente, a espiritualidade germãnica, França, celta, goda levou a civilização medieval o ideal do cavaleiro. Este aspirava a servir a Deus na bravura destemida, magnânima, e até mesmo na guerra (caso julgasse que a honra de Deus exigia a intervenção da espada). A espiritualidade do cavaleiro retratada nas canções e trovas da Idade Média era apta a suscitar façanhas heróicas em nome da fé. Mais deve´se lembrar que na ldade Média também os monges desenvolveram papel importante, professando, porém, uma espiritualidade assaz diversa da do cavaleiro. Enquanto o cavaleiro procurava intensificar suas atividades no mundo, aspirando assim a unir´se a Deus e chegar à vida eterna, o monge se separava do mundo secular para penetrar diretamente em Deus e na contemplação. Enquanto o cavaleiro aplicava os instrumentos da sua profissão, isto é, as armas, para servir ao seu Senhor, o monge, professando pobreza e silêncio, recusava o recurso a tais expedientes. Ora os medievais haviam de conseguir fazer a síntese desses dois tipos de ideal cristão ´ o do cavaleiro e o do monge ´, criando no século XII as chamadas “Ordens Militares”. Nestas o cavaleiro se consagrava a Deus para O servir com destemor e gaIhardia num quadro de pobreza, castidade e obediência.


Referindo-se aos Templários, dizia S. Bernardo († 1153):

“Não sei se os devo chamar monges ou cavaleiros; talvez seja necessário dar´lhes um e outro nome, pois eles unem, à brandura do monge a coragem do cavaleiro” (De laude nova emilidae(IV8).

2 - É, portanto, nas populações medievais, caracterizadas por tais traços, que ecoaram os relatos, de estilo simples e pungente, dos peregrinos da Terra Santa, no séc. XI. Compreende´se que tenham desencadeado reação espontânea e decidida da parte dos seus ouvintes. Somente o entusiasmo e o vigor comunicados pela fé (e que só a fé pode comunicar) explicam tal resposta: multidões se abalaram, prontificando´se a partir para terras longínquas, desconhecidas, sujeitas a surpresas e ciladas, sem reabastecimento seguro, sem guias peritos, sem planos de viagem muito definidos, mas conscientes (ao menos nos primeiros tempos) de que Deus o queria; “Deus lo volt”, eis o brado que em Clermont, no ano de 1095, impressionou os primeiros expedicionários e impulsionou a tantos outros que lhes seguiram o exemplo. Cosiam uma cruz de pano vermelho ao ombro direito; donde as expressões que se tornaram técnicas: “assumir a cruz” e “fazer a cruzada”. O ímpeto inicial teve suas repercussões durante os dois séculos de duração do movimento de Cruzadas. Aliás, os medievais dedicavam grande devoção ao Santo Sepulcro do Senhor, que os cronistas Ihes apresentavam sujeito a vexames. Era tido como o maior santuário do mundo cristão, como o centro do universo, segundo os sermões e os noticiários da época. É somente a partir de tais concepções, muito vivas e significativas para os medievais, que se podem entender as Cruzadas. Nenhum tipo de guerra moderna, nem mesmo a chamada “guerra santa” (jihad) dos muçulmanos, pode servir de ponto de referência para se entenderem a inspiração e a força, motriz dos cruzados. É mister, porém, reconhecer que as idéias religiosas dos primeiros expedicionários foram sendo, aos poucos, no decorrer de dois séculos, solapadas, de sorte que a imagem do cavaleiro que em seu fervor tomava sobre si a cruz para ir libertar o S.Sepulcro do Senhor, se foi modificando. É essa imagem posterior que muitas vezes predomina em certos tratados sobre as Cruzadas.

As Cruzadas em resenha Foi o Papa Urbano II quem, no Concílio de Clermont (França) em 1095, lançou o programa de expedições destinadas a reconquistar o S. Sepulcro em Jerusalém. O ambiente, como vimos, estava assaz motivado para receber tal apelo. Conseqüentemente, o brado de Urbano II suscitou entusiasmo delirante; muitos pregadores puseram´se a percorrer a Europa, incitando os homens a cerrar fileiras. Grande multidão de ouvintes, de origem social diversa, assumiu então a cruz, emblema da campanha. Os expedicionários, provenientes da França, da Inglaterra, da Itália, eram dotados de benefícios espirituais pelo Papa; a quem ousasse violar ou roubar as suas propriedades durante a respectiva ausência, tocaria a pena de excomunhão. Em resposta imediata ao apelo e sem esperar a organização de exércitos devidamente constituídos (coisa que levaria tempo), grande número de simples fiéis pôs´se logo em marcha para o Oriente sem o equipamento necessário. Essa Cruzada Popular, chefiada por Pedro o Eremita e Gualtero “sem Haveres” (Gauthier sans Avoir), fracassou, pois os seus membros ou pereceram na estrada ou foram exterminados pelos turcos.

1a Cruzada: Em fins de 1096, quatro exércitos de senhores feudais chegavam a Constantinopla:

1) os lorenos e alemães, com Balduíno de Hainaut e Godofredo de Bouillon;

2) os franceses do norte, sob o conde de Vermandois e o duque de Normandia;

3) os provençais, com o conde de Tolosa e o legado Ademar de Monteil;

4) os normandos da ltália, com Boemundo de Taranto e Tancredo. Nenhum rei os acompanhava, nem esses exércitos cuidaram de instituir um Chefe geral para todos. O lmperador bizantino Aléxis Comnene, em Constantinopla, esperava servir´se desses guerreiros para reconquistar parte da Ásia Menor, que fora arrebatada pelos turcos. A cidade de Nicéia perto de Constantinopla foi então realmente reconquistada, mas, em vez de ser atribuída aos ocidentais, voltou a ser domínio do lmperador bizantino. Este fato frustrou os latinos e concorreu para que doravante latinos e bizantinos concebessem desconfiança mútua! ´ Após dois anos e meio de lutas e sofrimentos atrozes, os cruzados, tendo vencido o exército de Solimão em Doriléia, havendo tomado Edessa (1097) e Antioquia (1098), chegaram finalmente a Jerusalém e dela se apoderaram (1099). Essa sangrenta expedição, que custara a vida a cerca de meio´milhão de homens, terminou com a fundação de quatro centros latinos: o reino de Jerusalém, o principado de Antioquia, os condados de Edessa e de Trípolis, aos quais foram atribuídos governantes latinos. As grandes cidades da costa palestinense foram ocupadas por navegantes e comerciantes ocidentais. Os peregrinos recomeçaram a afluir à Terra Santa. Para protegê´los e defendê´los, foram criadas as Ordens de Cavaleiros Militares (Hospitalários, Templários, etc.). Como se compreende, os territórios latinos no Oriente eram constantemente ameaçados e só podiam subsistir com o auxílio de reforços vindos do Ocidente. É o que explica uma série de expedições, ora mais, ora menos vultosas, colocadas entre as grandes Cruzadas. Somente estas, em número de oito, serão aqui recenseadas.

2a Cruzada:
Os turcos tendo reconquistado e destruído Edessa, preparou´se nova Cruzada, que partiu do Ocidente em 1147. Exortados por S. Bernardo, o rei de França, Luís VII, e o da Germânia, Conrado III, tomaram a cruz sobre si e fundiram suas tropas num só exército. Mas não conseguiram tomar nem mesmo Damasco, e regressaram sem êxito em 1149.

3a Cruzada:
O sultão Saladino apoderou´se de Jerusalém em 1187. Respondendo então a um apelo do Papa Urbano III, Filipe Augusto da França, Frederico Barbaroxa da Alemanha, e Ricardo Coração de Leão, da Inglaterra, apresentaram´se para partir. Os alemães, tendo seguido por terra, chegaram até a Ásia Menor; mas a morte de Frederico, afogado nas águas do rio Cydnus (Cilícia), provocou a dispersão do seu exército (1190). Os reis da França e da Inglaterra dirigiram´se por mar a S. João de Acre, que conseguiram ocupar (julho de 1191). Embora lutassem juntos, os dois monarcas nutriam desconfiança mútua. Filipe Augusto, tendo caído doente, voltou à Europa, e, apesar da palavra dada, pôs´se a tramar com João sem Terra a invasão dos domínios do rei da lnglaterra. Ricardo viu´se assim compelido a voltar (1192). Naquela época, os cristãos já não possuiam senão o litoral, desde Tiro até Jafa, com S. João de Acre como capital, além do principado de Antioquia, assaz reduzido. Todavia Ricardo Coração de Leão havia conquistado Chipre, que se tornou um reino latino próspero.

4a Cruzada:
O Papa lnocêncio III (1198´1216) aspirava ardentemente à libertação de Jerusalém. Suscitou nova expedição, a qual, porém, se afastou da sua orientação, sob a influência de Filipe da Suábia, de Veneza e dos gregos. Os cruzados empreenderam a conquista de Constantinopla (!), que eles saquearam, fazendo da mesma a capital de um Império latino. Esse lmpério, que compreendia a península dos Balcãs, durou até 1261, quando Miguel o Paleólogo retomou Constantinopla.

5a Cruzada:
Entre 1219 e 1221, alemães e húngaros assumiram a cruz. Dirigiram´se para o Egito; mas a cheia do Nilo, que os cristãos não previam, obrigou´os a retirar´se.

6a Cruzada:
É também chamada “peregrinação sem fé” (1228´1229). Excomungado pelo Papa, Frederico II resolveu empreender uma Cruzada, não tanto para libertar o S. Sepulcro, quanto para unir em sua pessoa os títulos de Imperador da Alemanha e rei de Jerusalém; amigo da ciência e da cultura árabes, Frederico II aparentava amizade com os Árabes, de sorte que obteve do sultão do Egito, por dez anos, o domínio sobre Jerusalém, Belém e Nazaré. Terminado esse prazo, Jerusalém recaiu nas mãos dos Árabes.

7a e 8a Cruzadas:
São Luís IX, rei da França, resolveu reconquistar a Cidade Santa. Em 1248, atacou o sultão Eyoub, não na Síria, mas no Egito. Como em 1221, também dessa vez os cristãos tomaram Damieta, mas cairam diante de Mansourah. Foram todos encarcerados, só conseguindo a liberdade mediante enorme preço de resgate. Em 1270, S. Luís renovou seus esforços, conseguindo a muito custo constituir um exército para empreender nova expedição. O irmão do rei, Carlos de Anjou, persuadiu´o de ir primeiramente a Túnis; diante desta cidade, o monarca, acometido de peste, veio a falecer aos 25 de agosto de 1270. Após estes fatos, a pressão dos exércitos turcos se intensificou, visando aos últimos redutos cristãos da Asia. Em 1291, estes sucumbiram, encerrando´se assim a era das Cruzadas propriamente ditas. Ainda, a título de ilustração, mencionamos as Cruzadas das crianças, pois são significativas do espírito da época. Em 1212, um jovem pastor, chamado Estêvão, dizendo´se enviado por Deus, convocou as crianças da França para empreenderem uma Cruzada. O exército de 30.000 jovens que assim se formou, embarcou em Marselha. Dois condutores de frota haviam se comprometido a transportá´los ao Oriente gratuitamente; todavia venderam´nos aos mercadores de escravos no Egito. A maioria dos participantes pereceu; um pequeno número recuperou mais tarde a liberdade. Na mesma época, a Alemanha foi teatro de episódio semelhante. Vinte mil jovens, dirigidos por certo Alexandre, tão imperito quanto os seus seguidores, atravessaram os Alpes para embarcar em Gênova. Todavia, frustrados, dispersaram´se sem êxito algum. Depois desta visão panorâmica do que foram concretamente as Cruzadas, importa agora procurar compreender os fatores que provocaram o seu estranho desenrolar. Cruzadas: idealismo ou decadência?

Os motivos de duvidar Quem leva em conta a história das Cruzadas, à primeira vista é levado a dizer que constituiram um fracasso ou até mesmo um contra´testemunho dos cristãos. Têm´se catalogado vários capítulos de censura aos cruzados: ambição, traição, vileza de costumes... É interessante notar que não somente historiadores modernos denunciam falhas tais, mas também pregadores e cronistas medievais. Com efeito, no decorrer dos séculos XII e XIII, perguntavam por que Deus havia permitido a derrota deste ou daquele exército de seus servidores ou por que consentira na perda da Cidade Santa Jerusalém. ´ Em resposta, julgavam que o pecado devia ser a causa de tais insucessos; em conseqüência, apontavam uma série de faltas morais dos cruzados. Entre outras instâncias, o Concílio de Lião I em 1245 também fez advertências a procedimentos indignos dos cruzados; cf. Mansi, Conciliorum amplissima collectio XXIII, p. 628. A vista destes dados, dir´se´á que as Cruzadas representam um ponto negro da história medieval. Quem assim julgasse em bloco, seria unilateral ou mesmo injusto.

Quadro geral: apreciação Não se pode deixar de sublinhar em primeiro lugar o que de positivo as Cruzadas representam. Abstração feita de pessoas e episódios particulares, as Cruzadas têm sua inspiração fundamental na fé dos homens da Idade Média, no seu amor aos valores sagrados e no seu espírito cavaleiresco, corajoso e magnânimo. A fé e o amor dos cristãos, na Idade Média, recorreram às armas para se exprimir concretamente... Hoje muitos cristãos hesitariam diante de tal expressão; seriam até propensos a condená´la. Atualmente os homens têm meios de confrontar suas divergências mediante reuniões, assembléias, concordatas; por isto rejeitam (ao menos em teoria...) as soluções violentas (na prática, porém, não faltam as guerras também em nossos dias, suscitadas pelos mais diversos motivos). Contudo na ldade Média as distâncias geográficas, culturais, filosóficas constituiam barreiras quase intransponíveis, que dificultavam aos homens a aproximação física e a superação de suas divergências; julgavam em muitos casos ter que recorrer às armas para preservar seus valores e garantir o bem comum. Assumir as armas em tais circunstâncias era tido como louvável; fugir delas mereceria censura. Verdade é que o movimento das Cruzadas não conseguiu devolver aos cristãos, de maneira duradoura, a posse da cidade de Jerusalém e da Terra Santa em geral. Todavia ele se prolongou por dois séculos, a custa de ingentes sacrifícios, que revelam notável espírito de heroísmo. Sucessiva e tenazmente, as gerações de cristãos despertaram as suas energias para recomeçar a grande façanha que outros não haviam conseguido realizar plenamente. Assim deixaram eles à posteridade o testemunho de sua fé. Não se poderiam silenciar outrossim os benefícios acarretados pelas Cruzadas no plano cultural e científico. O contato entre latinos, gregos (bizantinos) e árabes ocasionou incremento para a matemática, a medicina, a indústria, o comércio e outros ramos das atividades humanas; desenvolveu a navegação e modificou as condições econômicas da sociedade feudal. Em suma, preparou o grande surto das artes e das ciências ditas “exatas” nos séculos XV/XVI.

Fatores negativos
O entusiasmo que desencadeou as Cruzadas era mais idealistas do que realista; os seus arautos não mediam a amplidão dos encargos e problemas que a execução concreta do programa devia acarretar. É o que explica que os cruzados, após haver obtido os seus primeiros resultados, tenham experimentado sucessivos reveses. Estes se devem a fatores vários, que podem ser assim enunciados:

1) A amplidão da tarefa empreendida pelos cruzados exigiu, com o passar do tempo, o recurso a subsídios novos e necessariamente heterogêneos, a saber: — Os cavaleiros e outros cristãos que entusiasticamente se ofereciam para assumir a cruz, já não bastavam para o objetivo. Foi preciso recrutar soldados mercenários, que pugnariam não tanto por ideal cristão, mas, sim, por interesses pessoais, às vezes mesquinhos. Muitos desses mercenários eram antigos criminosos detentos, a quem se dava a liberdade à condição de que fossem lutar no Oriente. Ora compreende´se que tais soldados, vendo´se livres, facilmente voltavam aos maus hábitos e prejudicavam o conjunto da tropa. Assim foi sendo cada vez mais diluída a imagem do cavaleiro que galhardamente partia para a Terra Santa às próprias custas, porque amava o Senhor Jesus. — As despesas com os soldados mercenários e seus equipamentos eram ingentes, exigindo dos responsáveis que procurassem angariar quantias de dinheiro jamais suficientes. Ora onde entra dinheiro, facilmente é excitada a cobiça do ser humano com suas paixões, qua levam a abusos e desatinos. infelizmente não se tem documentação precisa sobre o montante das despesas exigidas por uma expedição de cruzados. Desejar´se´ia saber quanto cada soldado em média percebia, quanto os reis davam do seu erário e quanto o Papa empenhava nas sucessivas Cruzadas. Existem, sem dúvida, notícias a respeito. Todavia os diversos dados supõem épocas diversas, as quantias são expressas em moedas heterogêneas, as notícias são parceladas, de sorte que é difícil ter idéias claras do conjunto. Apenas as duas Cruzadas de S. Luís IX têm certa contabilidade escrita em livros; sabe´se, pois, que o total das despesas de campanha de 1247 a 1256 comportou 1.537.570 libras de Tours. Mesmo assim há dúvidas: outra documentação refere que somente nos anos de 1250 a 1253 a Cruzada consumiu 1.053.476 libras de Tours! — De modo particular, criou problemas o transporte das tropas para o Oriente. O meio mais indicado a preferido eram as embarcações, que atravessavam o Mediterrâneo. Ora até a quinta Cruzada os expedicionários não possuiam frota própria. Justamente a quarta Cruzada foi desviada para Constantinopla, porque, não tendo naves próprias, foi obrigada a valer´se das de Veneza, que procuraram servir aos seus interesses comerciais, e não aos dos cruzados. Tardiamente, sob Frederico II e Luis IX, os cruzados recorreram a equipamento marítimo próprio. Anteriormente, porém, tinham que utilizar os navios das cidades comerciantes de ltália ou de França (Veneza, Gênova, Pisa, Marselha ...), que, em troca, exigiam para si direitos e privilégios nos portos da Palestina. — O vulto crescente das Cruzadas exigiu que a direção das mesmas fosse confiada a reis, príncipes e grandes senhores de terras, pois estes poderiam, mais facilmente do que os cavaleiros, organizar e sustentar exércitos de mercenários. Ora os reis a grandes senhores nem sempre se entendiam entre si; objetivos políticos e nacionalistas facilmente afrouxavam ou solapavam alianças previamente contraídas (levem´se em conta a primeira e a terceira Cruzadas). ´ Notório é o caso de Frederico II da Alemanha, orientalista e diletante.

2) Também se apontam falhas morais no procedimento dos cruzados: rapina, abuso de mulheres e outros males, que já os pregadores e o Concílio de Lião I censuravam... O historiador sincero há de reconhecer tais erros. Todavia não se deveria fazer dessas faIhas a nota característica ou uma das notas características das Cruzadas. Elas ocorreram com os cruzados como geralmente ocorrem nas expedições militares. Todo soldado é sujeito a procurar suas “compensações” depois de haver sofrido os rigores de fome, da sede, do frio e de severa disciplina durante a respectiva campanha. Não poucos cruzados chegavam finalmente à costa da Palestina doentes, vítimas de febres, e facilmente aceitavam ser tratados em clima de moleza, bem estar e gozo. ´ Nem por isto tais “compensações” são legítimas. Numerosos outros episódios se poderiam ainda propor para analisar e comentar as Cruzadas. Em síntese, porém, parece que os principais traços das mesmas e do respectivo fundo de cena foram indicados nestas páginas. Em suma, pois: recolocadas no seu contexto medieval, as Cruzadas não são mancha negra; mas, ao contrário, atestam (naturalmente segundo as categorias a possibilidades da época) a unidade e a homogeneidade dos povos da Alta Idade Média, que encontraram na sua fé ´ valor que eles não discutiam ´ o estímulo e o dinamismo para realizar façanhas heróicas, ao mesmo tempo marcadas pela virilidade, pela poesia e pelas limitações humanas...!

Freguesia e Concelhos da Madeira

NOTAS HISTÓRICAS


O Porto Santo. breve memória histórica

Ribeira Brava. de lugar a concelho

S.Vicente. as riquezas do norte

A descoberta do Norte

Os duzentos e cinquenta anos da vila de S. Vicente

Funchal. uma cidade em construção

Calheta

PORTO SANTO. BREVE MEMÓRIA HISTÓRICA

ALBERTO VIEIRA

"... Em verdade, essa bela ilha, digna, aliás, de melhor fortuna, foi sempre esquecida pela metrópole, e menosprezada pelo governo local, cifrando-se nisto a sua obscura história..." Álvaro Rodrigues de Azevedo, 1873

O PRINCIPIO

O começo da história da ilha está envolto em mistério, pela falta de documentos concludentes que mereçam o veredicto favorável da historiografia. Tudo isto favorece a imaginaçäo dos eruditos e cria dificuldades ao historiador.

Quer a Madeira, quer o Porto Santo tiveram um começo de vida pouco claro. O seu envolvimento com a sociedade europeia é obscuro. Daí resulta o facto de encontrarmos na historiografia portuguesa múltiplas versöes que apontam formas diversas do seu encontro pelos portugueses. Mas se o primeiro encontro está envolto em mistério, o mesmo näo se poderá dizer dos iniciais momentos de acolhimento dispensado aos portugueses, que tiveram a coragem de aí se fixarem. O isolamento, a praga dos coelhos, a seca, a fome e, por fim, os corsários foram elementos que definiram, de modo paradigmático, o modo de ser e estar no mundo destes primeiros povoadores e seus descendentes.

A História desta ilha define-se quase só por três conceitos- seca, fome e piratas- que trazem associados a dor a violência e o abandono. Hoje o visual é outro. O eterno isolamento começa a desfazer-se e a ilha não é mais um recanto sem História. As suas extensas praias, onde Colombo vagueou, são agora pisadas por assíduos banhistas, pouco dados a novas aventuras.


O DESCOBRIMENTO DA ILHA E DO NOME

O nome dado à ilha e, com ele a forma do seu descobrimento, são os dois primeiros problemas com que deparámos. Folheando as crónicas e as interpretaçöes que delas fez a historiografia surge-nos com uma multiplicidade de versöes acerca da descoberta da ilha, por isso não é fácil uma resposta adequada à eterna questäo: quando e quem descobriu o Porto Santo ? Ao leitor deixamos um resumo de tudo isso para que confirme o terreno movediço em que nos movemos.

O problema do descobrimento do Porto Santo, em todas as fontes consultadas, está, quase sempre, ligado ao da Madeira. Assim sucede em Gomes Eanes de Zurara, Joäo de Barros, Gaspar Frutuoso, António Cordeiro. A isto associam-se versöes que nos apresentam o descobrimento do Porto Santo de forma isolada deste primeiro encontro da ilha: António Galväo refere o descobrimento por Joäo Gonçalves Zarco e Tristäo Vaz; Francisco Alcoforado aponta essa como iniciativa dos castelhanos; Valentim Fernandes atribui ao incauto Robert Machim.

Desde a mais antiga fonte - a relaçäo de Francisco Alcoforado - ficou assente que foram os castelhanos, no decurso das inúmeras expediçöes às Canárias, quem primeiro pisou o solo portosantense, apontando-se a data de 1417. Por isso a ilha era já conhecida e näo foi espanto o seu encontro ocasional ou não, dois anos depois pelos portugueses. Esta ideia passou para as diversas crónicas através do texto de Jerónimo Dias Leite. Foi também este autor o primeiro a associar o nome dado à ilha com o encontro fortuito dos castelhanos, uma vez que Francisco Alcoforado nada diz a esse respeito. Uma tormenta, que assolou os castelhanos no decurso de uma viagem para as Canárias, trouxe-os de encontro à ilha. O facto deu o mote ao nome que lhe atribuíram: Porto Santo, porque os salvou da tormenta que passaram. Valentim Fernandes atesta ainda, que os castelhanos passaram a escalar a ilha com assiduidade, onde faziam carnagem e tomavam água.

A tempestade como o mote para o nome a dar à ilha foi igual noutras versöes, tendo por protagonistas os marinheiros do infante D. Henrique: Joäo Gonçalves Zarco e Tristäo Vaz. De acordo com Joäo de Barros eles iam em demanda da costa da Berberia mas uma tempestade fê-los sair do rumo, tendo chegado a uma ilha que deram o nome de Porto Santo, "porque os segurou de perigo que nos dias de fortuna passaram". A isto acrescenta António Galväo que os dois ficaram na ilha dois anos.

Diferente de todas é a opiniäo de Diogo Gomes, pois para ele houve um encontro ocasional por marinheiros do infante D. Henrique, sendo a viagem de reconhecimento a cargo de Afonso Fernandes. Mais lacónico é, todavia, Gomes Eanes de Zurara que refere apenas o encontro fortuito da ilha por Joäo Gonçalves Zarco e Tristäo Vaz, a que se seguiram as viagens de reconhecimento e o povoamento.

A única certeza possível de tudo isto é que foram os portugueses os primeiros a fixar morada no Porto Santo, pois como refere Cadamosto esta ilha "nunca dantes fora habitada". Nada nos permite avalizar da veracidade das múltiplas versöes, do descobrimento,e de as questionar.Todavia de uma coisa temos a certeza: o nome foi dado à ilha em época muito anterior às façanhas descritas nos textos acima citados. Pois a cartografia da segunda metade do século XIV atribui já esse nome à ilha. A mais antiga referência encontramo-la no "Libro del Conoscimiento" feito em meados do século XIV por um frade mendicante espanhol. Aí é referida a ilha de Puerto Santo ao lado da Madera. A mesma designaçäo é passada para o Atlas Medicis de 1370 - Porto Sco, surgindo na carta Pinelli - Walkenaer (c. 1384) com a grafia actual. Por isso, poderemos afirmar que uma situação de tormenta, que assolou os marinheiros portugueses e castelhanos nos princípios do século XIV, deu origem ao nome da ilha.

O Prof. Luís de Albuquerque, baseado na lenda de S. Brandäo e da sua presença que dela faz a cartografia, associando-a à Madeira, conclui que o nome dado ao Porto Santo deve ser o corolário da passagem pela ilha do dito monge irlandês. O Porto Santo seria o paraiso que o monge procurava e encontrou. Note-se que na carta dos irmäos Pizzigani (1367) surge uma figura, certamente representando S. Brandäo, no local da ilha de Porto Santo.

Conta Martim Behaim que no ano de 565 D.c. o monge S. Brandäo saiu da Irlanda com alguns companheiros à procura da Terra Prometida. Em pleno oceano foram assolados por uma tempestade e salvos numa ilha que, depois, os levou ao encontro da procurada terra de promissäo, que alcançaram após terem ultrapassado uma cortina de espessa névoa. Aí estiveram sete anos, ao fim dos quais, regressaram à Irlanda. Neste relato encontram-se aspectos semelhantes com os posteriores que descrevem as navegaçöes portuguesas para a Madeira: o naufrágio, e a ultrapassagem do espesso negrume como via para atingir o objectivo.

Nunca é por demais recordar que no decurso da Idade Média havia uma predisposição assídua dos escritores e marinheiros para as lendas que encarnam viagens reais ou imaginárias. Muitas são perpetuadas pela tradição oral, outras são reescritas por novos aventureiros que lhe acrescentam dados novos. Tudo isto demonstra o interesse das gentes pelo que de estranho sucedia no Atlântico. Por isso não admira que nos diversos relatos a ficção ande de braço dado com a realidade.

O texto de Cadamosto oferece-nos uma versäo diferente do assunto: "Esta ilha é chamada Porto Santo, porque foi descoberta pelos portugueses no dia de Todos os Santos...". Todavia isto suscita-nos algumas dúvidas. Em primeiro lugar o topónimo näo faz qualquer referência ao referido dia, pois se assim o fosse a ilha deveria chamar-se de Todos os Santos ou Santos, como sucedeu no Brasil, e nunca Porto Santo. Além disso nos meses de Inverno era pouco comum encontrar-se marinheiros por estas paragens, uma vez que as viagens, devido às condiçöes do mar, faziam-se com particular incidência na época estival. Por fim näo se deverá esquecer que, desde meados do século XV, estes mares circunvizinhos da Madeira e Porto Santo foram com insistência devassados por marinheiros portugueses, ou estrangeiros ao serviço da coroa portuguesa, e castelhanos. As Canárias eram frequentadas já desde 1312, a data mais antiga para uma expediçäo aí realizada.

A prova do interesse português e castelhano pelas viagens às Canárias está manifesto na acesa disputa junto do papado em 1345 pela sua posse. Por tudo isto é muito possível que, portugueses e castelhanos, nesse vai e vem com as Canárias, fossem confrontados no seu caminho com as ilhas da Madeira e Porto Santo. A prova insofismável disso é a representaçäo cartográfica.


OS PRIMEIROS HABITANTES DA ILHA: OS COELHOS

O solo do Porto Santo foi pisado por diversas vezes por gentes das mais diversas procedências que, certamente, procuravam nas suas praias o descanso após a demorada e a água para a demorada e perigosa viagem. Mas nunca houve qualquer intensäo desse visitante em fixar morada. Por isso à chegada dos portugueses, no princípio do século XV, ninguém estava para os acolher na praia, pois a ilha encontra-se desabitada. Este é um aspecto em que todos os cronistas estäo de acordo.

O processo é sempre o mesmo: primeiro o encontro ocasional, seguido do reconhecimento e, finalmente, a ocupaçäo humana. Tal como o refere Zurara a segunda viagem de reconhecimento foi feita por Joäo Gonçalves Zarco, Tristäo Vaz e Bartolomeu Perestrelo. A acompanhá-los seguia um casal de coelhos que lançaram na ilha para atestar das condiçöes de sobrevivência animal. Os coelhos são as cobaias para esta nova experiência.Será que os portugueses duvidavam das condições de habitabilidade destas paragens, como os preceituavam os textos antigos ? Para Joäo de Barros esta segunda viagem é já de ocupaçäo, tendo os ditos trazido consigo sementes e plantas para a nova terra.

Os coelhos foram os primeiros habitantes da ilha, mas também a primeira dificuldade com que os primeiros povoadores tiveram de defrontar-se: a sua rápida capacidade de reproduçäo havia-os tornado numa praga para as culturas que os primeiros colonos ensaiavam. Deste modo a ilha, que num primeiro momento se apresentava como uma esperança para Bartolomeu Perestrelo, acabou numa verdadeira catástrofe. Desiludido o capitão abandonou a ilha e preferiu regressar ao reino a ser dono de uma ilha sem futuro.


OS POVOADORES

Näo é possível saber-se a forma como teve lugar o primeiro assentamento e a origem dos colonos na ilha. Insiste-se numa forte presença algarvia e na sua origem fidalga. A documentaçäo é madrasta neste caso. Apenas por um documento de 1529 sabe-se que a ilha começou a povoar-se com sete ou oito homens. Daqui resultava que quase todos eram parentes, o que provocava dificuldades na aplicação dos regimentos régios que estabeleciam as incompatibilidades na governança.Por isso o terceiro capitäo, Bartolomeu Perestrelo, solicitou o alargamento da sua alçada como forma de adequada condução da vida administrativa.

Também Gaspar Frutuoso é pouco preciso na referência que faz aos primeiros povoadores: - "Foi povoada esta ilha de gente fidalga e nobre, cujos apelidos säo Perestrelos ou Pelestrelos, como outros dizem, Calaisas, Pinas, Rabaçais, Concelos, Mendes, Vieiras, Crastos, Nunes, Pestanas, e de outras muitas nobres geraçöes". Daqui resultou a ideia,profusamente divulgada de que as gentes do Porto Santo eram oriundas da nobreza e fidalguia do reino. Aliás o Cónego Fernando C. Menezes Vaz não hesita em afirmar "que mais de dois terços da populaçäo da ilha é de origem fidalga". Colocando nesse grupo os Alves, Alvarengas, Arrudas, Baiöes, Britos, Caiados, Calaças, Castros, Coelhos, Colaços, Cordovis, Delgados, Farinhas, Ferreiras, Gaviöes, Mendes, Noias, Nunes, Peixotos, Teixeiras, Perestrelos, Pestanas, Pinas, Rabaçais, Ruas, Travassos e Vasconcelos. A isto acresce, ainda, o facto de, em 6 de Novembro de 1522, o rei ter atribuído à família de Bartolomeu Perestrelo o direito de utilizar o título de dom. Daqui resultou a generalizaçäo entre os residentes do mesmo título e a convicçäo de que eram todos descendentes das mais importantes varonias do reino.

Entretanto em 1584 os oficiais da Câmara em carta ao novo rei, Filipe I, reclamavam da mercê do privilégio de cavaleiros fidalgos, pelo facto de terem sempre manifestado a sua oposiçäo à causa de D. António Prior do Crato. Noutra carta de 1586 refere-se afrontamento deste povo aos desígnios do capitäo Diogo Perestrelo,fiel seguidor de D. António, o que deveria ser merecedor de tamanho título. Esta convicçäo da ascendência fidalga dos portosantenses estava na origem na vida ociosa e de luxo que aí se vivia na segunda metade do século dezoito. Por isso no período das ceifas os trabalhadores eram recrutados no Caniço e em Santa Cruz, que aí iam trabalhar a troco de um pagamento em cereais. Era também a troco dos cereais que se alimentava o luxo, manifesto em panos finos, sedas.

Ao luxo juntava-se a ociosidade e o alcoolismo. Por isso em 1769 o governador Sá Pereira procurou atacar o mal pela raiz: proibiu-se a entrada dos panos e vinho de Madeira e impediu-se os jornaleiros da Madeira de irem trabalhar no Porto Santo. Esta recomendação foi insistentemente repetida nas posturas. A par disso combateu-se a vadiagem e a ociosidade com a necessária vinculaçäo do portosantense à terra. Assim só podiam ser eleitos para a vereaçäo ou providos em cargos públicos aqueles que tivessem lavoura. Ademais ordenou-se a escolha de 24 jovens vadios para a aprendizagem dos ofícios de sapateiro, alfaiate, oleiro, carpinteiro, pedreiro, ferreiro. Mas näo ficou por aqui esta mania nobiliárquica das gentes da ilha, de modo que o próprio rei D. José, por alvará de 13 de Outubro de 1770 é peremptório em afirmar que "no Porto Santo tem grassado a mal entendida vaidade, de sorte que todos os sobreditos moradores dela cuidam em alegar genealogias para fugirem do trabalho...". A mesma acusaçäo surge um século depois pela boca de D. Joäo da Câmara Leme: - "... os senhores ou proprietários das terras ou viviam vida folgada, na Madeira ou na Corte, à custa dos rendimentos que de lá auferiam ou, quando näo abastados, passavam na sua ilha vida ociosa, apenas ocupados em desfrutar da fidalguia". Tudo isto resultou do facto de, no decurso do século dezasseis, ter-se generalizado morgadios ou a vinculaçäo da terra. A lista dos encabeçamentos, feita de acordo com o alvará de 1770, evidencia a generalizaçäo deste sistema, provocando o afastamento dos legítimos proprietários dos seus domínios, passando a viver no Funchal, Machico, Santa Cruz, Gaula e Lisboa. Note-se que o exemplo desta opçäo fora dado pelos próprios capitäes da ilha. Foi o caso de Diogo Perestrelo que ao casar na vila da Calheta aí assentou morada, vindo, segundo Gaspar Frutuoso, ao Porto Santo uma vez no ano para a defender dos corsários franceses. Por isso Álvaro Rodrigues de Azevedo é incisivo no seu juízo sobre as condiçöes que deram origem ao estado da vida do portosantense: - "Duas eram as principais causas imediatas do atraso e miséria do Porto Santo, uma nascida de outra: o contrato de colonia, que atrofiava o agricultor, e a ociosidade vaidosa, que enobreceu o proprietário".

A evoluçäo dos habitantes da ilha está ainda por esclarecer. Os dados disponíveis säo avulsos e por vezes desconexos. A primeira referência surge com Valentim Fernandes em 1506, que aponta a existência de 40 moradores, mas passados apenas vinte e três anos fala-se já em 820 habitantes, o que näo se ajusta bem com o dado anterior. Todavia isto poderá ser o reflexo das cíclicas crises a que a ilha esteve sujeita, com reflexos evidentes no movimento populacional: às secas sucede-se a fome, aos assaltos dos piratas e corsários, o desespero e a fuga generalizada.

Em finais do século XVI Gaspar Frutuoso faz um rastreio da situação da ilha dando conta da presença de 400 fogos na vila, a que se associavam escassos casais no sítio do Farrobo e os pastores na terra Gil Eanes. O recenseamento de 1598 refere 720 pessoas de sacramento.O que sucede no século seguinte näo será a melhor: primeiro os atropelos do capitäo Diogo Perestrelo Bisforte levaram à saída de muitas famílias para a Madeira e Brasil; depois, o assalto dos argelinos em 1617, lançou a ilha para o total abandono.

Com o assalto de 1617 a ilha quase ficou deserta: os argelinos levaram 900 cativos, só ficando, segundo Alberto Artur Sarmento, 19 homens e 7 mulheres. Isto levou a Coroa a atribuir, em 13 de Agosto de 1619, a Martim Mendes de Vasconcellos a difícil tarefa de repovoar a ilha com gentes do Porto da Cruz, Caniçal e Santa Cruz.

Pior foi a situaçäo que se deparou ao ilhéu nos séculos XVIII e XIX: aos assaltos dos piratas argelinos sucederam-se os efeitos da seca quase permanente e algumas enfermidades.

Em 1769 José António Sá Pereira refere a existência de 866 habitantes mas os seus planos apontavam para uma reduçäo de apenas 300, valor mais consentâneo com os recursos que a ilha oferecia. Foi no seguimento deste projecto que em 1778 foi criado no Santo da Serra uma aldeia - a aldeia nova - para acolher o excesso populacional do Porto Santo. Todavia as condiçöes inóspitas do local levaram ao abandono da mesma, de modo que em 1783 estava já totalmente abandonada. Outro factor condicionou o decréscimo de populaçäo da ilha no decurso dos séculos XVIII e XIX. As epidemias foram por vezes uma válvula de controlo. Destas podemos apontar em 1721 cem mortes resultantes de "malignas". Todavia maior perigo foi a cólera-morbus que em 1856 vitimou 260 habitantes e em 1910 apenas 10.

A IGREJA

Ilha de pouca gente, sim, mas nunca de reduzida devoção. A conjuntura difícil que acompanhou o seu percurso histórico era propicia a uma extremada devoção.Por isso é evidente um elevado número de capelas, surgidas por iniciativa particular ou por necessidade de retirar do alcance dos profanadores argelinos e franceses as alfaias religiosas. Na vila, ao lado da igreja paroquial, da invocação de Na Sra da Piedade e, depois, de Na Sra da Piedade, há a referenciar, ainda três capelas: Santa Catarina, S.Sebastião e Misericórdia. No interior, em sítios recônditos e fora do olhar profanador dos piratas, temos outras três capelas, para guarda da hóstia sagrada ou culto, nesses momentos de aperto: Nossa Senhora da Graça (Serra da Feteira), Espírito Santo(Campo de Baixo), S.Pedro (Pico de Ana Ferreira). A capela de Nossa Senhora da Graça terá sido construída pela família Coelho, sendo uma das mais antigas da ilha: é referenciada em 1533 como um templo de grande devoção, mas no século XVIII entrou em ruína: diminuíram os assaltos de piratas e a sua utilidade foi menor. A sua reconstrução começou no século dezanove mas só ficou concluída em 1951, data em que foi de novo benzida.


OS PROFETAS

Os portosantenses ficaram célebres, e ainda hoje säo designados, por vezes de forma pejorativa, de profetas. O epiteto tem uma origem remota e tem origem no aparecimento em 1533 de um falso profeta, Fernäo Bravo, num momento em que as principais autoridades estavam ausentes da ilha. Fernäo Bravo, pastor para os lados do Farrobo, teve uma crise mística e desceu à vila apontando os pecados da sociedade e levando o povo a um excesso de fanatismo religioso por 18 dias. A chegada a 6 de Fevereiro do corregedor afugentou o profeta e a devassa que fez, até 3 de Março, levou à prisäo dos principais autores e de alguns coniventes como o clero. Como resultado disso os implicados no caso tiveram que expor-se à porta da Sé de Évora com o círio aceso e um cartaz com os dizeres - Profeta do Porto Santo, enquanto os moradores tiveram que contribuir com um donativo para os melhoramentos locais.

Numa terra martirizada pela natureza e homem o aparecimento de alguém assumindo-se como o Messias de uma nova realidade, não é difícil recrutar adeptos. Difícil é convencer o clero, mas até isso foi conseguido, ainda que por algum tempo.


BARTOLOMEU PERESTRELO E O DESCALABRO DA ADMINISTRAÇÄO DA ILHA

O governo da capitania da ilha do Porto Santo, näo foi menos estranho ao demais retrato que vimos traçando da ilha. Esta foi a primeira capitania a ser criada (1 de Novembro de 1446) e extinta (13 de Outubro de de 1770). Na verdade a evolução da estrutura administrativa foi muito atribulada e alvo de inúmeras tentativas de mudança até as mudanças operadas com o governo de D. Maria II. Assim, até à extinçäo da capitania, criando-se em seu lugar o cargo de governador, houve um interregno (1619-1653) em que o capitäo deu lugar a um funcionário nomeado pela coroa, conhecido como capitäo-governador.

A par disso, o governo dos capitäes ou dos governadores näo foi o melhor, sucedendo-se inúmeros atropelos. Esta instabilidade da estrutura administrativa é consequência e causa de idêntica conjuntura ao nível social e económico. Este foi mais um pesado fardo que sobrecarregou os portosantenses. À morte de Bartolomeu Perestrelo, certamente em 1457 ou 1458, a posse da capitania entrou num processo de derrapagem. Primeiro o problema das transacçöes ilegais da sua posse, depois as demandas entre os moradores e os capitäes. Por morte, a sucessäo da capitania fazia-se, de acordo com o preceituado na carta de doaçäo, ao filho mais velho, no caso Bartolomeu Perestrelo. Uma vez que este era menor ficou Isabel Moniz, sua mäe, como tutora. E foi nesse momento que a mesma vendeu a capitania ao seu genro, Pedro Correia, capitäo da ilha Graciosa, por trezentos mil reais. Esta mudança foi confirmada pelo infante D. Henrique (17 de Maio de 1458) e D. Afonso (17 de Agosto de 1459), mas sem outorga do legítimo herdeiro, pelo que quando ele atingiu a maioridade colocou uma demanda, conseguindo ver confirmado o direito de posse da capitania por carta régia de 15 de Março de 1473.

As dificuldades na sucessäo e as demandas pela posse da capitania continuaram no século XVI. Bartolomeu Perestrelo, terceiro de nome e na posse da capitania por questöes amorosas matou Aldonça Delgada, sua mulher, pelo que lhe foi movida perseguiçäo pelos capitäes do Funchal. No processo que correu ele saiu ilibado e retornou para o Algarve, deixando a capitania. Depois disso surgiu de novo outra demanda com os filhos da segunda mulher e o neto do seu filho varäo. A coroa resolveu tudo a favor do dito neto, Diogo Soares, confirmado por carta régia em 29 de Maio de 1545. Por sua morte a capitania passou em 1576 para as mäos de Diogo Perestrelo, que näo obstante ser considerado por Gaspar Frutuoso como "bom cavaleiro, brando e de boas artes", acabou perdendo a capitania em 1606 por ter sido adepto de D. António Prior do Crato e pelas inúmeras vexaçöes aos moradores da ilha, como cobrança de tributos ilegais. Em seu lugar foi nomeado um loco-tenente, Joäo de Ornelas Rolim, e, em 1619, foi criado o cargo de capitäo-governador, sendo provido Martim Mendes de Vasconcelos.

A capitania ficou reestabelecida em 1653, sendo esta uma forma da coroa premiar os serviços de Vitoriano Bettencourt Perestrelo. Todavia esta situação durou pouco tempo, uma vez que em 1770 a coroa retirou-lhes todos os poderes. Para o seu lugar foi criado o cargo de governador, sendo provido Nicolau Bettencourt Perestrelo. Mais uma vez esta nova estrutura institucional continuou a gerar inúmeros problemas aos moradores.

Na verdade o mal näo estava nas instituiçöes, mas dos homens. A prepotência e a violência foram de novo sentidas no governo de Manuel Nobre de Figueiroa e Joäo Baptista Roffe.

A MADRASTA NATUREZA

A ilha manifestou-se, desde o início do seu povoamento, desfavorável à presença de colonos europeus. O entusiasmo inicial, desfez-se, näo apenas pela acçäo depredadora dos coelhos, mas também pelas condiçöes inóspitas do meio. A falta de água e, por consequência, de um parque florestal adequado, condicionaram a sobrevivência dos seus habitantes, gerando uma extrema dependência da vizinha ilha da Madeira.

Segundo Valentim Fernandes não foi apenas a praga dos coelhos que levou Bartolomeu Perestrelo a abandonadonar a ilha em 1419, mas também "näo haver água na dita ilha senäo salobra". E, adianta mais, que no ano imediato, ao regressar de novo à ilha, confirmou-se a impossibilidade de um franco progresso como na Madeira, "por näo haver águas e a terra em si ser estéril". Joäo de Barros reforça essa ideia afirmando que as dificuldades surgidas aos primeiros povoadores são o resultado da praga dos coelhos e o facto de "näo haver nela ribeiras de regadio para as fazendas dos moradores". Gaspar Frutuoso em finais do século XVI reafirma esta triste realidade dizendo que a ilha "näo tem boas águas por ser seca e de pouco arvoredo". Na verdade, ontem como hoje, uma das principais dificuldades que afrontou os portosantenses é a falta de água: as chuvas poucas e os mananciais de água salobre incapazes de satisfazer as necessidades agrícolas e caseiras. Os poucos mananciais de água e fontes eram devidamente guardados e local de assídua peregrinação. Assim sucedeu com a Fonte da Areia, uma das poucas de água salobre. Ela dominava o quotidiano da ilha, sendo para lá que se dirigia o principal caminho que saia da vila. Também a Câmara interveio na defesa desta fonte, tendo estabelecido um vigia.

Desde o século dezanove insistiu-se na necessidade de resolver este problema com o recurso aos mais diversos meios. Para além da insistência no plano de rearborizaçäo da ilha, apostou-se em algumas formas de aproveitamento dos poucos mananciais de água. Em 1709 Francisco Alincourt no seu relatório sobre o estado da ilha refere a existência de 13 nascentes na ilha, o que era parco para as necessidades da ilha, tendo em conta que "quase todas iam desaguar no mar". Por isso uma das soluçöes para os problemas hídricos da ilha estava na construçäo de noras. A primeira nora que temos notícia só surgiu em 1799 no sítio das Eiras. No arquivo da câmara encontra-se um livro de escalas de rega. Aí são referenciados duas levadas e dez poços, que serviam 280 heréos. Foi, todavia, a partir de 1854 que se generalizou o uso das noras. Um alvará concedia aos lavradores empréstimos para "o descobrimento de água de regadio", tendo-se construído oito noras.

Vinte anos após foi feito um estudo sobre as possibilidades de irrigaçäo da ilha, de que resultou em 1889 o plano de uma levada entre o Pico do Facho e o sítio da Camacha afim de irrigar a área vitícola. A estas vieram juntar-se depois outras como as do Tanque, Matas, Língua de Vaca, Ribeiro Salgado e Ponta. Na actualidade as carências hídricas são colmatadas com o recurso a uma central dessanilizadora e a represas para captaçäo de águas pluviais. Esta política é herdeira do plano de fomento agrícola e florestal levado a cabo a partir de 1951.

A par desta procura directa de soluçöes para resolver a falta de recursos hídricos é de realçar a aposta no plano de rearborizaçäo da ilha. A falta de arvoredos na ilha näo é apenas resultado da intervençäo do homem, mas acima de tudo das condições do eco-sistema. Note-se que já nos primórdios do povoamento da ilha era evidente esta carência. Valentim Fernandes refere a existência do mesmo tipo arvoredo que havia na Madeira, mas näo em tanta abundância. Para Gaspar Frutuoso as principais matas estavam no norte da ilha, mas mesmo assim considera-a de "pouco arvoredo". Ambos os autores realçam a abundância de dragoeiros, que tiveram um importante valor económico nos primeiros anos. Hoje está praticamente desaparecido e a sua memória é apenas recordada no Ilhéu dos Dragoeiros e nas armas da vila.

Perante isto foi insistente a actuaçäo das autoridades na defesa da parca floresta. Primeiro foi o plano de Francisco de Alincourt que levou o rei D. José I em 1770 a obrigar todos os lavradores plantarem árvores, nomeadamente entre figueiras nas testadas das suas terras e ribeiras. A mesma ideia é repetida nas posturas de 1780, enquanto em 1796 estava proibido o corte de qualquer árvore sem licença da Câmara. Compulsadas as posturas municipais é evidente esta preocupação por parte das autoridades.

Perante estas dificuldades colocadas ao corte de madeiras o portosantense deparou-se com muitas dificuldades para suprir as suas carências de lenhas e madeiras. Por isso o alvará de 1770 concedia-lhes o privilégio de as importar da Madeira, nomeadamente das serras do Faial e Porto da Cruz. Em 1834 procurou-se soluçöes alternativas na ilha com a cultura da tamargueira, que se tornou no principal combustível. A par disso procurou-se repovoar a ilha de espécies arbóreas, plano iniciado em 1911 e prosseguido em 1952 por impulso de António Bon Schiappa de Azevedo. Por fim acrescente-se que esta insistente falta de lenhas e madeiras levou os portosantenses a socorrerem-se das que davam à costa. Ainda hoje é possível encontrá-las em algumas casas antigas.


A SECA E A FOME

As situaçöes atrás referidas levam-nos inevitavelmente a uma visäo catastrófica do quotidiano da ilha do Porto Santo, resultado das prolongadas estiagens, que se sucedem com frequência nos séculos dezoito (1702, 1711, 1715, 1723, 1749, 1751, 1769-70, 1779, 1783) e dezanove (1802, 1806, 1815-16, 1829, 1847, 1850, 1854, 1855, 1883). A mais antiga referência que temos a uma seca prolongada data de 1589, ano em que foi necessário enviar o gado para a ilha da Madeira, por falta de pastagem. O mesmo sucedeu em 1783 tendo o governador da Madeira recomendado aos agricultores de Machico, Santa Cruz e Porto da Cruz que recebessem o gado até Setembro.

Perante este espectáculo o aparecimento de chuvas era sempre saudado, mas também considerado com apreeensão, pelos efeitos catastróficos que podiam causar. Os Anais registam três anos- 1842, 1857 e 1859- em que a população sofreu com os danos causados pelas chuvas nas casas, na sua maioria cobertas de barro. Para as que caíram nos dias 18 e 19 de Dezembro de 1859 o cronista exclamava que não havia "notícia de tanta chuva acompanhada de ventos tão fortes nesta ilha".

A merecer registado à parte está a queda de neve a 4 de Fevereiro de 1860. Os montes e os vales cobriram-se deste manto branco, perante a estupefacção de todos. Os Anais rematam: "caso virgem entre este povo".

Em 1770 a situaçäo do Porto Santo era caótica. Desde 1769 que o governador Sá Pereira vinha considerando-a como resultado do mau governo a que estava entregue. O lamento da Câmara da ilha, em 15 de Maio, era dramático: as areias quase haviam coberto todas as áreas de cultura e a falta de chuvas tornava impossível qualquer colheita. Como consequência disso as gentes tinham abandonado a sua ilha, tendo já saído cerca de 50 vizinhos. O pedido era apenas para acudir à afliçäo em que se encontravam os poucos resistentes, pois, caso contrário, a ilha estava no grave risco de despovoar-se. O governador madeirense enviou o sargento-mor Francisco d'Alincourt à ilha com o objectivo de fazer o ponto da situaçäo. O primeiro relatório é um pedido de socorro de trinta moios de milho para serem distribuídos pela Câmara, valor considerado insuficiente se considerarmos que na ilha viviam 866 habitantes, necessitados diariamente de 2 moios, 13 alqueires e 1/4. Ora se considerarmos a colheita estimada em 760 moios dava apenas para cinco meses, ficando nos demais sujeita as remessas de fora. O projecto apresentado em 9 de Junho de 1769 por Francisco Alincourt para resolver a crise com que se debatia a ilha incluía medidas drásticas, como a reduçäo dos habitantes para apenas 300, mas que fossem trabalhadoras, evitando-se por todos os meios o ócio e o luxo. Mas a crise continuou no decurso do ano seguinte, altura em que foram tomadas algumas providências pela coroa, de acordo com esse relatório. Assim para além da extinçäo da capitania, a coroa criou condiçöes para que os poucos habitantes da ilha se dedicassem à labuta da terra e aprendizagem dos ofícios. Para isso foi nomeado um inspector geral da agricultura da ilha, cargo que foi entregue ao capitäo Pedro Telo de Menezes. Todavia ele näo conseguiu solucionar os graves problemas da ilha, pois, segundo alguns, dedicava-se apenas à caça de pombos e perdizes.

A incapacidade do homem em rodear este problema persistiu até à actualidade. E, tal como refere A. F. Gomes, o portosantense estava condenado a esse triste destino: - "Num ano mais noutro menos, a estiagem, porém, era certa. Näo chovia. Secavam as fontes, chorava o povo. O gado morria. Lastimava-se amargamente os lavradores, e as autoridades nada podiam fazer. É entäo que esgotadas todas as impetraçöes aos homens da governaçäo soltavam-se as almas aflitas para Deus. Faziam-se preces na igreja paroquial de manhä e à tarde, e o templo enchia-se de fiéis. O pároco numa prece cheia de emoçäo, implorava a misericórdia divina - e as lágrimas corriam nas faces queimadas dos portosantenses".

A ilha foi, insistentemente, martirizada pelo espectro da morte no decurso do século XIX. A seca permanente, só quebrada com as ocasionais tempestades de meados do século, provocou na ilha uma situação de calamidade. A fome foi uma constante, sendo de salientar os momentos de maior aflição dos anos de 1802, 1806, 1815\16, 1823,1829,1847\50. Os socorros vindos da Madeira ou de outras partes, eram quase sempre escassos e todas as soluções inventariadas para debelar a crise não surtiram efeito. Por isso muitos saíram esfaimados para a Madeira ou outras paragens à procura de pão, que a sua terra lhes negava. Em 5 de Fevereiro de 1855 foi necessário fazer uma subscrição pública para pagar o frete do transporte de 60 trabalhadores para a Madeira.

Ao espectro permanente da fome veio juntar-se outras situações que agravam o sofrimento do portosantense. Algumas enfermidades, como as bexigas(1859), colera-morbus(1856), febre escarlatina(1857), alargaram a chaga do sofrimento desta gente.

Por fim até o vinho, um dos raros recursos da ilha, também sucumbiu em 1852 pelo ataque do oidium aos vinhedos.


PIRATAS E CORSARIOS

Uma das dominantes da História da ilha do Porto Santo é a vulnerabilidade aos assaltos de piratas e corsários. A extensa praia, que hoje é um dos principais atractivos da ilha, foi, durante cinco séculos, um dos principais entraves a uma adequada salvaguarda de pessoas e haveres da investida de qualquer intruso. Estas dificuldades naturais, associadas ao pouco empenho das autoridades em delinear um sistema de protecçäo e defesa capazes, levaram a que a ilha fosse um campo aberto para estas investidas.

Gaspar Frutuoso faz eco desse quase total abandono a que estavam sujeitos os portosantenses. Segundo ele o próprio capitäo, a quem incumbia a defesa, residia na Calheta e só no período estival, "por ser tempo de corsários franceses, que muitas vezes a saqueäo", ia à ilha onde a defendia "mui valorosamente". Mesmo assim no período de Diogo Perestrelo, conta o historiador das ilhas, o Porto Santo foi saqueado por três.

Do século XV ao XVIII os anais da História registam inúmeros assaltos que marcaram o quotidiano atribulado dos portosantenses: a incerteza pela segurança de haveres, os atropelos ao culto religioso com as profanaçöes, o permanente temor da presença na linha do firmamento de algum veleiro.

Esta insegurança e temor, manifestados já no século XV, provocou a má recepção a Colombo em 1498, no decurso da terceira viagem. O aparecimento da imponente frota foi o prenúncio de mais uma razia de piratas: ninguém sonhava com Colombo, para todos eram os franceses que estavam de novo de volta. Todavia nesta época näo se conhece nenhum assalto francês, sendo o único assalto desta centúria realizado na década de 70 por iniciativa dos castelhanos.

Os franceses chegam, e em força, no século seguinte e continuaram nos seguintes. O primeiro assalto deu-se em 7 de Junho de 1550, tal como o descreve em carta de Joäo de Brito ao rei, no ano de 1552. Depois foi o assalto de 1566 à Madeira, que havia começado no Porto Santo. Mais tarde, em 1590 e 1690, tivemos outras duas investidas de franceses que incendiaram a igreja matriz e algumas habitaçöes.

O maior e principal terror dos portosantenses foi, sem dúvida, os piratas argelinos, que até 1827 continuaram a ser o principal perigo para a ilha e mares circunvizinhos. Para a História ficaram célebres dois assaltos - em 1600, 1615 e 1617 -, que levaram ao quase total abandono da ilha. Os assaltos de 1600 e 1615 näo se comparam ao de 1617.No caso do segundo valeu-lhes o pronto socorro enviado da Madeira sob o comando de Manuel Dias de Andrade.

O ano de 1616 preludiava um novo momento de aplicaçäo para as gentes insulares, que se tiveram que haver de novo com estes algozes. Em Junho os argelinos atacam a incauta ilha de Santa Maria e, a partir daí, sucederam-se os avisos às demais ilhas, que nunca chegaram ao Porto Santo, a próxima vítima.

A Câmara e demais autoridades do Funchal, avisadas, tomaram as devidas precauçöes em Julho de 1617, näo avisando os portosantenses disso, pelo modo que eles foram apanhados de surpresa, na terceira semana de Agosto, com a armada de 8 navios. Mesmo assim o sargento-mor Joäo de Viveiros resistiu dois dias, faltando-lhe depois meios humanos e materiais para poder resistir mais tempo. Como resultado foi a razia quase total da vila e cerca de 900 cativos. A ilha ficou quase deserta e, segundo A. A. Sarmento, só conseguiram escapar à fúria dos assaltantes 18 homens e 7 mulheres. A isto seguiu-se uma acçäo concertada por parte da Mesa de Consciência e Ordens para providenciar do necessário resgate.

Os corsários berberiscos, em termos dos cativos, tinham interesse especial pelas mulheres e crianças, enquanto nos despojos interessavam-se pelos mantimentos, de que muitas vezes careciam, e na sua violência procuravam destruir a memória colectiva de uma tradiçäo que era preciso quebrar. Tudo isto porque o seu périplo era considerado uma continuidade de jihad: apagar nos cativos a imagem do passado religioso e procurar trazê-los à religiäo do profeta. Por a cobiça pelo sexo feminino, resulta fundamentalmente da necessidade que delas havia para alimentar os haréns.

Por cativos refere-se quase sempre a sua espera pelo ambicionado resgate mas ignora-se como isso se fazia e o que sucedia se este nunca chegasse. Sabemos já que a maioria dos cativos dos peninsulares eram feitos escravos, sendo raros os casos do seu uso como troca pelos cativos cristäos. Mas, dos que aí foram cativos ou levados pelos corsários, o destino foi diferente. Duas hipóteses se lhes oferecia:

1. perpetuar o cativeiro até à morte, mantendo-se sob a condiçäo de escravo;

2. aguardar o pagamento do resgate por parte dos familiares ou de instituiçöes para o efeito criadas.


Quanto à primeira é de referenciar que a exemplo do que sucedia nos reinos cristäos, os cativos havidos da jihad (guerra santa) ou do corso eram considerados escravos, desde que fossem pagäos e descrentes. Todavia o cativo tinha os seus direitos, sendo-lhes facultada a possibilidade de alcançar a liberdade antes de ser lançado no mercado dos escravos. As cidades tinham espaços de acolhimento dos cativos enquanto aguardavam este momento.

O principal empenho dos árabes estava no volume de resgate alcançado com a libertaçäo do cativo e näo, a exemplo do que sucedia com os cristäos, no usufruto dos seus serviços como escravo. Talvez se torne por aqui compreensível o natural espírito de revolta daqueles mouriscos feitos escravos: eles nunca se conformaram com isso expressando-o na violência, fuga aos seus sentimentos. Mouriscos, na Madeira ou nas Canárias, foram quase sempre sinal de perigo e violência, daí o apertado espaço de convívio social estabelecido pelas posturas.

Diferente era o destino do cristäo feito cativo. A sua passagem à condiçäo de escravo era tardia e só tinha lugar quando se esgotavam as vias do resgate. Note-se que por vezes concedia-se a liberdade a um deles que regressava à sua terra com o objectivo de conseguir o valor estabelecido para o resgate. A par disso existiam os alfaqueques, isto é, os encarregados de negociar o resgate dos cativos. Em 1442 Martim Fernandes estava incumbido dessas funçöes ao serviço do infante D. Henrique.

O preço do resgate era estabelecido pelo detentor do cativo, de acordo com a sua condiçäo social e posses económicas. Aqui, o que contava era o seu património deixado algures e a solidariedade dos seus, nunca a idade ou capacidades físicas, principais aferidores do mercado escravocrata. Deste modo os mouriscos submetiam todos os cativos a um demorado interrrogatório para saber das suas reais condições económicas.

A premência desta realidade levou a coroa a estabelecer uma estrutura de apoio para a libertaçäo dos inúmeros cativos das praças africanas. Desde 1484 existiu no Funchal o cargo de memposteiro-mor dos cativos, que tinha a superintendência das esmolas para o resgate dos cativos. Era comum no século XV pedir-se esmola para o resgate de cativos, pelo que a coroa estabeleceu esta estrutura para coordenar estas dádivas e outras estabelecidas por testamento ou penas pecuniárias estabelecidas nas posturas municipais.

A situaçäo criada com os assaltos às ilhas de Santa Maria e Porto Santo, respectivamente em 1616 e 1617, levou a coroa a intervir, assumindo a Mesa da Consciência e Ordens a liderança das negociaçöes para libertar os cativos. Tudo isto porque estávamos perante cativos de "tenra idade", havendo perigo "de puderem deixar a fé como alguns iam deixando". Nesta guerra santa prevaleceram sempre os interesses de uma religiäo oficial e à custa dela campeou, por vezes, a violência.

O portosantense esteve sempre exposto às ameaças dos piratas e corsários, faltando-lhe armas pessoais e um concertado plano de fortificaçäo e defesa. Tudo isso era resultado da falta de meios financeiros, devido à extrema pobreza em que estava envolta a ilha näo permitia isso. Além disso o assalto de 1566 ao Funchal fizera incidir todos os espaços para o relançamento do plano de defesa da cidade. Perante isto restava apenas a possibilidade de uma efémera resistência ou uma fuga para os locais mais recônditos da ilha. A tradiçäo refere alguns deles como as grutas dos homiziados e do Porto do Eiró. A par disso o Pico do Castelo foi considerado uma fortaleza inexpugnável e o principal refúgio das populaçöes em fuga. Este espaço só foi preparado como recinto defensivo depois deste assalto de 1617 existindo desde 1624 o cargo de condestável do Castelo do Pico.

Nos "Anais do Município" de 1850 refere-se a existência do referido pico "umas boas casas, com paiol, casinha e forno, e uma boa cisterna, e além de três ou quatro peças montadas. Aqui faziam os habitantes, anualmente, nos primeiros tempos, um depósito de biscoito, e enchiam a cisterna de água (...). Era este Castelo o ponto e refúgio, para onde se retiravam os habitantes, quando eram assaltados pelos argelinos e piratas franceses...".

Opiniäo idêntica tem Álvaro Rodrigues de Azevedo em 1873, afirmando que a fortaleza do Pico do Castelo "era mais um refúgio que uma praça", pois o pico apenas se defende "por íngreme e pedregoso, que só com as pedras em que abunda, se defende, e por isso a expediçäo era mais hospitaleira que de guerra".

A primeira fortaleza na vila, o forte de S. José foi construído no tempo do Marquês de Pombal. Este novo plano foi estabelecido em 1769 por Francisco Alincourt, que preconizava a defesa da praia com duas vigias do Pico do Castelo.


COM O SUOR ARRANCADO DA TERRA

No parco espaço da ilha a área agrícola é diminuta, mas esta pequenez mais se acrescenta se tivermos em conta que a indisponibilidade de água tornava difícil definir uma vocaçäo agrícola para esta ilha. Apenas algumas culturas de sequeiro poderiam medrar. E mesmo estas tiveram poucas possibilidades em termos de uma economia de exportaçäo, mesmo nos domínios de cerealicultura.

As condiçöes do eco-sistema näo possibilitaram culturas com alto valor mercantil, como a vinha e cana de açúcar, mas apenas uma aposta na cerealicultura que dominava uma economia de subsistência. Aliás as primeiras dificuldades surgiram já no século XV, sendo também resultado da praga dos coelhos. Segundo Zurara os ditos coelhos "empacharam a terra, de guisa que näo podiam semear nenhuma cousa". Mais tarde regressou Bartolomeu Perestrelo à sua ilha e de novo "näo se pode em ela fazer lavoura". E, de acordo com Zurara, cerca de 1446, na ilha só se podia criar gado e aproveitar o sangue de drago, que parece ter existido em abundância. Todavia Cadamosto, nove anos depois, é de opiniäo diferente, referindo que a ilha "produz trigo e cevada para seu consumo". Esta ideia é corroborada, em 1506, por Valentim Fernandes e, em 1567, por Pompeo Arditi, o último näo hesita mesmo em afirmar que a ilha é "muito fértil em trigo e aveia".

Num documento de 1559, em que os moradores do Porto Santo se manifestaram contra a revenda do seu cereal na Madeira, reafirma-se a aposta da ilha na cerealicultura. Esta medida é considerada danosa "por näo terem na dita ilha outra lavoura alguma nem de que viväo salvo trigo cevada centeo de que compraväo todalas cousas para seu repairo de suas pesoas e familia". Deste modo era com o cereal que os portosantenses adquiriam na Madeira os demais produtos de que necessitavam para o seu dia a dia. Isto demonstra uma aposta preferencial neste produto, a que näo deverá ser alheio a uma dinâmica de economia de troca. Aliás a ilha, no decurso do século dezasseis firmou-se como uma especial preferência à cultura da cevada que, entäo, adquiria uma importância fundamental por ser o alimento dos cavalos. Neste sentido o Porto Santo afirmou-se como um destacado centro produtor de cevada: as estrebarias reais receberam, no período de 1527 a 1561, 354 moios e 57 alqueires de cevada.

Em finais do século dezasseis Gaspar Frutuoso insiste na elevada fertilidade do solo da ilha: um moio de semeadura dava 60 de colheita. Neste caso o autor realça as terras do norte no local das Areias, onde dá conta de muito centeio e trigo", näo obstante as terras estarem adequadas para a cevada e centeio.

Foi curta a dominância da cerealicultura na ilha do Porto Santo, pois a partir do século dezassete sucedem-se inúmeras dificuldades havendo mesmo que buscar socorro na Madeira para a manutenção das suas gentes. Note-se que mesmo no século XVI houve momentos de dificuldade na cultura de cereais, quando a seca apertava. Assim sucedeu em 1528 como se pode verificar da explicaçäo apresentada para que näo fosse paga a tença de Manuel de Noronha, em 20 moios de trigo e cevada. O mesmo ocorreu em 1552, pois o capitäo Diogo Enes Perestrelo comunica ao rei a impossibilidade do envio de 300 moios de cevada por a seca ter destruído as searas. Maiores dificuldades surgiram no século XVII, tornando-se necessária a vinda de cereal da Madeira, como sucedeu em 1675 e 1683.

No século dezoito confirma-se a perda irremediável desta parca fonte de riqueza, que foi a cerealicultura. Para o Padre Carvalho da Costa na Corografia Insulana (1712) a ilha caminhava a passos largos para a desertificaçäo e abandono dos poucos habitantes. Como responsáveis disso ficaram as areias que avançavam ameaçadoras sobre os terrenos de cultura, a seca e as ameaças de piratas e corsários.

Como corolário disto tivemos em 1774 o "regimento da agricultura" a estabelecer um controle sobre a vida agrícola da ilha, no sentido de obviar as dificuldades que começavam a ser evidentes. No caso dos cereais o regimento, para além de estabelecer inúmeras recomendaçöes sobre a sua cultura, proibia a saída de qualquer cereal para fora. A razäo disso é clara: - "E porque por muita que seja a abundância nas searas, pela maior parte nunca, calculando o número dos moradores desta ilha, chega a abrir o seu precioso sustento, além do que acontece ser muitas vezes, necessário, deitar à terra segundas sementes, por se haverem perdido as primeiras, para obviar hum e outro dano".

O relatório sobre a ilha do Porto Santo elaborado em 1769 por Francisco Alincourt ia ao encontro desta realidade, sendo já evidente a extrema dependência da ilha dos fornecimentos do exterior. Assim os cerca de 167 moios de cevada, trigo e centeio, semeados davam apenas para o sustento das suas gentes por cinco meses.

O solo da ilha ia em progressivo estado de degradaçäo mercê da invasöes das areias, tornando irremediável o abandono das culturas. De acordo com os Anais em 1848 "as terras rendiam cada vez menos, os suportes térreos estäo destruídos, ninguém os repara, a erosäo é grande, näo há pastos para o gado e quase nada cresce".

Da vivência da cerealicultura no Porto Santo restam alguns vestígios materiais: as eiras, os moinhos de vento e as matamorras. Elas säo uma herança mourisca e foram usadas para guardar o cereal e demais haveres da cobiça dos piratas argelinos e do sequestro. Elas eram abertas no chäo das casas ou em espaços abrigados e recônditos.

Para o fabrico da farinha, uma vez que no Porto Santo os cursos de água eram parcos socorria-se muito dos moinhos de mäo, atafonas e, depois a partir de 1603 os moinhos de vento, que hoje, ainda, dominam a paisagem.

No início funcionou uma azenha do capitäo que a partir do século XVII, por falta de água foi substituída pelas atafonas e moinhos de vento. Das primeiras no século dezasseis säo referenciadas duas atafonas e uma ordem régia para a construir um engenho. Foi a atafona que dominou todo o sistema de fabrico da farinha até ao século dezanove, altura em que começou a generalizar-se o uso do moinho de vento, näo obstante ter-se apostado em 1814 num moinho de água. O primeiro moinho de vento terá sido construído em 1792, por iniciativa da Câmara, no sítio das Matas. Mas foi a partir de meados do século dezanove que se generalizou o seu uso, passando a serem uma dominante na paisagem.


A VINHA E O VINHO

É muito provável que os primeiros colonos, quando iniciaram a ocupaçäo da ilha, tivessem plantado algumas videiras, como foi, aliás, hábito em todo o espaço português. Mas o solo näo foi, de certeza, propício a isso, pois os primeiros cronistas são omissos quanto a esta cultura. Somente Gaspar Frutuoso, em finais do século XVII, refere apenas nas proximidades da vila "muitas vinhas, que däo muito boas uvas". Todavia Leonardo Torriani, na mesma época, refere a existência de uvas, "de que por serem poucas se näo faz vinho".

Por muito tempo a videira acompanhou o íncola quase no esquecimento e foi pouco, para não dizer nulo,o empenho por parte das autoridades em promover a sua cultura. Note-se que no regimento para a agricultura da ilha em 1774 esta só era permitida em terrenos impróprios para a cerealicultura. Passados dez anos, em finais deste século, a intençäo era de promover a cultura, tendo-se enviado alguns bacelos para o inspector de agricultura, Pedro Tello de Menezes, que se apropriou de todos para as suas terras.

Hoje as castas mais usuais säo a tinta do Porto Santo, moscatel, boal e listräo, com um uso dominante como uva de mesa. Mas estes bagos tostados pelo sol também davam um vinho de elevada graduação alcoólica, para gáudio dos residentes e veraneantes.


OUTRAS CULTURAS

As dificuldades de garantia do suplemento económico que garantisse a sobrevivência levaram as suas gentes a uma procura insistente de novas fontes de riqueza ou ao ensaio de novas culturas. Assim o íncola esquecia todo o perigo e lança-se nos rochedos mais ingremes à procura da urzela. As notícias assíduas da morte de alguns incautos não intimidava estes apanhadores do líquen.

A par disso em 1857 fez-se os ensaios para a plantação de sorgo de açúcar. C.Smith viu as suas sementes frutificaram, anunciando-se esta, segundo os Anais, como "um grande ramo de receita para os lavradores". No ano imediato o lavrador João José Lomelino plantou uma pequena porção de sorgo. Todavia a sua expansão estava condenada por falta de engenhos e alambiques.


O GADO

A ilha, pelas condições do clima, não oferecia grandes possibilidades de aproveitamento pecuário. Note-se que por diversas vezes, em razão da seca, o gado teve que ser transferido para a Madeira, ou então morria de fome. Todavia a sua presença era imprescindível, que mais não seja pela sua utilidade nos trabalhos agrícolas.

As dificuldades permanentes na manutenção do gado miúdo nas serranias levou à sua total extinção, de modo que em 1706 os bardos estavam totalmente destruídos. A aposta estava quase limitada ao gado vacum, pelo uso nos serviços agrícolas, como o estabelecia o regimento de agricultura.


OS DONS DA NATUREZA

Em muitas situaçöes históricas a natureza revela-se madrasta, mas nem tudo foi igual, pois há nela sem alguns dons para presentear o täo martirizado portosantense. No início, foi o usufruto das potencialidades económicas do dragoeiro, a principal planta que acolheu os portugueses no século XV. Depois, o aproveitamento das riquezas piscícolas e minerais. No último caso, isso deu o nome a um ilhéu - o Ilhéu da Cal. A aposta nos recursos minerais da ilha levou a Câmara a abrir em 1882 um livro para o registo de minerais.

O primeiro recurso que mereceu a atençäo dos navegadores portugueses foi o dragoeiro. A sua presença na ilha deveria ser abundante, a darmos crédito ao que se referem Cadamosto, Valentim Fernandes, Jerónimo Dias Leite e Gaspar Frutuoso. Aliás essa abundância terá dado o nome a um ilhéu - o Ilhéu dos Dragoeiros. Uma das principais utilidades resultava da extracçäo do sangue de drago, muito usado na tinturaria, no que foi uma importante fonte de rendimento económico.

A exploraçäo da cal adquiriu alguma importância na vida económica na ilha, tendo como finalidade colmatar a sua falta na ilha da Madeira nas diversas campanhas de fortificaçäo e de construçäo de igrejas. A o filão da cal estava no ilhéu de baixo. No livro de Minas, estabelecido pela portaria de 2 de Abril de 1868, registam-se duas de manganês, três de ferro, uma de alúmen e uma de traquite. Além disso registam-se duas nascentes de água mineral e no ilhéu de Baixo cinco de pedra calcaria. Noutro livro de licenças para exploração de pedreiras surgem, entre 1895 e 1916, quarenta e cinco licenças para a exploração da cal no ilhéu de Baixo e apenas uma no ilhéu de Cima.

No início o aproveitamento da pedra de calcário era livre, ficando apenas o capitäo com o dízimo, conforme o preceituava a carta de doaçäo da capitania. Todavia em 1769 a extracçäo era feita pela família do sargento-mor, que a considerava propriedade sua, passando desde 1770 para a posse da Câmara que, desde 1859, passou a usufruir do direito de 300 reis por tonelada de cal entrada na alfândega funchalense. Para além disso os barqueiros que transportavam a cal até ao Funchal estavam obrigados no regresso a trazer lenha. Os barqueiros de Santa Cruz e Machico näo acolheram de bom agrado esta medida, mas ao serem colocados em 1834, perante o aumento do direito da barcada de cal, como medida de represália, foram obrigados a aceitar.

Outro recurso utilizado pelos portosantenses foi o barro, usado no fabrico de telha e louça, ou na purga do açúcar. D. Manuel por provisäo de 1502 concedeu aos oleiros inteira liberdade para extraírem o barro sem qualquer impedimento dos donos da terra. Em 1870 referem-se duas olarias.

O sal foi também um dos recursos possíveis nesta ilha mas nunca teve o desenvolvimento desejado. O sal era extraído do Ilhéu de Fora e em algumas marinhas da costa norte. Aliás existe mesmo um sítio designado de salinas, onde se iniciou em meados do século XIX.Os Anais referem apenas as salinas da vila, propriedade de Izidoro da silva, do Funchal, "das quais ele não tem tirado grandes lucros".

Do mar também era possível extrair outros recursos imprescindíveis à dieta alimentar do protosantense,podendo este ser uma compensação para a madrasta natureza, tendo em conta que a terra era parca em recursos. Valentim Fernandes refere ser a ilha rica em peixe. Todavia tirou-se pouco partido deste recurso, pelo que se importava muito peixe salgado, como arenque, salomäo e bacalhau. Para isso contribuía o pouco empenho dos pescadores.

Em 1783 pretendeu-se criar uma associaçäo de pesca com o intuito de renovar a frota, mas os pescadores retorquiram com a falta de peixe. Entretanto o comprador que havia obrigado um arrais a ir pescar, foi confrontado com tanta abundância que teve de enviar algum para a Madeira. O Corregedor acusa a inércia destes pescadores, referindo que enquanto durar o dinheiro de uma pescaria näo regressavam ao mar. Entretanto em 1769 Francisco de Alincourt aponta a necessidade de guarnecer os barcos para a pesca, bem como a possibilidade da pesca à baleia, capaz de grangear elevados recursos. Esta seria uma forma de arruinar as actividades rentáveis e de abastecer a Madeira de peixe salgado.

Um dos mais ricos dons da natureza, que muito tem favorecido a ilha nos últimos decénios, é a praia. O extenso areal dourado faz desta ilha um lugar aprazível para os banhos de mar, tornando-se por isso na estância balnear dos madeirenses. Note-se que nos Anais do Município, datados de 1862, é já referida a atracçäo dos estrangeiros pelas praias e os seus efeitos terapêuticos.


HONRAS E GLORIAS DO PORTO SANTO

Ao Porto Santo pertencem dois momentos memoráveis na História do nosso arquipélago com implicaçöes na História do Atlântico. Em primeiro lugar a ilha emerge como a primeira área portuguesa no Atlântico, sendo assim um marco importante na gesta quatrocentista, depois a ela está ligado um dos mais importantes acontecimentos da expansäo europeia - a descoberta da América por Colombo -, pois terá conhecimento da existência de terras a Ocidente e preparou o seu arrojado projecto. Acresce ainda que a mesma protagonizou um papel importante na navegaçäo no Atlântico, sendo a sua referência constante nos roteiros das caravelas como uma prova da rota segura. Aliás refere-se que, antes da ocupaçäo portuguesa, ela foi uma escala importante para o apoio das viagens castelhanas às Canárias. Aí as barcas andaluzas tomavam a água e faziam carnagem, que no dizer de Valentim Fernandes - deveriam ser das cabras e bodes aí deixados por Robert Machim.

O Porto Santo foi a primeira experiência portuguesa no novo espaço atlântico que, por razöes óbvias, näo foi um bom prenúncio para este processo. O desastre ecológico provocado pelos coelhos prejudicou o primeiro assentamento: as necessárias e verdejantes searas desapareciam ao brotar da terra pela voracidade dos coelhos recém-chegados. Deste modo aquilo que se perspectivava como uma primeira pedra do promissor reduto português do atlântico, parecia estar malfadado.

Neste retrato tenebroso e de esquecimento um facto levou a que o nome desta ilha ficasse gravado em letras douradas nos anais da História Europeia. Bastou apenas o navegador ter-se enamorado de uma filha do capitäo do donatário e, atraído pelos relatos da sua esposa, ter vindo procurar refúgio no Porto Santo, para as difíceis iniciativas comerciais e marítimas da época quatrocentista. Assim, Colombo, por algum tempo, alheou-se da vida do mar, do trato do açúcar e acompanhado pela sua mulher deambulou pelas ilhas do Porto Santo e Madeira.

O texto de Frei Bartolomé de Las Casas é bastante explícito quanto a esta questäo: "asi que fuese a vivir Cristobál Colón a la dicha isla de Puerto Santo, donde engendró al dicho su primogénito heredero, D. Diego Colón, por ventura por sola esta causa de querer navegar, dejar alli su mujer, y porque alli también se habia descubierto entonces, comenzaba a haber gran concurso de navios sobre su población y vecindad y frecuentes nuevas se tenían cada dia de los descubrimientos que de nuevo se hacian. Y este parece haber sido el modo y ocasion de venida de Cristobál Colón a España y el primer principio que tuvo del descubrimiento deste grande orbe" (cap. IV, liv. I). Mesmo assim este testemunho näo fez fé para alguns autores que teimam em negar a ligaçäo do navegador à ilha do Porto Santo.

Sobre este casamento muito se tem dito no sentido de justificar a forma de concretizaçäo do enlace. Mas continuamos a pensar tal como o seu cronista, Frei Bartolomé de Las Casas, que isto foi resultado da Providencia Divina: "foi vontade de Deus levar-lhe a mulher, porque convinha ao seu projecto".

Algumas situaçöes que corporizam uma resposta cabal a esta dúvida. Em primeiro lugar é necessário ter em conta que entre os Perestrelos e Colombos havia afinidades, pois a Colombo se aponta, nos seus ascendentes, uma origem remota em Piacenza, a terra de origem do pai do seu sogro. Mas o mais importante é que a família Perestrelo era italiana, sendo Bartolomeu Perestrelo filho de Filippo Palastrelli que em 1380 trocou Piacenza por Lisboa. Assim estamos perante mais um italiano a juntar-se à numerosa colónia existente em Lisboa e que cativava com a Coroa e príncipes empenhados com o processo político do reino e dos descobrimentos: Bartolomeu Perestrelo era fidalgo da casa do infante D. Joäo e como tal contribuiu para que recebesse a o privilégio de comandar o processo de povoamento da ilha do Porto Santo, pois, ao contrário do habitualmente e referido, Bartolomeu Perestrelo näo foi navegador nem acompanhou Joäo Gonçalves Zarco e Tristäo Vaz Teixeira na gesta reconhecedora da ilha em 1419. O seu aparecimento nos anos imediatos como povoador do Porto Santo, é uma incógnita que a História teima em näo nos revelar.

Bartolomeu Perestrelo, como povoador, parece ter sido um um homem de azar, pois para além do aspecto inóspito da ilha, teve de enfrentar a praga dos coelhos. Näo obstante Valentim Fernandes refere em 1506 a façanha que teve o mesmo em conseguir das mäos do infante D. Henrique a posse desta ilha, só justificado pelo facto de o mesmo ser "homem poderoso". Mas quis o destino que a melhor fatia de terreno fosse atribuída a Joäo Gonçalves Zarco, o menos poderoso na boca deste autor. Bartolomeu Perestrelo foi também infeliz no seu relacionamento amoroso uma vez que se encontrou viúvo por duas vezes, tendo casado, respectivamente, com D. Margarida Martins, D. Catarina Furtada de Mendonça e D. Isabel de Moniz. Foi deste último enlace que nasceu Filipa de Moniz, que mais tarde veio a consorciar-se com Cristóväo Colombo.Este facto singular tem sido contestado mercê da errada relação de Isabel Moniz com família de Tristäo Vaz. Ela é filha de Vasco Martins Moniz e Joana Teixeira, as investigaçöes de Anselmo Braamcamp Freire provaram que esta era filha de Gil Aires, escriväo da puridade de Nuno Alvares Pereira e de Leanor Rodrigues, näo tendo, portanto, qualquer afinidade com os Monizes de Machico.

A remota origem italiana do capitäo deste recanto, o seu relacionamento com a principal nobreza do reino, näo devem ser alheios ao encontro e casamento da donzela, encerrada no convento de S. Domingos em Lisboa, com Cristóväo Colombo. A ascendência italiana facultara-lhe o contacto.E assim teve lugar o casamento no final de 1479. De acordo com o seu cronista, Frei Bartolomé de Las Casas, após o casamento foram viver para a Madeira e Porto Santo, onde nasceu Diogo o único filho deste enlace.

A permanência no Porto Santo e depois na Madeira, ainda que curta, possibilitou-lhe um conhecimento das técnicas de navegaçäo usadas pelos portugueses e abriu-lhe as portas aos segredos, guardados na memória dos marinheiros, da existência de terras a Ocidente. Las Casas e Fernando Colombo falam que o mesmo teria recebido das mäos da sogra "escritos e cartas de marear" e com tais informaçöes e outras que recolheu junto dos marinheiros madeirenses ganhou forma o seu projecto de também navegar por essas paragens. Por outro lado, diz-se, que o seu cunhado Pedro Correia, capitäo da ilha Graciosa (Açores) lhe dava conta de outras notícias das terras açorianas. A tudo isto se deve associar os estranhos despojos lançados pelo mar na praia da ilha, que despertavam a curiosidade dos naturais e forasteiros.

O convívio de Colombo com as gentes da ilha deverá ter sido prolongado e cordial pois em Junho de 1498, quando da sua segunda viagem, näo resistiu a tentaçäo de escalar a vila. A sua presença foi considerada, como vimos, um mau presságio pois os portosantenses pensavam estar perante mais uma armada de corsários. Mas, desfeito o equívoco, o navegador foi recebido pelos naturais da terra com grande pompa,como viria a suceder,depois,na Madeira.

Foi com este protagonismo que a ilha do Porto Santo deixou o seu nome lavrado em formato bem visível nos anais da História da Expansäo europeia.


CONCLUSÄO

O Porto Santo usufrui de um lugar relevante na expansäo atlântica, pois para além da anterioridade do seu processo de povoamento, afirma-se como um destacado ponto de referência na iniciativa de Colombo que levou à descoberta da América. Aí a ilha, representada pela família dos capitäes da ilha, protagonizou uma importante acçäo, pois foi aqui que o genovês encontrou o fundamento e o alento necessários para levar a cabo täo arrojada empresa. Este é, sem dúvida, o facto mais importante na história desta ilha que torna obrigatória a sua referência em toda a historiografia europeia e americana. Com ele o Porto Santo deixou marcada a sua presença em letras douradas nos Anais da História da expansäo europeia.

Este memorável facto em consonância com o atrás aludido definem a História da ilha nas primeiras centúrias de ocupaçäo. Do mais resta esperar o entusiasmo de algum investigador interessado em aprofundar esta realidade, compulsados os poucos documentos disponíveis. E pode ser que dai surjam factos novos capazes de atribuir-lhe um protagonismo mais activo na conjuntura sócio-político e económica do mundo insular e atlântico, que emergiu com os descobrimentos quatrocentistas.


RIBEIRA BRAVA. DE LUGAR A CONCELHO

ALBERTO VIEIRA

A História:definição

" Pai, diga-me lá para que serve a História. Era assim que um rapazinho meu próximo parente interrogava, há poucos anos, um pai historiador.(...)Pois não imagino, para um escritor, elogio maior que o de saber falar, no mesmo tom, aos doutos e aos escolares." Marc Bloch, Introdução à História, Lisboa, 19 p.

Foi desta forma que Marc Bloch iniciou em 194 o seu bíblico estudo sobre a História. Todo ele encerra uma opção de humildade, que muitas vezes não é apanágio do Historiador. A preocupação da cientificidade leva-nos, muitas vezes, a esquecer o objectivo final da nossa missão: a resposta a esta e demais questões, colocadas pelos jovens e adultos. A falta desta comunicação conduz a um inevitável distanciamento entre a sociedade e o investigador. E é com o objectivo de contrariar isso que estamos hoje convosco.


A História Local

"A monografia local ou regional com o seu estudo da terra e o que ela dá, dos homens que nela viveram com a reconstituição dos poderes que nela se exercem e aí consomem ou distribuem os bens, com o traçar dos diversos círculos espaciais que a dividem ou envolvem, com a análise da cultura que aí recaía e transfigura a realidade - tudo isso ainda a tomar consciência da comunidade através do conhecimento da sua génese e da sua evolução, por um lado, e do conhecimento da sua identidade específica, por outro. " (José Mattoso, A escrita de História. teoria e Métodos, Lisboa, 1988, 180).

A história local adquiriu nos últimos anos um lugar de relevo no panorama da Historiografia. Ela ganhou um carácter científico e institucionalizou-se como uma área independente de investigação.

Tendo em conta que o conhecimento global é o resultado das partes e que ele só pode ser conseguido a partir destas mais importante se torna a atenção às partes. E no caso da história, o resultado final é a conjugação das monografias locais. Na verdade, é através do conhecimento perfeito do meio que nos envolve é possível atingir o dos outros. Mas parece que tudo tem sido ao contrario, sendo a História local considerada uma função menor no campo da investigação.

A sua concretização passa pela recolha exaustiva da documentação dos núcleos específicos e da informação dispersa. A isto é necessário adicionar os testemunhos da tradição oral. A História oral, um campo pioneiro na investigação histórica, é imprescindível na História local. Ela surgiu com a Sociologia empírica da escola de Chicago, tendo-se desenvolvido a partir da década de cinquenta. A memória popular, através da história vivida, tem aqui a sua expressão máxima. Eis um campo ainda por desbravar e que a escola através das suas iniciativas multidisciplinares tem um papel a desenvolver.

Fazer um apelo à valorização da história local na investigação e didáctica é o nosso objectivo com este breve apontamento sobre o lugar da Ribeira Brava.

No caso da Ribeira Brava a tarefa é, por demais, difícil. Perante nós está um município de criação recente. Somente a partir de 1914 é possível individualizar a documentação desta área, enquanto até esta data ela perde-se nos imensos fundos do município funchalense. A isto acresce o facto do lugar ser posicionado na periferia do Funchal. Os seus principais moradores dividiam-se entre as suas casas no burgo e as terras no lugar, por isso não é fácil estabelecer com precisão a individualidade do lugar.

A Ribeira Brava

Tudo tem uma explicação. A identificação de um lugar não está fora deste universo. A Toponímia, embora muitas vezes menosprezada, é nesse contexto um dado importante. Ela é o retrato de uma realidade histórica vivencial. Por vezes é difícil irmos ao encontro das suas reais motivações. Por norma são as impressões daqueles que primeiro aportaram aos locais e disso deixaram memória. Entre nós assim sucedeu. A "relação" de Francisco Alcoforado e as "Saudades da Terra" de Gaspar Frutuoso guardam essa memória e fundamentam a toponímia madeirense. Diz o primeiro: "passou abaixo até chegar a hua ribeira muito furiosa a que chamou a ribeira brava". O segundo, ao descrever o processo de reconhecimento da Costa por João Gonçalves Zarco, refere que o mesmo se deparou com "uma furiosa ribeira" e que aí havia "traçado uma povoação, que deu nome Ribeira Brava". Noutro passo testemunha a veracidade desta constatação: A Ribeira é tão furiosa, quando enche, que algumas vezes leva muitas casas e faz muito dano, por vir de grandes montes e altas serras, e por ser desta maneira lhe vieram a chamar Brava".

A bravura da água que desce das escarpas é uma constante na História deste lugar. Na memória da história e de muitos de nós estão presentes alguns momentos dessa furia. Aliás, por muito tempo, foi constante a preocupação na defesa do lugar com a construção de uma muralha. Em 1502 ergueu-se uma primeira muralha que a primeira invernia destruiu. Depois em 1565 e 1661, chegando até à actualidade. A tradição registada nos paroquiais de 1735 refere que o lugar se salvou "por milagre do Santo". Na verdade, por vezes, só um milagre era capaz de conter a fúria da ribeira. Os madeirenses, talvez porque propensos a essas situações, não esqueceram de procurar em momentos de aflição a protecção dos santos padroeiros.


Guerreiros e camponeses

O lugar foi, desde o início do povoamento da Ilha, um assentamento de colonos, que não se deixou vencer pela fúria da ribeira. A capelania, criada em 1440, atesta do rápido progresso do lugar. Os primeiros colonos foram obreiros da terra e bravos guerreiros nas façanhas africanas. Tal como o refere Gaspar Frutuoso "os moradores que nella vivem que quando convinha aos capitães do Funchal, que depois forão socorrer os lugares de África com gente deste só lugar, tiravão tão nobres cavaleiros e gente lustrosa, que há sua custa hião servir a El Rey, e tinham tanto nome, como ao diante se verá no discurso desta história".

Na verdade, há desusados motivos para que isso tivesse acontecido. Aqui, os primeiros sesmeiros não são degredados e de classes humildes: foi recanto para aristocratas vindos do reino ou de fora. E, por isso mesmo, manteve-se essa permanente disponibilidade para o socorro às praças africanas. Gaspar Vilela foi um deles e esteve em 1531 no socorro a Santa Cruz de Cabo Gué, durante cinco meses com gentes à sua custa. Diogo de Barros foi um cavaleiro destemido e temido pelos mouros.

A Ribeira Brava foi lugar de gentes ilustres possuidoras de títulos nobliárquicos. Desde João de Bettencourt, Diogo de Teive a António Correia Heredia, pode-se traçar a genealogia de alguns ilustres ribeirabravenses.

João de Bettencourt veio para a Madeira em 1448 com o seu tio Maciot de Bettencourt, que havia vendido a Ilha de Lançarote ao Infante D. Henrique, fazendo assentamento na Banda de Além. Aí instituíu morgado que esteve na origem de uma das mais importantes famílias da ilha que se evidenciou façanhas marroquinas e orientais. Em 1524, com sua mulher Isabel Fernandes, fundou a capela de Nossa Senhora da Apresentação. Um joão de Bettencourt foi capitão de Malabar.

Diogo de Teive, escudeiro da Casa Real, conta-se entre os primeiros povoadores da Ilha, recebendo importantes sesmarias na Ribeira Brava. O seu nome ficou célebre por ter sido um dos primeiros a aventurar-se na descoberta das terras Ocidentais, de que resultou o descobrimento das Ilhas de Flores e Corvo. Nesse mesmo ano recebeu, a 5 de Dezembro, autorização do Infante D. Henrique para construir um engenho de água. Esteve na Terceira em companhia de Jácome de Bruges, dando início à ocupação da Ilha, a que abandonou em face do desaparecimento enigmático de Jácome de Bruges. Os seus descendentes relacionaram-se com a coroa de Castela, assumindo funções importantes no período da união das duas coroas. Em 1640, com a Restauração, o morgadio dos Teives passou para a coroa que o arrendou a particulares. E parece que nunca mais os Teives regressaram à posse dos seus bens e a pisar o solo do lugar.

A ele junta-se outro descobridor, Fernando Pó que entre 1471-73 descobriu a Ilha que lhe deu o nome no Golfo da Guiné.

António Correia Herédia, Visconde da Ribeira Brava, conduz até à época contemporânea o panteão de figuras ilustres. Foi uma figura marcante da política, entre finais do século XIX e os primeiros dezoito anos do nosso século. Descende de António Herédia, militar castelhano que veio para a ilha no período da união das duas coroas, sendo capitão do presídio político. Republicano comvicto, com um alvorecer da República teve uma carreira política fulgurante, batendo-se pela terra que o viu nascer. Em 1911, com a criação da Junta Agrícola, empenhou-se no plano de reconversão agrícola a que ela estava vocacionada. A promoção de viveiros agrícolas e de arborização, o desenvolvimento do plano viário, são alguns dos objectivos alcançados. Foi com ele que vieram para a ilha alguns negros caboverdeanos ao abrigo de um programa de protecção contra a fome. Em 1913 chegaram à Ribeira Brava algumas dezenas destes trabalhos para o campo experimental da Bica da Cana. As dificuldades de adaptação foram imensas, contando com a oposição dos locais, como se pode verificar pelos periódicos pontassolenses.

Foi na área das Humanidades que tivemos um dos mais notáveis ribeirabravenses. É ele Manuel Álvares, nascido em 1526. Aos vinte anos entrou para a Companhia de Jesus onde se afirmou como um notável professor de Humanidades. Foi Reitor do Colégio das Artes em Coimbra (1561-66), depois, da Universidade de Évora (1573) e do Colégio de Santo Antão (1574-75). A fama não resultou do exercício destas funções, mas sim da sua obra, em especial a "gramática latina", publicada em 1572, que veio revolucionar o ensino do latim em todo o mundo. Esta, pelas mãos dos jesuítas, espalhou-se por todo o mundo, tendo 530 edições até ao séc. XIX. Em Portugal ela só foi destronada pelo ódio do Marquês de Pombal à Companhia de Jesus, que levou à sua proibição pelo alvará de 20 de Junho de 1759.

A estes juntam-se os ribeirabravenses anónimos que fizeram desta escarpa um local aprazível. Neste grupo merece relevo especial os escravos, mouriscos ou negros. Uns e outros adquirem importância no lugar pelo facto de existir casas com ligações a vida agrícola e façanhas bélicas na Costa Africana. Note-se que foi aqui e no Funchal onde mais se manifestou a presença de escravos mouriscos. Eles foram uma constante até à sua proibição pela coroa em 1597. Tudo isto deveria ser resultado das presas de guerra da costa marroquina. O troféu que os guerreiros ostentavam aos seus semelhantes e súbditos.

No global, a freguesia da Ribeira Brava é uma das que apresenta mais percentagem de escravos, sendo de 17% no século XVI. E, fora do Funchal, era a que apresentava maior número de escravos. Desses proprietários merece destaque Francisco Álvares de Atouguia, senhor de dez escravos.

Ribeira Brava terra de guerreiros, de proprietários de canaviais e, por isso mesmo, de escravos. Os canaviais geravam a necessidade. As façanhas bélicas uma forma de os conseguir.


Os Recursos

A Ribeira Brava foi terra de grandes recursos agrícolas. Os vales das margens da Ribeira e as ravinas foram transformados em poios onde medravam os canaviais e trigais. Gaspar Frutuoso testemunha isso dizendo que a freguesia é "tão fresca e nobre das melhores da Ilha, que além de ter muitos frutos e mantimentos em abundância, é e sempre foi tão generosa com os seus moradores que nela vivem(...)". Mais adiante especifica: "(...)pelo chão da ribeira acima tem as casas, e muitas canas de açúcar, e dois engenhos, e pomares muito ricos de muitos peros e peras, nozes e muitas castanha, com que é a mais fresca aldeia que há na ilha;(...)Tem também muitas vinhas, ainda que o vinho não seja tão bom como o do Funchal".

A riqueza do lugar, o acesso com a cidade através do mar levou a que fosse uma área agrícola nas mãos da família funchalense. Daqui resultou uma situação de dependência: Gaspar Frutuoso refere que é "uma fresca quinta, donde os moradores da cidade achão e lhes vai o melhor trigo, frutas caças, e em mais abundância que em toda a ilha; e pode-se com razão chamar celeiro do Funchal, como a Ilha de Cecília se chama de Itália."

Todavia, o factor de progresso desta área foi, sem dúvida, o açúcar. Esta comarca no decurso do século XVI apresentava-se com 29% da produção, disputando o primeiro lugar com o Funchal, passando para 20% do total no século XVII. Nos livros de pagamento do quinto sabemos da existência de 6 engenhos e de 35 proprietários de canaviais, muitos deles dispondo de escravos. Entre os proprietários encontramos três importantes famílias: Barros (Pedro Gonçalvez) Teive (Rui e Diogo), Betencor (Francisco, Pedro e João). Note-se que este local desde 1502, estava autorizado a despachar directamente o açúcar para fora, havendo aí um posto alfandegário.

O testemunho disso esta patente na riqueza da igreja principal do lugar da invocação de S. Bento, expressa na decoração e riquíssimo espólio de pratas. A gratidão do monarca pelos benefícios que esta terra lhe concedeu, em direitos e bravura dos seus guerreiros está expressa na oferta simbólica da pia baptismal.


A Vila

A importância do lugar desde o século XV levou a que as suas gentes assumissem uma posição de relevo na vida local, reivindicando para o seu lugar algo mais. Já no século XV é notada a presença dos seus moradores como homens-bons do concelho. Havendo também lugar a um Juíz do lugar que, no decurso dos séculos XVI e XVII, estava em mãos dos Bettencourts e Barros, os principais proprietários do lugar.

No século XVI com a criação dos municípios da Ponta de Sol (1501) e Calheta (1502) surgiu a reivindicação dos ribeirabravenses para a criação de uma vila. Na capitania de Machico tivemos entretanto em 1515 o de Santa Cruz. Gaspar Frutuoso fez eco deste desejo. Primeiro refere que "já muitas vezes tentaram os moradores de a fazerem vila", para rematar da seguinte forma: "Não é este lugar vila pelo deixar de ser à falta de muitos visinhos e bom assento, e ser somenos da Ilha, antes é o mais bem assentado e magnífico de todos; senão por ser termo da cidade do Funchal,(...)".

Depois do século XVI não mais se mexeu na estrutura municipal. Apenas em 1743 mercê da insistência das populações do norte da ilha surgiu o município de S. Vicente. Com a revolução liberal veio a provocar uma transformação na vida municipal. As reformas de Mouzinho da Silveira tiveram reflexo na reforma administrativa de 1832. Neste ano criaram-se os municípios de Santana, Porto Moniz e Câmara de Lobos. O da Ribeira Brava só com a República, mais precisamente a 6 de Maio de 1914, foi possível. Os ribeirabravenses devem-no a Francisco Correia Herédia, um dos obreiros do republicanismo.

Por fim, merecem realce algumas situações anormais ao quotidiano do lugar. Primeiro foram os motins em 1884 com a violência na mesa de voto para as eleições, que causou alguns mortos. Tudo por iniciativa dos republicanos que estavam na mesa de voto - entre eles o pároco da freguesia -, que embebedaram os militares que montavam a segurança e depois os instigaram a disparar sobre a multidão. Depois em 1936 o movimento grevista contra o decreto dos lacticínios, que se pensava levar ao monopólio, provocou diversos distúrbios no Faial, Santana, Funchal, Machico e Ribeira Brava. Neste último lugar a 5 de Agosto as populações enfurecidas destruíram a documentação da repartição de finanças. A resposta do governo da ditadura não se fez esperar, talvez por temor do sucedido em 1931, enviando uma força militar e criando um tribunal especial para julgar os activistas.


Descoberta do norte

Alberto Vieira

A encosta norte só começou a ser devassada por viajantes, anónimos ou escritores, a partir da centúria oitocentista. Foi só nesta época que o norte se abriu aos estrangeiros, que o calcorrearam em intermináveis passeios pelo seu interior, seguindo o rastro das veredas e levadas. Esta tardia descoberta da encosta norte pelos forasteiros tem a ver com a extrema dificuldade na sua comunicação com a cidade, principal centro de ligação da ilha ao mundo. Todos são unânimes em referir as más condições e perigosidade dos caminhos que ligavam o Funchal a S. Vicente pela via da Encumeada ou de Boaventura, sendo testemunho disso Ed. Harcourt(1851) e Carlos Faria(1945).

Cadamosto em meados do século quinze diz-nos que "ela é toda um jardim", mas pela sua frente só passaram as terras da vertente sul desde Machico a Câmara de Lobos. É, todavia com o fidalgo Giulio Landi, hóspede na década de trinta do século XVI, que começam a surgir as primeiras impressões dessa desconhecida vertente norte. Mesmo assim o autor só se detém em pormenor na descrição da costa sul, dizendo sobre a outra banda aquilo que ouviu: "No outro lado da ilha(...) há muitas aldeias onde vivem somente camponeses e pastores. E parece que esta parte da ilha foi feita pela natureza tão selvagem como útil e para encontro dos habitantes (...) E esta parte não é menos deleitosa do que útil, pois as praias e os lugares cobertos de bosques, muitas vezes, dão enormissimo prazer".

Quer Jerónimo Dias Leite (1579), quer Gaspar Frutuoso (1590) referem-se a esta encosta norte, pertença da capitania de Machico, de uma forma fugaz. São Vicente e Ponta Delgada são referidos entre os "muitos e bons lugares" onde se recolhe trigo. Ponta Delgada é ainda recordada pela memorável Casa de António Carvalhal, que "he hospital, e a colheita de todo pobo, hospedagem de caminhantes, refugio finalmente de necessitados"( Jeronimo Dias Leite, 1579).

Na diversa literatura o norte continua no esquecimento e foi preciso chegar ao século XIX, com o rápido surto do turismo inglês, para que surgissem os testemunhos exactos da sua descoberta. É a partir da década de vinte que temos as prineiras incursões ao interior e norte da ilha. Primeiro com William Combe(1821) e depois com Lyall(?) que assina "Rambles in Madeira..."(1827). Aliás, este último teve oportunidade de deambular por toda a ilha e de descobrir a encosta norte. Ao deslumbramento da vista da Encumeada, segue-se a descida de três horas até à vila por um caminho mau mas rodeado de um cenário belo: "o vale envolvente é o mais aberto e bonito da Madeira". A partir de então o norte entra nos percursos de visita dos ingleses que não se satisfazem apenas com a ida ao Monte, Camacha e, por isso mesmo, aos poucos vão alargando o seu horizonte de visão ao Pico Ruivo, Santana, Rabaçal e S. Vicente. É avultado o número de testemunhos da nova descoberta. Em 1851 Edward Harcourt diz que não podia sair da ilha sem este encontro com o cenário deslumbrante do norte, o que concretizou num passeio feito pelo Curral e regressando por Boaventura. Por parte dos nacionais temos também os primeiros testemunhos, celebrados em romance, como é o caso de António Ferreira (Maria Luiza, 1921) e Ferreira de Castro, (Eternidade, 1932-33) ou breves apontamentos de viagem de Carlos Faria e Marquez de Jacome Correia (1927). Estes são secundados, a partir da década de trinta, com Horácio Bento de Gouveia, o verdadeiro retratista do ruralismo e paisagem vicentina.

De acordo com Raul Brandão (1924) a ilha é um "cenário deslumbrante", mas foi o Marquez de Jácome Correa quem melhor a entendeu e descreveu. A encumeada revelou-lhe um vale semelhante ao "estado em que se achava quando os navegadores a surpreenderam na sua virgindade e no seu isolamento". E Fereira de Castro remata: "A mata era cada vez mais bela: a cada nova curva a cada clareira vislumbrada, os loureiros sugeriam horas pretéritas, gastas por outras civilizações - os corpos vestidos de túnicas, ondulando à brisa que passara há muitos séculos já". A mesma ideia acode a Horácio Bento de Gouveia: "a região norte da Madeira é de uma beleza rude que impressiona; nela dominam os aspectos das primeiras idades do mundo." Esta é uma constante que se repete nos autores nacionais e estrangeiros. Eis a contrapartida compensadora: a vegetação luxuriante, a abundância de águas derramadas em cascatas que levou James Yate Johnson(1885) a designar de "Cascade Valley", as culturas, as laranjeiras e as latadas de vinha, as casas de pedra e, finalmente, a minúscula capela encravada na rocha na abertura da ribeira.

Em S. Vicente e Boaventura louva-se a beleza agreste da paisagem, indescritível na voz do escritor e poeta. S. Peacock(1850) define Boaventura como um vale romântico. Para E. Wortley "é o mais belo cenário que alguma vez viu". Ponta Delgada é apresentada por todos como uma bonita aldeia, bem situada e ricamente povoada. Isto fora já testemunhado por Paulo Dias de Almeida em 1817: "É a melhor povoação do Norte(...) É nesta povoação onde se deve estabelecer a Vila, ...". Esta ideia de Ponta Delgada como um presépio mantém-se em Maria Lamas (1956) e consagra-se em Guido de Monterey(1974).

Até as grutas não são esquecidas, sendo pela primeira vez divulgadas em 1885 por James Yate Johnson. Segundo o mesmo os canais de lava que descem do Paúl haviam sido descobertos em 1855 e detêm um lugar ímpar na História natural, por serem o " melhor dos canais subterrâneos de lava que existem na Madeira".

São muitos e variados os locais que apelam a uma visita do viandante. James Y. Jonhson aconselha a Achada do Judeu e os seus dois tis milenares, as espécies botânicas da Lombada das Vacas, o chão do Caramujo e os Estanquinhos, onde se sentia o conforto de uma casa de abrigo, e Antonio Ferreira acrescenta o percurso na levada até à Ribeira do Inferno, a Bica da Cana.

A capela de S. Vicente que hoje continua altaneira e a correr mundo na voz, foto e escrita de muitos que a contemplam foi desde sempre um marco identificador da vila de S. Vicente, que se esconde na margem da ribeira. Ela aí está desde o século XVII, dando juz à veneração dos nortenhos ao santo castelhano. É o emblema da encosta e escarpas do norte.

Para tràs ficou o retrato de muitos dos que partiram do Funchal à procura deste paradisíaco cenário. O progresso abriu-o ao mundo, democratizou o seu usufruto, fazendo com que a fruição do ar puro e belezas deste recanto perdido na encosta norte seja hoje compartilhado por todos, no presente e no futuro.


Os duzentos e cinquenta anos da vila de S. Vicente

Alberto Vieira

"São Vicente é comarca
Aonde há senhores de capote
Que são galos de raça grande
Que fazem belo lóte."

(Manuel Gonçalves, Feiticeiro do norte)

S. Vicente foi, desde o século XV, o principal e mais importante núcleo de povoamento do norte da Madeira, que, por isso mesmo, teve direito a capelania, estabele cida de acordo com o número de moradores. Em face desta evidência, só a pertinácia das autoridades municipais machiquenses conseguiu iludir a coroa das potencialidades desta freguesia nortenha para assumir a condição de vila-sede de um novo município.

Muitos ousarão perguntar qual o valor destes três simples fólios rabiscados pelo escrivão do reino no século XVIII, qual a importância que assume para a vida e história das gentes do norte da ilha.

Em primeiro lugar este documento deverá ser considerado como a mais lídima expressão do movimento autonómico que se situa para o actual processo de autonomia como o prolegómeno desta recente criação. É a partir do movimento do municipalismo que às populações é atribuída a prerrogativa de intervirem na solução dos seus próprios problemas por meio de um governo local feito com o senado da camara.

A criação de uma vila na vertente norte era uma necessidade cada vez mais premente em face do desenvolvimento económico e social adquirido com o surto da economia viti-vinicola. A sua dependência em termos administrativos da sede da capitania em Machico prejudicava em muito os direitos destas gentes que tinham necessidade de aí se deslocarem para resolver as mais diversas questões. O acesso por terra ou por mar era difícil quando não impossível, ficando assim as populações desta área à mercê dos caprichos dos senhores de Machico. Deste modo a reivindicação do estatuto de vila para o lugar de S. Vicente ia ao encontro das cada vez mais incessantes solicitações das gentes da encosta norte. Este era o único processo de corresponsabiliza-las no governo da sua área e de motiva-las para o progresso da mesma.

Até ser alcançado o almejado direito percorreu-se um longo e combativo percurso. Esta reivindicação, para além dos necessários requesitos económico-sociais só se tornava possível mediante deligências várias junto do capitão, do corregedor, do Bispo e da Coroa. Este foi o rumo seguido pelas gentes de S. Vicente, que desde os inícios do século XVIII fizeram desta reivindicação o principal motivo de batalha contra a oligarquia machiquense. Durante quase cinquenta anos os nossos avoengos lutaram com pertinácia contra o excessivo centralismo de Machico e só pararam quando o rei finalmente as reconheceu.

Foram cinco as tentativas para alcançar o estatuto de vila. A primeira surgiu já em finais do século XVII, enquanto as restantes se expressaram ao longo das quatro primeiras décadas da centúria seguinte. Destas do século dezoito a primeira surge no governo de Duarte Sodré Pereira (1703-1704) e é da segunda que se possui mais informação sobre a intervenção de ambas as partes empenhadas no processo. O rei, comovido com as reclamações apresentadas pelos moradores deste lugar, recomendou em 1714 ao seu corregedor na ilha que indagasse a validade de tamanhas acusações e razões.

Em resposta de 19 de Setembro o município de Machico manifesta-se frontalmente contra isso argumentando que esta amputação aos domínios pertencentes à sua alçada era lesiva dos interesses da vila sede da capitania. Depois abre-se o rol de acusações: o local em causa não era próprio para tal função uma vez que o seu acesso era difícil por terra e por mar. Depois, ataca-se as gentes, acusando-as de serem "de natureza turbulentos e todos pouco abservantes das ordens e preceitos de seus mayores", sendo a pretensão de erguer uma vila a forma de aí "viverem com regallos os principais do lugar pelo que a criação da vila iria lesar os mais pobres, pois este era hum lugar onde os poderozos obrão segundo o estilo e clima da terra e não com justiça nem razão". Todavia, esta argumentação não é nova pois já fora usada em 1515 aquando da criação do município de Santa Cruz. O menosprezo do donatário e a justeza da reivindicação levou o Rei a ignorar a repulsa machiquense. Aliás, em 1714 a vereação de Machico ainda mantinha viva a memória desta situação, referindo os inconvenientes que a mesma trouxera para a vila.

As gentes de S. Vicente não desistiram da sua pretensão e em 1717 insistem novamente pelo que a vereação de Machico se viu forçada a representar junto do capitão, o Marquês de Valença, as suas benemesses para impedir o avanço de tal reivindicação junto da Coroa. E para sua segurança reclamaram o treslado da resolução régia de 25 de Janeiro de 1717 que mais uma vez não atendia às legitimas aspirações dos vizinhos de S. Vicente.

Em 1743 esta continua vitória do senado de Machico foi pela primeira vez destronada pela pena da rainha D. Maria de Austria, no período de regência que sucedeu à doença do rei (1740), em 23 de Agosto de 1743 com a assinatura do alvará régio que elevou o lugar de S. Vicente à categoria de vila. Estranhamente o alvará não teve força de lei e foi necessário que o Rei D. João V o legitimasse por outro de 25 de Agosto de 1744 e só a partir daqui o lugar de S. Vicente assumiu o pleno estatuto de vila. Para isso em muito contribuiram as opiniões favoráveis do juiz de fora, do bispo e do governador da ilha.

As riquezas e importância do norte

Alberto vieira

A História do município de S. Vicente poderá ser descrita em poucas palavras. As lacunas do arquivo local, associadas ao menosprezo da documentação geral da ilha por esta vertente norte, fizeram com que parte desse registo do quotidiano dos nossos antepassados se apagasse da memória escrita. A primeira situação não deverá ser alheia às revoltas de 1868 e 1924 que, a exemplo da popular Maria da Fonte, tiveram como alvo preferencial a documentação municipal onde se guardava o registo das dívidas à fazenda. A par disso esta região norte foi sempre considerada uma área marginal em relação ao principal centro do palpitar sócio-económico madeirense, dominado pela vertente sul.

As dificuldades de acesso por mar e terra a esta vertente norte e os parcos recursos, para a afirmação plena da economia açucareira e viti-vinícola, definiram o secular abandono a que foi votado pelo que só raramente merece a atenção do escriba oficial. Esta região quase que não passava de uma coutada dos senhores de Machico, donde retiravam o gado e as necessárias madeiras e lenha que nos séculos XV a XVII alimentaram os engenhos do sul.

A monografia escrita em 1944 por A. A. Sarmento para comemorar o segundo centenário da elevação deste lugar a vila testemunha esta triste realidade. Aquilo que o autor conseguiu reunir resume-se a algumas generalidades. E hoje, passados cinquenta anos dapara-se-nos a mesma dificuldade.

Não se sabe ao certo quando começou o povoamento da encosta norte da ilha. As dificuldades de penetração, por via marítima e terrestre, terão sido factor de ponderação para os possíveis interessados e actuaram, de certeza, como entrave à sua humanização. Mesmo assim, Álvaro Rodrigues Azevedo refere que São Vicente foi freguesia desde 1440. É provável que desde meados do século XV tenham afluído a esta encosta norte alguns povoadores que traçaram os novos povoados nas clareiras abertas. S. Vicente foi sem dúvida o primeiro logo seguido de Ponta Delgada. Boaventura deverá ser lugar de assentamento muito mais recente e nunca assumiu a importância das anteriores.O facto do lugar se encontrar a meio caminho na ligação à vertente sul pelo Curral das Freiras terá propiciado a sua valorização.

O concelho dispõe de um vasto espaço na sua maioria coberto de floresta. Deste modo a área agrícola é reduzida sendo complementada, em termos de recursos, pela utilização complementar da outra em termos do aproveitamento das madeiras e lenhas ou do pastoreio.

A importância agrícola da vertente norte da ilha assentou, no princípio, nas culturas de subsistência, que asseguravam as necessidades dos colonos aí instalados e um suplemento que era escoado para a vertente sul. Gaspar Frutuoso, em finais do século XVI, dá-nos conta desta situação. Assim, quando refere as duas freguesias do concelho, ainda que laconicamente, diz que em Ponta Delgada "vinhas e criações e lavrança de pão e frutas de toda a sorte" e para S. Vicente "grandes terras de lavrança de pão, e criações e muitas frutas de castanha, noz e de outra sorte, muitas vinhas...". Em ambas as freguesias é já manifesto a importância que assumia a viticultura referindo apenas "muitas vinhas". Todavia será no decurso do século XVIII e XIX que esta última cultura assumirá uma posição dominante na economia do concelho.

A valorização desta função de celeiro é bem patente com a casa de António Carvalhal. De acordo com Gaspar Frutuoso ele gastava mais de trinta moios anuais, para além do muito que cedia de empréstimo ou em socorro dos necessitados, e acrescenta o autor citado que todos estes moios "recolhe de sua lavoura". Os conventos funchalenses fruíam de inúmeros foros em cereais. Aqui é de destacar os da Encarnação e Santa Clara. Este último tinha um granel na Vila, defronte à cadeia, onde os foreiros iam a depositar os seus foros.

Foi, todavia, com a cultura da vinha e cana de açúcar que o norte da ilha adquiriu alguma importância no contexto da economia agrícola. A vinha terá surgido desde muito cedo, adquirindo já em finais do século XVI alguma importância, como o testemunha Gaspar Frutuoso.

A cana de açúcar só assumirá alguma importância a partir de finais do século XIX com o novo incremento, mercê da crise agrícola da ilha e da aposta numa variedade de culturas com interesse para activarem o comércio externo.

A partir do século XVIII a vertente norte da ilha era já uma importante área produtora de vinho. As vinhas plantavam-se por todo o lado e cresciam entrelaçadas no arvoredo. Este sistema era conhecido como balseiras. Tendo em conta as condições agro-climáticas da área o vinho que saía à bica do lagar não era de grande qualidade, quando comparado com o da vertente sul. Por isso, desde o século XVIII, somos confrontados com um activo boicote das gentes do sul ao vinho do norte.

Este conjunto de medidas proteccionistas do vinho da vertente sul mostram quão importante foi nesta época a área viti-vinícola do norte. Por outro lado atestam a prática corrente de imediato envio do mosto, que não aguardava a fermentação nas lojas do norte. Isto, porque muitos proprietários residiam na cidade e aí tinham os seus armazéns. Os colonos não tinham meios para tal e por isso vendiam o seu mosto à saída do lagar.

O boicote ao comércio do vinho do norte nos portos do sul, a cada vez mais existência de excedentes levou as gentes do norte a buscar soluções para escoamento do seu vinho. Surgiu, assim, a prática de alambicar estes vinhos transformando-os em aguardente, para consumo corrente e uso no tratamento dos do sul.

Deste modo podemos afirmar que o desenvolvimento do Norte esteve quase sempre à mercê dos caprichos e interesses do Sul. Esta situação viu-se agravada pela Geografia que sempre foi madrasta para o ilhéu e, especialmente, os nortenhos. Os desafios do futuro apontam para um abrir de novas perspectivas e a quebra das assimetrias.


O AÇÚCAR NA CALHETA

Alberto Vieira

A Calheta assume-se na actualidade como um marco importante na preservação da secular cultura da Cana do Açúcar. Esta, que no passado ganhou um estatuto privilegiado na economia da ilha, persiste na actualidade graças aos apoios oficiais e para alimentar apenas dois engenhos, sendo um deles o da Calheta, pertença da sociedade de engenhos da Calheta criada em 27 de Maio de 1952.

A Calheta que foi no século XVI a principal área de cultura de canaviais possuía vários engenhos distribuídos pelas diversas freguesias. A freguesia com o mesmo nome é referida por Gaspar Frutuoso como tendo dois engenhos: o dos Cabrais e o do doutor, fisico mestre Gabriel,João Rodrigues castelhano e Diogo de França. Desta riqueza arrancada à terra diz-se que D. Manuel quiz presentear todos os moradores presenteando-os com o sacrário em ébano com incrustações em prata. A peça, denunciando características de uma época posterior, aí está.

Certo, é sem dúvida o carinho que a coroa nutriu por estas paragens, reconhecendo o progresso emergente da cana de açúcar. Assim em 1 de Julho de 1502 foi criada a Vila Nova da Calheta, enquanto em 1576 os capitães do Funchal receberam o título de Condes da Calheta.

Próximo da igreja está o único engenho em funcionamento na área, e o segundo em toda ilha.O engenho pertence à Sociedade de Engenhos da Calheta, constituída em 27 de Maio de 1952, sendo resultado da fusão de diversos engenhos do concelho. O primitivo engenho foi pertença da sociedade Lopes & Duarte constituída em 16 de Novembro de 1893, tendo surgido em 1901, numa altura em que os canaviais retomaram com novo folego à ilha. Todavia o novo surto da cultura foi breve e condicionado pelas medidas resultantes do monopólio sacarino do engenho Hinton, que resultou no encerramento de muitos dos engenhos em laboração e da associação de muitos. Entre 1857 e 1908 a Calheta conheceu mais de uma dezena de engenhos, sendo dois na vila: em 1901 o da firma Lopes & e em 1908 o de António Rodrigues Brás. O actual engenho da Calheta é herdeiro de ambos, sendo o resultado da sua inevitável fusão com o de José Gomes Henriques do Paúl do Mar (1905).

Vão longe os tempos da prolongada safra do açúcar. Hoje o engenho da Calheta abre as suas portas para a moenda cerca de um mês. Passam pelos pesados cilindros mais de três mil toneladas de cana que dão origem a dezasseis mil litros de mel de cana e cento e cinquenta mil litros de aguardente.

A tradição multisecular da cultura da cana de açúcar tem continuidade na Calheta, fazendo juz à tradição histórica que a viu nascer.